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No conjunto, o que surpreende quando comparamos a fase portuguesa e a fase inglesa é a impressão de continuidade. Não há dúvida que as inovações técnicas e a importação de equipamento desenvolveram o nível das forças produtivas e o sistema escravista estava ultrapassado. Mas o essencial da orientação permanece.

A relação de dependência sofre uma modificação essencial na medida em que a dominação política e militar que caracterizava a fase colonial era transformada em dominação econômica e financeira, forma de dominação neocolonial. No entanto, são ainda as necessidades do capitalismo dominante que determinam em última instância a orientação da economia brasileira e assistimos a um reforço potente da extroversão econômica.

À independência jurídica corresponde, pois, uma integração mais aprofundada no mercado capitalista mundial e uma especialização maior na divisão capitalista internacional do trabalho. A divisão internacional capitalista do trabalho caracteriza-se, nesta etapa, pela troca de produtos industriais por produtos primários e as vantagens que decorrem das economias de escala e dos custos decrescentes que caracterizam as atividades industriais vão aumentar enormemente a decalagem entre a economia dominante e a economia dependente. Paralelamente, as atividades primárias extrovertidas tendem a exercer um efeito induzido negativo na economia dependente, entravando o desenvolvimento das atividades autodinâmicas.176

A passagem à fase neocolonial significa, certamente, do ponto de vista do sistema capitalista mundial, uma descentralização da gestão da economia dependente, da qual se encarregará doravante a classe dirigente brasileira. No entanto, este poder será exercido em limites muito precisos, fixados pelos próprios interesses da classe dirigente brasileira.

Os interesses da classe dirigente brasileira são delimitados pela profundidade da integração da economia brasileira na economia capitalista mundial: a extroversão econômica gravou-se na estrutura da economia e levou à formação de um conjunto caracterizado pela monocultura, pelo 1atifúndio, pelas relações de exploração pré-capitalistas, pela fraqueza do mercado interno, pela realização através da exportação, pela desintegração no plano interno.

No entanto, este conjunto é profundamente coerente: a monocultura de exportação em grande escala exige a grande propriedade; a manutenção da mão-de-obra nestas propriedades exige relações de produção em que reencontramos os elementos extra-econômicos; o desenvolvimento simultâneo das forças produtivas e das relações de produção pré-capitalistas torna-se possível através da realização do produto no exterior da economia, pela exportação; ora, a monopolização da terra e da mão-de-obra pelas empresas agromercantis entrava o desenvolvimento do mercado rural e urbano: em conseqüência, a produção para exportação, função final da colônia, torna-se uma necessidade econômica. Chegamos, assim, à desintegração da economia no plano interno, na própria medida em que a integração se fazia exterior. Esta desintegração interna torna difícil a

176 Esta “especialização desigual”, como a caracteriza Samir Amin, está no centro do fenômeno moderno de

subdesenvolvimento. Com efeito, enquanto vemos a atividade aproexportadora levar a uma reprodução das relações de produção pré-capitalistas, com um entrave para o desenvolvimento de atividades econômicas introvertidas, na economia dominante a industrialização rompe as estruturas pré-capitalistas e torna-se a base estrutural e tecnológica da revolução agrícola. É nestes efeitos estruturais secundários que vemos todo o peso da especialização desigual, que acentua brutalmente a polarização dentro do sistema capitalista no decorrer do século XIX. Quando mais tarde as economias dependentes passam a industrializar-se a decalagem ou atraso relativo permitirá reconstituir o mecanismo de dependência sob outra forma.

constituição de atividades introvertidas, e assistimos à formação de um círculo vicioso de extroversão.

Promovido à independência pela fraqueza do seu colonizador, o Brasil será dirigido pela classe que tinha desenvolvido no país a produção colonial e cujos interesses eram, por conseguinte, ligados à manutenção da orientação precedente. Tentará, sem dúvida, racionalizar as suas atividades e aumentar a sua participação nos lucros resultantes do sistema, mas o conjunto da orientação está demasiado assente na estrutura econômica do país para que esta classe considere uma opção nacional burguesa.

Encontramos aqui a raiz interna da continuação da dinâmica neocolonial, que as pressões externas do imperialismo ou a penetração de “agentes do imperialismo” não explicam: trata-se do caráter particular, dependente, da classe burguesa brasileira, derivado do modo de produção dependente sobre o qual ela se constitui.

As relações de produção são decerto modificadas, mas no sentido de melhor adaptar as unidades de produção ao desenvolvimento das forças produtivas, sem qualquer reconversão notável que possa caracterizar a penetração de um novo modo de produção.

Do ponto de vista das relações de propriedade, constatamos que, sob a impulsão de uma dinâmica desta vez incontestavelmente capitalista, as estruturas coloniais tão freqüentemente qualificadas de feudais viram-se não transformadas, mas ao contrário reforçadas, mantendo-se a dominação absoluta da grande propriedade latifundiária.

Do ponto de vista das relações de exploração, constatamos um fenômeno análogo: a progressão rápida das relações escravistas sob a impulsão do capitalismo inglês, e particularmente no Sul “capitalista”, tende a reforçar a tese de que não se trata de uma articulação de modos de produção diferentes, e menos ainda da penetração da “civilização” capitalista num mundo primitivo, mas de uma forma específica do modo de produção capitalista que, pelos seus caracteres de dependência e extroversão, reproduz relações de exploração pré-capitalistas; a progressão da escravidão no Sul em pleno século XIX e o aborto da libertação no Nordeste (onde os engenhos são transformados em usinas que utilizam a força mecânica) na passagem para o século XX não podem ser jogados nas costas do “passado” e devem encontrar uma explicação dentro da dinâmica capitalista contemporânea.

Em quatro séculos os dados essenciais do modo de produção resistem e “digerem” a progressão das forças produtivas: permitem o crescimento e mantêm a dependência e a extroversão. Estes dados diferentes parecem, pois, formar um sistema particular, que qualificam os de modo de produção capitalista dependente, mesmo se os diferentes elementos que o compõem já existiram isoladamente na Europa nos quadros de modos de produção diferentes e em épocas diferentes.

Não nos compete aqui pronunciarmo-nos sobre o problema insolúvel de determinar a que ponto tiveram ou não peso as “tradições” feudais e outras. O que constatamos é que os elementos de “tradição” selecionados para sobreviverem, junto com os elementos modernos ligados ao desenvolvimento das forças produtivas, formam um conjunto que, analisado à luz das diversas etapas da reprodução do capital, não apresenta contradições ou incoerências internas, seja no plano da formação do capital, da produção ou da realização.

No entanto, na medida em que esta coerência interna só se constata quando vemos a economia brasileira mediada pela totalidade do sistema capitalista a que pertence, forçoso é constatar que a luta de classes dentro do país se coloca desde o início num plano simultaneamente interno e externo e que pôr em questão o modo de produção capitalista no Brasil implicaria pôr em questão simultaneamente a contradição de classe e a contradição nacional, erroneamente dissociadas.

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Capítulo V