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Outro arquivo possível: histórias orais dos funcionários e materiais de uso interno

2. O Ateneum para além de sua coleção de arte 1 A potência das áreas comuns

2.2. Possibilidades arquivísticas

2.2.2 Outro arquivo possível: histórias orais dos funcionários e materiais de uso interno

A postura relacionada ao tratamento do arquivo do Ateneum foi ampliar o conceito de “arquivo” e destrinchar esse termo, a ponto de chegar a pelo menos duas possíveis acepções para essa noção. A primeira, claro, é constituída pelo arquivo oficial do museu (localizado no próprio Ateneum) e pelo arquivo oficial sobre o museu (as imagens da instituição e de suas obras presentes no arquivo público de Helsinque). Esse material formalizado não é inédito e, por estar disponível de forma pública a qualquer interessado, optei por realizar as operações de problematização discutidas na seção anterior.

Ao longo dos meses, porém, enxerguei outras camadas arquivísticas que não integram os setores de pesquisa do museu ou da cidade. Trato aqui de um universo descentralizado, muitas vezes oral e preservado de forma muito frágil, quase sempre apenas como recordações de quem trabalha no museu. Ao longo da minha vivência quase diária no Ateneum, estabeleci uma relação com seus trabalhadores. Por me verem sempre ali, tomaram conhecimento de que eu era um pesquisador e artista brasileiro interessado nos pormenores do museu. Aos poucos, eles passaram a me oferecer materiais de pesquisa.

Foi por meio de suas contribuições que percebi a existência de um arquivo que não reside no setor oficial de documentação do Ateneum. Há uma caixa de fotografias em uma das salas de manutenção do Ateneum emblemática para discutir a existência de outros documentos para além daqueles disponibilizados nas salas de pesquisa da instituição. As fotografias desta caixa foram produzidas em 1955 e possuem qualidade de imagem e de revelação semelhante à das encontradas no arquivo oficial do museu. Elas foram clicadas por um fotógrafo que, na época, fora contratado para produzir registros oficiais do espaço expositivo do Ateneum. Esse conjunto, porém, foi uma espécie de expansão desse trabalho, realizada a pedido dos setores de segurança e de manutenção do museu, os quais precisavam

urgentemente de registros em alta definição de áreas do telhado com rachaduras e das maçanetas e fechaduras das portas mais antigas do edifício. Caso elas se quebrassem, com o auxílio desses registros seria muito mais fácil consertá-las ou mesmo produzir outras semelhantes.

Fotografias de maçanetas do Ateneum, produzidas por um fotógrafo especialista em registros de espaços expositivos Mais: p. 501 a 518 no livro de imagens

165 Nenhum pesquisador desde então teve acesso a essas imagens. Isso ilustra um de muitos ganhos (outros serão relatados a seguir) da aproximação de quem estuda os museus como seu objeto de pesquisa não só a partir da vivência com seus curadores e equipes do setor de documentação. Um museu é muito maior do que isso. Há outras imagens e dados que podem ser acessados a partir de outras pessoas que lá trabalham. Outro ponto de interesse dessas fotografias reside no fato de terem sido produzidas de acordo com os mesmo procedimentos utilizados na realização das imagens oficiais do Ateneum. No dia a dia, porém, não atuam como instrumentos de replicação do modo oficial de se ver um museu; possuem uma utilidade anterior e de outra ordem: permitem manter as portas da instituição funcionando e abertas.

Ainda no âmbito da prospecção arquivística alternativa, mais humana e afetiva, do Ateneum, os funcionários dos guarda-volumes relataram uma história famosa entre eles. Em 42

setembro de 2015, uma senhora lhes entregou uma grande mala para ser guardada. Minutos depois, eles ouviram latidos vindos de dentro dela. Eram de um pequeno cachorro que havia sido abandonado por ela. Câmaras de segurança do museu mostraram que a mulher entregou a mala e foi embora, sem visitar as exposições. De forma lúdica, talvez isso sugira uma possível nova utilidade dos guarda-volumes de museus: um espaço para as pessoas se desfazerem de coisas que não querem mais.

Relatos como esses relatos levam a uma questão, a meu ver, fundamental: o que aconteceria se os museus oferecessem mais protagonismo para o corpo técnico responsáveis por seu funcionamento? Defendo que os ganhos seriam enormes à instituição e ao público. Faço essa afirmação com confiança, não apenas baseado nessas e em outras histórias recolhidas com os funcionários do Ateneum, mas também porque a convivência com trabalhadores de espaços de arte tem sido uma constante em meu trabalho desde então. Por meio dessa postura, pude criar trabalhos artísticos que dialogaram de forma mais direta com o público e foram capazes de revelar uma série de novas compreensões sobre o sistema da arte. Na conclusão desta tese, irei discutir as ações do projeto Outra 33 ª Bienal de São Paulo e apresentar os ganhos, por exemplo, da realização de faixas para o audioguia da mostra com funcionários da instituição. Nos áudios, eles comentam trabalhos artísticos da 42 Não cito seus nomes a pedido deles.

exposição com que conviveram diariamente ou que ajudaram a instalar. Essa ação foi, aliás, um desdobramento de uma entrevista que fiz com Mikko Viinikainen, um guarda do Ateneum que, responsável pela segurança de diferentes áreas expositivas, esforça-se para passar o máximo de tempo próximo à pintura à óleo Boys Playing on the Shore (Children Playing on the Shore) (1884), de Albert Edelfelt, extremamente conhecida na Finlândia. Interessei-me em ouvi-lo sobre sua percepção da obra quando soube que sua paixão por ela era tamanha que o motivou a entrar em um curso de pintura para, um dia, tentar realizar sua própria versão dela. Além disso, ele solicitou a customização seu cartão de débito e crédito com a imagem da peça.

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O cartão bancário do vigilante do Ateneum, com imagem da pintura Boys Playing on the Shore (Children Playing on the Shore) , de Albert Edelfelt.

168 Ouvi-lo sobre a pintura foi mais que escutar um fã e me levou a perceber o quanto se pode aprender com as vozes daqueles que convivem diariamente com obras de arte. É bem verdade que professores de arte, curadores e críticos de arte cumprem a função de discutir questões oriundas da produção artística. Mas o ganho aqui é de outra ordem: são considerações de quem de fato convive com esses objetos (e não com suas reproduções) e que, por serem expressas por não especialistas, tendem a ser mais acessíveis ao público geral. Veicular institucionalmente o que pensam os funcionários do museu seria um interessante modo de valorizá-los e, ao mesmo tempo, se opor ao senso comum de que arte é assunto de especialistas. Suas opiniões e interpretações certamente têm muito a contribuir para uma relação mais aberta entre arte e público geral. Reproduzo aqui um trecho do que ouvi de Viinikainen que demonstra como seria bem-vindo o incentivo a esse modo de mediação com coleções museológicas:

Esse menino de camisa branca me lembra meu filho mais velho, quando criança. Sempre comentei isso para os visitantes que paravam por mais de um minuto diante da pintura. Essa informação costuma funcionar, as pessoas tendem a criar suas próprias relações, puxar algum fio de memória e construir uma série de outras pequenas comparações. Há um ano, porém, ao utilizar essa tática com um senhor de idade parecida com a minha, ele não só concordou com o que falei, como também disse que o outro menino da pintura (o que segura um graveto) também se parecia com seu filho. Num primeiro momento, achei que aquele havia sido apenas um comentário educado (o público daqui tende a ser bastante polido e simpático). Mas tive uma imensa surpresa quando ele retirou de seu bolso sua carteira e me mostrou uma pequena fotografia do filho. Ele era mesmo idêntico ao da pintura. Conversamos bastante sobre isso e concluímos juntos que essa pintura não é apenas o que os críticos de arte falam e escrevem dela. Ela é também a pintura de nossos filhos queridos. 43

A última experiência arquivística discutida aqui também é decorrente da ação de um funcionário, que me possibilitou acesso a espaços que seriam de outra forma interditos para mim. Nos quatro meses em que visitei salas expositivas de inúmeros outros museus, mas nunca do Ateneum, produzi um conjunto imenso de fotografias das câmeras de segurança desses espaços. Muitas são as razões para meu fascínio com esses dispositivos. A primeira é de ordem física. No capítulo 3, discuto a presença de um corpo fotográfico (o da câmera do visitante) no espaço expositivo. Mas a verdade é que para, além dos aparatos fotográficos

169 portáteis, há ainda esse outro equipamento de gravação de imagens – discreto, quase sempre escondido nos cantos superiores das salas expositivas e sempre operante.

A segunda razão para meu interesse por tais equipamentos está relacionada a como eles atuam sobre a expografia das mostras. Mesmo em áreas expositivas meticulosamente construídas para oferecer certo realismo ou favorecer a comunicação da narrativa oficial que o museu está interessado em replicar, lá estão as câmeras de vigilância. E sua mensagem parece ser clara: tudo aquilo é cenário de um espetáculo (discretamente) vigiado.

Uma câmera de vigilância em sala expositiva do Hagia Sophia, Istambul. Mais: p. 519 a 535 no livro de imagens

O conjunto de fotografias das câmeras de segurança de outros museus inspirou a criação de uma nova estratégia de mediação. A partir do entendimento de que esses aparatos são também criadores de memória nos museus (embora sob pontos de vistas muito distintos e de resolução muito inferior à das imagens dos arquivos oficiais), pude me aproximar das

170 áreas expositivas do Ateneum sem desrespeitar a limitação conceitual de não adentrá-las fisicamente.

Obter acesso às imagens das câmeras de vigilância foi bastante complexo, por questões evidentes de segurança. Fui autorizado a realizar uma única foto em que algumas dessas imagens figurassem. Como se pode notar, não soube aproveitar bem a ocasião.

Imagem produzida rapidamente da cabine de vigilância do museu Ateneum. Esta foi a única fotografia que me foi permitida produzir no local

Visto que, por essa razão, não posso mostrar as imagens que analisei, resta-me descrever aqui como os pontos de vistas superior das obras e dos espaços expositivos gera resultados curiosos. Pinturas retangulares ou quadradas e esculturas verticais muitas vezes

171 são distorcidas por completo pelas lentes das câmeras, posicionadas em locais a partir dos quais seres humanos não observam, via de regra, obras de arte em museus.

O mais surpreendente, todavia, foi a mudança radical ocorrida nas peças artísticas e no espaço em um material de baixa resolução (muitas vezes até mesmo pixelizado). Como não fui autorizado a reproduzir as imagens produzidas pelas câmeras, realizei experiências que resultaram em registros semelhantes aos que vi na cabine de segurança do Ateneum.

Em duas ocasiões diferentes, organizei dinâmicas em que uma pessoa entrava nas salas expositivas e as mostrava por videoconferência a outra pessoa — eu mesmo, em uma ocasião. Situado em uma das áreas comuns do museu, o segundo participante experimentava um modo de visitar o Ateneum a partir da presença física de um outro. Esses vídeos, transmitidos por Skype, originaram também imagens estáticas. Como o sinal de internet nas salas expositivas do Ateneum é intermitente (devido às paredes espessas do edifício), grande parte desses registros são de baixíssima qualidade, semelhantes às que presenciei nos monitores de vigilância.

Uma imagem de videoconferências no Ateneum, de qualidade semelhante aos registros das câmeras de vigilância do local Mais: p. 536 a 546 no livro de imagens

Esse conjunto de imagens integra a um tipo de material cada vez mais comum em tempos de virtualidade e circulação rápida de imagens por meio de aplicativos de mensagens instantâneas. De acordo com a pesquisadora e artista visual Hito Steyerl, esse tipo de imagem:

(...) não é mais sobre o real coisa – o original originário. Em vez disso, é sobre suas próprias condições reais de existência: sobre circulação de enxame, dispersão digital, fraturado e temporalidades flexíveis. É sobre o desafio e apropriação, assim como é sobre o conformismo e exploração. Em suma: é sobre a realidade. 44

Essas imagens são reunidas aqui com a intenção de propor ainda mais um arquivo possível de museus: aquele constituído por registros que não buscam ser fiéis às obras e aos espaços artísticos, mas estão interessados em transformá-los em outro nível de realidade, dando continuidade ao processo de construção de percepções tão caro aos museus e suas obras. Dentro da cabine do vigia, há um outro museu. Um museu impreciso e reservado exclusivamente para quatro pessoas: o plantonista e os seguranças da manhã, da tarde e da noite. O que se passa nela não pode ser divulgado; no máximo, pode ser simulado por meio de imagens semelhantes, como as apresentadas aqui — as quais, aliás, por carregarem o logotipo do Skype, possuem uma camada adicional de significação. Elas são registros guardados na nuvem de dados da internet e configuram trocas virtuais.