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Independência ou Morte (ainda mais) independente

Inteiramente pintado em Florença, entre 1886 e 1888, por Pedro Américo, o quadro Independência ou Morte veio ao Brasil de navio já esticada, em um retábulo. No Museu Paulista, a obra está em uma moldura chumbada na parede e a retirada do quadro certamente a danificaria – mais um motivo para a obra permanecer no edifício durante a reforma. Entretanto, a condição da pintura, há séculos esticada, fixada e à mostra num mesmo local desde 1895, não é suficiente para afirmar que a imagem ali representada está estática tal qual sua constituição física em formato de tela emoldurada.

Nem mesmo sua concepção foi fruto exclusivo de uma criação autônoma independente, livre de influências anteriores – aliás, alguma obra de arte verdadeiramente se encaixa nessa condição? Tratar a pintura de Pedro Américo como matriz de todas as suas reproduções, apropriações e releituras é cometer a ingenuidade de acreditar que ela é consequência de um ato isolado de um artista retirado de seu contexto. Como escreve Cecilia Helena de Salles Oliveira sobre a independência do Brasil: “Durante o século XIX, diversos artistas, por meio de pinturas e gravuras, procuraram retratar o episódio.” (MATTOS e OLIVEIRA, 1999, p. 64)

No Museu Imperial de Petrópolis, uma instituição aberta ao público, está exposto o quadro A Proclamação da Independência , pintado por François-René Moreaux em 1884, que

31 já ensaia o que seria criado com mais dramaticidade na tela de Américo. Em Nova Iorque, no acervo do Metropolitan, há outra pintura considerada também como possível influência para a obra. 1807, Friedland , do pintor francês Jean-Louis Ernest Meissonier e datada de 1875, retrata a vitória de Napoleão Bonaparte em uma batalha na Rússia e possui uma disposição de cavaleiros e uma vegetação rasteira em primeiro plano análogas à criação pictórica de Américo.

Uma das intenções desta tese é mostrar o quão equivocado é sugerir algo semelhante ao escrito por Elio Gaspari em reportagem à revista Veja . Em tom de exclusividade e 7 escândalo, ele escreve que Américo copiou Meissonier. Afirmar isso é desconhecer (ou ocultar de má-fé) como se dava o processo de criação de pinturas históricas e que a noção atual de originalidade pouco tem a ver com esse conceito na época em que elas foram pintadas. Nem Independência ou Morte ou qualquer das outras pinturas citadas foram fundadoras, pois, para esse sistema artístico, essa é uma ideia vaga e problemática . 8

Seguindo a mesma lógica, também seria um equívoco considerar que o surgimento de novas versões da imagem Independência ou Morte iniciou-se com o fechamento do edifício. Fosse assim, como explicar, para ficarmos só em um exemplo, a existência de uma maquete que recria em três dimensões a cena do quadro, peça integrante da coleção do Museu de Miniaturas de Passa Quatro, realizada em 1999, portanto muito anterior ao fechamento recente do Museu Paulista? Antes da instituição fechar, a obra de Américo já atuava intensamente para além de sua parede expositiva.

7 Veja , 15/11/1982.

8 Na verdade, mesmo num sentido talvez menos evidente, a ideia de originalidade parece não funcionar também para obras

contemporâneas: uma obra de arte sempre opera a partir da releitura (de forma implícita ou explícita) de outras práticas do passado e alimenta com novas camadas um sistema complexo de valores.

Maquete da pintura de Américo, em exibição no Museu de Miniaturas de Passa Quatro. À frente da maquete, uma reprodução bidimensional da obra

As imagens das obras de arte e os materiais decorrentes de suas exibições espalham-se de forma acelerada e multifacetada no contexto onde atuam. Para melhor compreensão dessa capacidade, realizei em 2016 uma pesquisa nas redes sociais Instagram e Facebook das imagens de adesivos (os chamados stickers , distribuídos na entrada de algumas exposições e colocados pelo público preferencialmente na parte da frente do corpo) da retrospectiva de Henri Cartier-Bresson na Galeria Nacional da Finlândia, em Helsinque, a exposição mais vista do país em 2016, com cerca de 280 mil visitantes . Grande parte das 9

imagens apresentam os adesivos com o nome da exposição sendo utilizados em outros contextos, que não mais o expositivo. Elas nos mostram como as imagens de obras e de exposições, assim como seus materiais complementares, possuem um movimento próprio, independente dos objetos artísticos a que se relacionam, e se irradiam num contexto maior do que museu, a saber, a cidade em seu sentido mais amplo.

9 Também inseri na pesquisa algumas imagens de adesivos de outras exposições do Ateneum, para mostrar que a prática não

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Reprodução de uma postagem no Instagram que mostra o adesivo da exposição de Henri Cartier-Bresson em outro contexto de Helsinque, fora da Galeria Nacional da Finlândia.

Mais: p. 22 a 52 no livro de imagens

A indisponibilidade da pintura de Pedro Américo, portanto, não inaugura a disseminação de outros discursos relacionados à obra, mas é interessante sob uma ordem gradativa: agora, as camadas da imagem para além da pintura física parecem mais evidentes, ao menos para os estudos que, como este, encaram a situação de fechamento do museu como ganho. Até a reabertura do museu, as memórias e seus documentos, além das diversas apropriações da imagem na cultura visual, passam a ser mais do que prolongamentos das possíveis discussões sobre a tela de Américo. É um momento fascinante em que esses materiais variados, muitos deles livres das amarras de uma autoria específica, tornam-se ainda mais autônomos.

Mas de que tipo de materiais tratamos aqui? Parte considerável deles constitui-se de imagens criadas a partir da pintura de Pedro Américo que proliferam na internet a partir dos chamados memes (discursos visuais que se espalham no contexto virtual). Eles já se alteraram significativamente ao longo dos quatro anos deste doutorado, mas, de forma geral, mantêm a inserção de um balão e uma frase que substitui o grito da independência vindo da representação de D. Pedro I. Até 2016, a maioria das imagens relaciona-se a times de futebol

(em especial ao Corinthians) e a músicas populares – a mais conhecida faz o imperador cantar trechos do funk Passinho do Volante - Ah! Lelek Lek Lek , canção de MC Federado & Os Leleks, com mais de 30 milhões de visualizações no YouTube. Também é recorrente encontrar nas pesquisas do Google uma apropriação da década de 1970 feita para o jornal Pasquim , com D. Pedro gritando “Eu quero Mocotó!!!”.

A partir de 2016, o contexto político brasileiro produziu releituras da imagem de forma mais política. Após o golpe institucional que derrubou a presidente eleita democraticamente Dilma Rousseff, a internet passou a ter um D. Pedro I gritando “Foi Golpe” ou “Fora Temer”. Imagens assim circularam com frequência no feriado de independência dos últimos três anos, especialmente nas redes sociais. É bem verdade que a mensagem não se sustenta em uma segunda análise, afinal, não me parece que a figura central de D. Pedro I seria um símbolo apropriado para o protesto. Mesmo assim, é preciso compreender que, no caso, quem fala não é o imperador, mas o imaginário popular a partir de um material visual que é conhecido por parte considerável dos brasileiros. Nessas imagens, pela boca do imperador, fala na verdade um brasileiro indignado e piadista.

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Algumas das variações da obra de Américo na internet. Mais: p. 53 a 69 no livro de imagens

36 Ainda na esfera de resultados do Google, as reproduções “sérias” da pintura ali encontradas nem sempre são fidedignas. Grande parte do conteúdo “original” permanece, mas parte de tonalidades completamente diferentes. Duas telas são as mais clicadas. A primeira segue o tom ocre da tela agora indisponível. Já a outra deixa a cena em tons mais azulados. Há também reproduções virtuais que distorcem a cena ou cortam alguns de seus elementos, como o boiadeiro do canto esquerdo e o riacho do Ipiranga do primeiro plano.

37 A partir da continuidade do levantamento iniciado pelo serviço educativo do Museu Paulista em livros didáticos brasileiros para a exposição Imagens Recriam História , exibida no Museu Paulista em 2007 , foi possível também realizar uma pesquisa do uso da imagem 10 do quadro no contexto educacional. Ao se analisar como a cena aparece em livros didáticos de História de 1870 até 1990, todos provenientes do acervo da Biblioteca do Livro Didático da Universidade de São Paulo, ficou evidente que as mudanças da imagem não são exclusivamente de manipulações na internet, elas também acontecem nas páginas dessas publicações.

A variedade de transformações é grande. Algumas são específicas do exemplar pesquisado quando, por exemplo, a reprodução da imagem recebeu algum tipo de intervenção amadora, como riscos de caneta ou danificações no papel suporte. Outras mudam completamente os tons da pintura, reconstroem o quadro a partir de desenhos feitos por outros autores ou cortam grandes áreas da composição pictórica. Quando também são analisadas as imagens nos contextos em que aparecem nos livros, surgem mais mudanças de sentido. Há alguns casos em que a imagem aparece totalmente descontextualizada, sem nenhum tipo de legenda. E, em casos mais radicais, o texto descritivo da imagem deixa de informar que se trata da reprodução de uma obra e transforma a imagem praticamente em uma fotografia jornalística, uma prova documental – em um desses livros, é descrita como “o grito do Ipiranga”. E só.

10 A continuidade dessa pesquisa nos livros didático só foi possível graças ao apoio do próprio Museu Paulista que ofereceu

uma bolsa de graduação em 2016 para a estudante de História Beatriz Bau atualizar parcialmente esse material. Guilherme Callegari, assistente de pesquisa deste doutorado, finalizou o restante da lista de livros.

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Páginas de livros didáticos que reproduzem a pintura e suas transformações. Mais: p. 79 a 94 no livro de imagens

Para complementar esse pequeno e ilustrativo inventário de expansões da imagem da pintura de Pedro Américo, coleciono, desde o início do doutorado em 2014, diversos objetos que utilizam a imagem do quadro, como canecas, logotipos de estabelecimentos próximos do Museu, cenas de filmes e telenovelas, além das imagens que circulam na internet, já discutidas.

No processo de coleta de objetos e imagens, uma pequena brincadeira relacionada a essa pesquisa abriu uma frente de trabalho que marca a principal ação deste capítulo. Assim que iniciei a pesquisa de imagens, encomendei pela internet uma caneca com a reprodução da tela para uma empresa que produz diversos objetos cotidianos com qualquer imagem enviada a ela. Assim que solicitei a caneca, que aliás me acompanha agora na escrita destes textos abastecendo-me de cafeína, percebi que a imagem da pintura, enviada para a empresa via formulário eletrônico, passou a fazer parte do banco de opções de estampas do endereço eletrônico, de forma pública. Entendi que aquela minha ação havia contribuído para o

40 processo de expansão da pintura de Pedro Américo, mesmo que de forma muito tímida. Ela agora pode ser facilmente tema de outras canecas, além de almofadas, toalhas, camisetas, canetas e chaveiros.

Imagem do pedido para a produção de uma caneca com a reprodução da pintura

41 Foi a partir dessa história trivial que entendi uma possível fresta no fechamento do Museu Paulista e no fato de a pintura Independência ou Morte ficar indisponível, em seu interior, por anos. Mais do que apenas mapear onde a imagem ainda resiste no mundo, solta, a circunstância identificada no Parque da Independência pode ser pretexto para atuar direta e conscientemente no arquivo de reproduções e apropriações. Agora, mais do que nunca, a imagem Independência ou Morte não é só de Pedro Américo. Ela pode ser de qualquer indivíduo que deseje repensá-la.

2. O Museu está fechado para O bras