• Nenhum resultado encontrado

Para além do Museu Paulista: outras frestas possíveis

Em 2018, um movimento por parte do Museu Paulista contribuiu para potencializar o projeto Independência ou Morte – O Povo , em especial seu interesse em criar novos prolongamentos visuais da imagem de Américo. O fato foi que uma das pinturas da série, a que individualiza o boiadeiro, realizada na primeira das experiências (p. 148 do Livro de imagens ), foi adquirida pela instituição e, agora, faz parte de sua coleção.

Detalhe do documento oficial do museu que oficializa a entrada da obra Independência ou Morte – O Povo 1 na coleção do Museu Paulista

101 É um caso rico em significados. Primeiro porque a entrada da obra a coloca no mesmo sistema que legitima a obra de Pedro Américo e ela pode ser um objeto artístico a ser exibido no Museu Paulista quando aberto, dividindo o mesmo espaço físico da obra que revisa criticamente e, assim, disputando narrativas. Mas, para além da questão física expositiva, há uma camada arquivística que não depende da reinauguração do local. Ela já foi oficializada. Uma pesquisa atual na coleção do Museu Paulista sobre “Independência ou Morte” é agora um conjunto de resultados que não mais se relaciona apenas com a grande pintura a óleo de P. Américo e que constrói a visão oficial da independência do Brasil, mas também possui uma imagem que reforça algo que a pintura maior justamente tenta minimizar, a saber, a ideia do povo brasileiro. Trata-se de um caso em que de fato uma obra de arte conceitual conseguiu contaminar um sistema oficial de significados e discursos. Como combinado, o valor oferecido pelo Museu foi dividido com os pintores que, hoje, se mostram felizes por possuir uma obra de arte em uma importante coleção brasileira e possuem claro entendimento da operação discutida aqui.

A entrada da obra na coleção do Museu Paulista fez com que me reunisse com os pintores no final de 2018. O que era para ser um encontro de comemoração logo se transformou em uma oportunidade para decidir o que faríamos dali em diante. O projeto Independência ou Morte – O Povo não deixou de existir depois que o longo painel do Sesc Ipiranga foi retirado e armazenado. A produção de novas versões do pintura de Américo continua até hoje, dando continuidade à individualização das áreas que mostram o povo na imagem. Ainda assim, aquela reunião mostrava uma vontade maior por parte dos pintores.

103

Duas outras pinturas realizadas após a experiência do Sesc Ipiranga, estas de autoria exclusiva de Carlos Silvério. Óleo sobre tela, 20 cm x 30 cm cada

Juntos notamos que, mais do que a façanha de ter realizado uma revisão crítica consistente de uma pintura conhecida, acabamos por criar algo além da problematização de Independência ou Morte . Os quatro anos de experiências nos ajudou a criar uma espécie de metodologia própria de problematizações de pinturas históricas, até então só aplicada para a imagem de Américo, mas de fácil replicação em outros discursos visuais oficiais. Em outras palavras, tínhamos a experiência necessária para ir além do Museu Paulista e realizar experiências de releituras e de contaminações em outros espaços da arte.

Trata-se de uma etapa ainda em processo, mas já com alguns resultados promissores. Nossa primeira experiência de extensão da pesquisa se deu com Proclamação da República (1889), uma pintura de Oscar Pereira da Silva, parte da coleção do Museu Casa de Benjamin Constant, Rio de Janeiro. Chama a atenção nessa composição pictórica como o movimento de proclamação da República ocorre de forma totalmente afastada do público que a assiste. Mas, mais do que repetir a lógica de um povo como mero espectador, noção já presente na pintura de Américo, o caso aqui parece ainda mais emblemático. As figuras populares nessa obra não

só estão separadas do acontecimento histórico por uma simples disposição geográfica, mas também por causa de um longo cordão de militares que isola tudo o que ocorre como fato histórico e, como se não bastasse, dá as costas para o povo que não pode se aproximar. Nossa versão foi a de pintar uma faixa horizontal somente com esses militares, numa tentativa de destacar que os processos históricos brasileiros invariavelmente são produzidos a partir do uso da força do Estado.

Proclamação da República (1889), pintura de Oscar Pereira da Silva. Óleo sobre tela, 80 cm x 124 cm

Proclamação da República – A Força do Estado (2018), pintura realizada em conjunto com Carlos Silvério e Moisés dos Santos. Óleo sobre tecido, 33 cm x 124 cm

Outra pintura é uma resposta crítica a uma obra realizada fora do Brasil e já indica os movimentos dos próximos capítulos desta tese – indo além do Museu Paulista, com

105 problematizações em outras instituições museológicas. O pintor Eero Nelimarkka foi um conhecido artista finlandês do século XIX, autor de paisagens da região nórdica e de retratos de nomes importantes da elite da Finlândia de sua época. Tomei conhecimento de sua importância e de grande parte das suas obras quando passei a estudar o museu Ateneum, em Helsinque, objeto de estudo do capítulo 2.

Entre suas obras, há uma pintura que definitivamente não é uma das mais conhecidas pelo público, mas que se encaixa parcialmente nesse conjunto de problematizações de pinturas que marginalizam a representação popular. Diferente das imagens de Américo e de Pereira da Silva, ela é uma composição de cunho mais intimista. Trata-se de uma pintura em que Nelimarkka representa quem limpava seu ateliê. O artista nomeia essa mulher no título da obra, Miss Kekäläinen (1916), o que poderia ser um ato de valorização e gratidão para com a profissional, não fosse o fato de que ele a representa de costas, sem mostrar seu rosto.

Durante quatro meses, e com ajuda do Museu Nelimarkka, uma fundação que preserva a história e algumas obras do artista, localizada na cidade finlandesa de Alajärv, busquei algum tipo de documento que pudesse oferecer informações sobre o rosto de Kekäläinen, mas quase nada foi encontrado. As únicas informações sobre ela era sua amizade com o poeta finlandês Larin Kyösti, e que seu endereço naquela época era Lindsved, 7, em Helsinque.

Ainda assim, Andrade e eu produzimos uma nova versão dessa pintura, nas mesmas dimensões da de Nelimarkka, em que Miss Kekäläinen aparece agora ao menos com o rosto virado para o público que vê a tela. Um leve esfumaçado foi colocado na área do rosto. A obra intitulada Miss Kekäläinen - In search of your face foi doada para o museu do artista com a condição de que, caso informações sobre seu rosto fossem encontradas, a obra voltaria a São Paulo para ser retocada por nós.

107 Esses são alguns exemplos que mostram como a experiência com os pintores da Praça da República e do Parque Trianon-Masp não apenas problematizaram lacunas de uma obra indisponível do Museu Paulista, mas também criaram de fato um método de contaminação nas narrativas oficiais de obras e instituições históricas. Muitos outros capítulos devem ocorrer nos próximos anos, frutos de uma parceria coletiva que prova que os diferentes sistemas da arte (no caso o contemporâneo e o acadêmico/tradicional) podem se aliar para a construção de novos modos visuais.

O que aprendi com as ações do Museu Paulista e com esses pintores vai muito além de novas experiências pictóricas. Elas foram fundamentais na constituição de uma postura crítica e, acima de tudo, propositiva diante de museus e seus objetos e discursos legitimados. A prova disso é que elas ultrapassaram a área do Parque da Independência e invadiram muitos outros territórios, como veremos nos dois próximos capítulos.

Anexo 1

109

Transcrição do que foi lido na manhã de 7 de setembro de 2016 por Bruno Moreschi na frente da pintura Independência ou Morte , de Pedro Américo, localizada no interior do Museu Paulista, na companhia dos pintores Moisés dos Santos, Silvio Jr., Marco Andrade Jr., Carlos Silvério, Antônio Castro e Vanderlei Marinho.

“Neste mês de setembro, completam-se três anos que iniciei um projeto chamado O Museu está fechado para obras – aviso que aparece (ou aparecia) em uma placa na grade de contenção do Museu Paulista e que avisa sua condição atual de fechamento, mas não de inação. Em 2014, convidei alguns pintores da Praça da República para realizar uma espécie de versão desta tela que agora temos diante de nós: a obra Independência ou Morte , uma pintura a óleo de 4,17 metros de altura por 7,60 metros de largura, pintada em 1888 por Pedro Américo. Naquela ocasião, por uma escolha consciente minha, respeitamos a condição de fechamento do museu com a pintura em seu interior, e decidimos sequer tentar entrar aqui para ver o trabalho em questão.

O pintor Marco Andrade Jr., um dos pintores que mais ativamente participou deste primeiro capítulo e que continua nessa segunda etapa, certamente se lembra muito bem das dificuldades que tivemos por não vermos a tela. Ao ter acesso a dezenas de reproduções encontradas em livros e especialmente na internet, entramos no campo que mais me motiva nesse projeto: não de fato o campo da pintura, mas o da imagem. O mundo das múltiplas reproduções não nos permitia, por exemplo, saber de fato quais eram as cores presentes no céu da pintura e até onde ia o riacho no canto inferior do quadro (havia reproduções em que o Ipiranga sequer aparecia). As imprecisões não foram encaradas por mim como impedimentos,

mas como um conjunto de ganhos. Entre eles, a possibilidade de me colocar no local que de fato me interessa como artista e pesquisador visual: o complexo campo do sistema autor , uma rede intrincada de múltiplas camadas que permite dizer que um Pierre Menard escreveu D. Quixote assim como Miguel de Cervantes e… por que não?… que os pintores da Praça da República, após essas experiências, são também parte das camadas autorais e imagéticas do que chamamos de Independência ou Morte .

Após três anos, um segundo capítulo se inicia neste longo projeto. Ele começa hoje, na data comemorativa de 7 de setembro, independência do Brasil, e se estende até 15 de novembro, o dia da proclamação do República. Mas algo curioso diferencia essa experiência a ser realizada em 2016 em relação à que foi realizada no passado. É justamente o fato de estarmos agora frente a frente com Independência ou Morte , a pintura de Pedro Américo. Na primeira experiência, em 2014, não vimos este grande objeto que ocupa um suntuoso salão e, mesmo assim (e talvez por isso), decidimos criar uma nova versão. Agora, que finalmente estamos diante da imagem, que podemos ver os detalhes mais escondidos, não vamos criar uma nova versão da sua totalidade.

O fio conceitual que nos guia nessa segunda experiência é aquilo que quase nunca é de fato notado na imagem, ou seja, esqueçamos D. Pedro I com sua espada e a carta de seu pai recebida de Portugal, a Guarda Imperial e seus cavalos oficiais, todo o semicírculo que constitui a representação pictórica do fato histórico. O que nos interessa agora é fugir desse núcleo e irmos para os cantos da imagem, onde estão sub-representadas as figuras populares, os não estrangeiros, os que habitaram de fato a região onde foi construído o Museu, o parque, e que virou morada definitiva da pintura.

Quando reli o texto Brado do Ipiranga , escrito por Pedro Américo, não tive dúvida de que o desejo inicial de focar nesses populares seria um caminho rico de significados. Isso porque ao construir a tela, Pedro Américo fez justamente o oposto do que agora desejamos fazer. Essas figuras merecem apenas dois parágrafos curtos de um total de 79 que compõem o texto. E apenas confirmam o que quase não se vê na tela. Ele escreve:

‘Pessoas conspícuas sugeriram-me a ideia de pintar no fundo do painel algumas das tropas de asnos características do sertão de São Paulo. Julguei ousadia fazê-lo em pintura de tão alto assunto; e apenas represento um carro de boi, ainda mais característico do lugar, para lembrar a placidez habitual daquelas paragens, inesperado teatro da extraordinária cena.’

E continua:

‘Conquanto obrigados em parte avultadas dimensões por ocuparem o primeiro plano do quadro, as figuras situadas à esquerda do espectador são meros acessórios, que procurei

111 estudar no próprio cenário da proclamação da Independência, tanto para acentuar a fisionomia deste, quanto para completar a harmonia linear da composição, atendendo às exigências da euritmia.’

Curioso é notar que a natureza também pode ser vista aqui como um povo esquecido, uma imagem secundária. Ele escreve:

‘Para satisfazer o geral desejo de ver representado o célebre riacho do Ipiranga – o qual na realidade passaria à distância de alguns metros atrás de quem observa o painel –, forcei a perspectiva pintando um simulacro de corrente aos pés dos cavaleiros do primeiro plano. Desculpe-me o público essa quase insignificante violência à topografia, considerando a necessidade de consagrar na pintura a ideia do ribeiro cujo nome tão intimamente ligou-se ao glorioso fato da nossa emancipação política.’

Não por acaso o Riacho do Ipiranga logo à frente do parque em que nos encontramos é hoje um esgoto a céu aberto.

Nosso caminho é o oposto de Pedro Américo. Em um painel de 3 metros de altura por 24 metros de largura, vamos desmantelar essa imagem a partir de outras que representam os tais ‘meros acessórios’: o homem e seu carro de boi; dois trabalhadores com seus asnos, as crianças curiosas que se escondem por trás de uma cerca; um vulto na janela da Casa do Grito; e uma pequena parte da vegetação da região e do riacho do Ipiranga.

Meu interesse com esse desmembramento da pintura é uma espécie de contribuição a algo que a professora e pesquisadora Claudia Valladão de Mattos Avolese aponta em um artigo recente chamado ‘Independência ou Morte!’ de Pedro Américo: entre a materialidade da obra e a imagem em construção . Ela escreve:

‘Será que tudo já teria sido dito sobre o quadro Independência ou Morte ? Temos a impressão de que, em sua trajetória, o quadro adquiriu uma posição estável e um lugar definitivo na História da Arte, mas ao mesmo tempo ele deixou de ser interessante e instigante do ponto de vista acadêmico. A quase total ausência de bibliografia recente sobre ele parece indicar isso. Incomodados com essa ausência de vida do quadro, procuramos retornar à sua materialidade em busca de interpretações alternativas e novas questões’.

Não falo pelos outros pintores aqui presentes, falo só por mim. Eles podem falar por eles mesmos. Individualizar o que aparece em uma pintura histórica como secundário não é apenas uma problematização de como se constitui a História (sempre contada pelos vencedores, é claro). Mas também uma provocação a praticamente todo o processo histórico que ocorre no Brasil. Hoje mais do que nunca (ou hoje como sempre), constrói-se uma História brasileira a

partir de conchavos, emendas, estados de exceção, clientelismo e jogos variados de benesses à elite dominante (‘Tamo junto’, disse Renan Calheiros durante a ficção de um impeachment ilegítimo). O povo vota, mas o rito é ‘mero acessório’.

A longa faixa de pintura com figuras do povo que iremos realizar no jardim do Sesc Ipiranga será propositadamente não protegida por nenhum tipo de toldo. Ela ficará a céu aberto, à mercê da chuva, do vento e de todos que ali passarem. Dificilmente conseguirá se constituir de fato. Talvez assim também seja o Brasil.”

113

Anexo 2

114 Parceria com o arquiteto Flavio Franzosi e o botânico Anderson Santos.

Resultados de três visitas de campo no entorno do riacho do Ipiranga Flora encontrada na região do Riacho:

● Caliandra ( Calliandra harrisii );

● Capim-dos-pampas ( Cortaderia selloana ); ● Grama (qualquer espécie).

Fauna encontrada na região do Riacho: ● Pomba ( Columba livia );

● Rato-preto (Rattus rattus); ● Gato ( Felis catus );

● Mosca ( Musca domestica );

● Urubu-de-cabeça-preta ( Coragyps atratus ). Objetos encontrados na mesma região:

● Preservativos (usados); ● Cachimbos de crack; ● Bitucas de cigarro; ● Seringas descartáveis. Observações

● Utilização do mesmo material (bronze) e técnica (fundição) utilizados nas ânforas do Museu Paulista;

● Elaboração de um projeto técnico para busca de financiamento; ● Tentativa de doação da peça ao Museu.

115

Estudo 1 para ânfora do riacho do Ipiringa. Lápis e nanquim sobre papel

Estudo 2 para ânfora do Riacho do Ipiringa. Lápis e nanquim sobre papel

118

Capítulo 2

Olhares mediados por arquivos (oficiais e não oficiais) Confrontos entre documentos e presenças