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2. A SEGUNDA EMERGÊNCIA: O DIÁLOGO

2.2. A teoria do diálogo

2.2.5. Indicadores de diálogo

Como visto acima, diálogo é um conceito/prática que tem recebido atenção e importância crescentes. No entanto, a ampla gama de significados com os quais tem sido relacionado permite que a terminologia descreva, basicamente, qualquer tipo de conversa (ISAACS, 2001). Isso leva à pertinência de se deixar claro o que se quer dizer quando se alude a ele. Também, de se sugerirem mecanismos práticos que colaborem com o reconhecimento, dentro de um determinado processo em curso, de que o diálogo emergiu ou está para emergir. Para isso é fundamental a identificação de indicadores de diálogo.

Apesar da polissemia do termo, pode-se encontrar uma ampla gama de autores que consideram que o diálogo é uma forma de conversa que se dá dentro de uma condição de simetria ou igualdade (BUBER, 1979; FREIRE, 1983; 1987; 1998; ISAACS, 1993; 1999a; 1999b; 2001; s.d; BOHM, 1999; 2005; OLSSON e WOHLGEMUTH, 2003; SPINK, 2003; EDGREN, 2003, SUZUKI, 2003; OUATTARA, 2003; YANKELOVICH, 2001). Assim, indicadores de diálogo serão aqueles que demonstrarão que, em um determinado contexto, a igualdade está sendo construída. Isso significa, na prática, que esforços conscientes estão sendo feitos para que os obstáculos que se colocam ao diálogo sejam lidados e suplantados. O primeiro indicador a ser abordado aqui e o mais destacado por proponentes do diálogo (BOHM, 1999; 2005; YANKELOVICH, 2001; ISAACS, 2001; 1999a; 1999b; 1993; s.d) é o da suspensão de pressupostos.

Dentro da teoria dos campos de conversa de Isaacs (1999a), esquematizada na figura 1, acima, a situação na qual se estimula a suspensão de pressupostos se dá nos contextos que ele categoriza como campos II e III. O campo II é caracterizado pela polarização na conversa e emergência da tensão no grupo, conforme descrito acima, quando a cortesia inicial não se sustenta mais e quando o foco no grupo é substituído pelo foco no indivíduo. Para o autor, esse é um momento crucial, pois a conversa pode caminhar para uma discussão (conversa fragmentada, focada nos lados) e se transformar em um debate (na batalha), ou ser direcionada para o exercício de investigação, ou seja, para a análise dos pressupostos que estão impedindo a conversa de avançar (ISAACS, 2001). A centralidade desse momento em um processo de construção de diálogo se dá justamente porque o estado de conflito em

processos de grupo é uma experiência comum para os participantes, que não estão acostumados a ir além desse estágio. Para Isaacs (1999a), as tentativas de conversa, em geral, param aí, deixando para trás um grande trauma e resistência para outras experiências ou retornam para a fase inicial, a da superficialidade.

Ainda segundo o autor, a suspensão é o momento da mudança de direção na conversa, uma parada ou passo atrás no sentido de se olhar para o que está ocorrendo com novos olhos (Ibid.). Alguns autores que lidam com o tema do diálogo conforme abordado aqui descrevem, em suas obras, situações coletivas que vivenciaram e que evidenciam a ocorrência da suspensão de pressupostos. As conclusões e os princípios de algumas dessas situações serão abordadas abaixo:

Um primeiro exemplo de suspensão pode ser observado em uma situação em que a ênfase da conversa se desloca de respostas pré-programadas e de argumentos inscritos nos papéis sociais para uma situação menos preparada. Isso pode ocorrer porque os argumentos prontos terminaram ou porque é levantada uma questão para a qual ninguém tem uma resposta pronta. Nesse momento, inicia-se realmente uma conversa mais equitativa e investigativa em torno da questão, pois surge uma possibilidade para a construção criativa que, por sua vez, é capaz de aproximar os participantes (YANKELOVICH, 2001).

A suspensão pode ocorrer também quando, em uma determinada situação específica que alcançou um ponto recorrente, se faz uma alusão a algum aspecto incoerente mais geral que sempre vai produzir os mesmos resultados incoerentes nas questões específicas. Ou seja, quando os princípios de operação ou funcionamento de algo são trazidos para a conversa e debatidos ao invés da questão específica em si, geradora do conflito. Isso reduz o foco da tensão e distancia os participantes da conversa de suas obsessões (que são relativas aos temas específicos) para colocá-los em uma situação em que serão capazes de analisar as causas do conflito de forma mais criativa (Ibid.).

O terceiro exemplo de suspensão abordou a demonstração de atenção e de cuidado na compreensão das razões que levam os participantes a pensar e agir de determinado modo. Como coloca Bohm (1999), pensamentos e ações das pessoas decorrem de sua história de vida e farão sentido para os demais se esse contexto for exposto.

Isaacs (1999a) destaca a ocorrência do levantamento, entre os participantes da conversa, de prós e contras acerca de um determinado assunto. Para o autor, a busca pela solução conjunta

valoriza a participação e a produção coletiva em detrimento das posições individuais, além de fomentar o sentimento de coautoria, que por sua vez colabora para a coesão do grupo. Ainda, o autor ilustra o processo de suspensão ocorrendo a partir da externalização, por parte de um participante, de seus pensamentos e dilemas sobre um assunto, o que pode levar também ao envolvimento do grupo.

Uma última demonstração de suspensão, abordada por Isaacs (1999a), diz respeito ao questionamento das categorias fundamentais e rótulos que são aplicados uns aos outros e que carregam consigo o histórico das relações entre os papéis sociais. Como coloca o autor, muitas das nossas opiniões decorrem de inferências feitas e não comprovadas a respeito dos outros. Tais inferências acabam por tornar-se realidade e, com o tempo, podem ainda inflar. É necessário então que elas sejam desafiadas e que essas percepções superficiais sejam complementadas por outros elementos que vão sendo adicionados à medida que conhecemos melhor uns aos outros. Por exemplo, para um facilitador de diálogo, receber um depoimento de algum membro do grupo surpreso com a diferença na comparação daquilo que percebeu do comportamento de alguém com o que esperava desse comportamento a partir do que tinha ouvido falar, de seu comportamento em outros contextos ou ainda do que esperava por sua posição social, demonstra o processo de suspensão.

Outros indicadores de diálogo são gestos que explicitam o desejo de se humanizar a conversa, torná-la uma relação sujeito-sujeito, ao invés da manutenção dos papéis sociais e hierarquias: nos casos citados por Yankelovich (2001), aparecem demonstrações de compreensão e atribuição de legitimidade das preocupações alheias, o desempenho de gestos de ajuda, de colaboração, solidariedade e de ações que visem facilitar a horizontalidade nas relações (principalmente quando o que se espera é justamente o contrário), a ocorrência de pedidos de desculpas e também expressões emotivas, quando cabíveis. Nesse contexto, o autor ressalta a importância do “primeiro passo” (Ibid., p.88, tradução nossa), dificultado pela sensação de fraqueza e de derrota que pode ensejar para os demais participantes.

Freire (1998) e Isaacs (1999a) abordam, por sua vez, comportamentos que demonstram a disponibilidade ao outro, à escuta. De fato, a presença genuína dos participantes de um grupo pode ser percebida por meio de seus comportamentos, a concentração no que está sendo feito, a disponibilidade de tempo, a presença nos encontros etc.. Uma estratégia utilizada por Spink (2003) em um conjunto de reuniões com atores de diversas instituições para se discutir a pobreza, visando aumentar as chances de disponibilidade dos participantes, foi a de permitir a

participação à apenas aqueles que pudessem garantir a presença ao longo de todo o encontro. Isso impede, por exemplo, posturas comuns como a de dar o seu recado e, logo depois, sob algum pretexto, deixar o evento, o que pode ser recebido como um anúncio de falta de comprometimento ou de respeito, e realmente minar a legitimidade do evento.

Da mesma forma, escutar é muito mais do que ouvir a voz do outro, como está implícito na questão que intitula o texto de Emiliani (2003), “o diálogo na cooperação internacional: quem ouve?”. Ouvir de fato é se importar, levar em consideração o que é dito e inserir o dito nos processos de tomada de decisão. Assim, a inclusão das reivindicações feitas nos documentos ou nos procedimentos seguintes dos processos em questão pode ser considerada como um indicador de diálogo.

Freire (1983; 1987; 1998) cita também as demonstrações de humildade, que caminham pari

passu com a autopercepção de incompletude e, portanto, da importância do outro, do diferente como alguém que tem algo a ensinar, o respeito de Isaacs (1999a). Há ainda demonstrações de segurança individual e confiança (FREIRE, 1987; OLSSON E WOHLGEMUTH, 2003), que ocorrem, por exemplo, quando participantes expõem questões pessoais publicamente, quando aqueles mais quietos se expressam ou ainda quando alguém admite algo que estava relutante (YANKELOVICH, 2001).

Um exemplo disso ocorreu no projeto descrito por Andrade, Croisfelts e Laguna (2004), desenvolvido com professores de em uma escola pública. O projeto teve dois módulos, um de formação dos próprios professores e um segundo no qual um projeto, ou mais, seriam desenvolvidos pelos mesmos em conjunto com os alunos. No momento do levantamento de temas para a realização dos projetos com os alunos, várias ideias surgiram e passaram a competir umas com as outras. Todas elas direcionadas aos alunos. Até que uma professora se colocou: “não é possível se trabalhar a questão de valores com alunos se não há harmonia entre os professores e os demais profissionais da escola” (Ibid., p. 98). Essa intervenção mudou os ânimos e os rumos da conversa, que passou a ser direcionada aos próprios professores e à escola como um todo. Os professores concordaram, a competição por temas diminuiu e uma nova busca se iniciou. O resultado visível foi a realização de um projeto com ênfase em “meio ambiente e valores humanos” e os invisíveis, tácitos, foram vários outros, como a mudanças didáticas e pedagógicas no cotidiano dos professores, uma percepção mais abrangente do tema “meio ambiente” e a formação de um vínculo antes inexistente entre eles.

Ao contrário do que se pode esperar, um indicador de que um diálogo saudável está em curso é a emergência de confrontos (Buber, 1991; Silva, 1996). A externalização de diferenças demonstra que o espaço atingiu um nível de segurança que o coloca além da cordialidade superficial abordada acima. Da mesma forma, o surgimento do confronto demonstra que os participantes estão confiantes o bastante para colocar as suas posições em um contexto adverso. O importante nesses casos é que o enfoque o confronto seja nas ideias e não nas pessoas que as proferem, ou seja, no centro e não nos lados.

Por fim, Yankelovich (2001) destaca, como um indicador de diálogo, quando surgem afinidades entre pessoas do grupo que, inicialmente, percebiam apenas que tinham fortes discordâncias, se viam e se tratavam a partir dos estereótipos pré-concebidos.

Essas são algumas situações que podem indicar momentos de transição em que a conversa vai passar de uma condição polarizada para, de fato, uma construção coletiva, que a confiança e o respeito estão sendo formados e que o grupo está se tornando, de fato, um grupo. Obviamente, os exemplos de indicadores não se exaurem aqui. Várias outras demonstrações de suspensão de pressupostos, de humildade, da capacidade de ouvir etc. podem ocorrer. Ao mesmo tempo, a ocorrência das situações descritas aqui, ou outras, não garante que a condição dialógica está sendo alcançada. É importante, assim, que promotores de espaços de diálogo atentem-se a esses e também outros indicadores e sejam capazes de, no momento em que emergem, aproveitá-los no sentido de potencializar a condição dialógica emergente.

3. A TERCEIRA EMERGÊNCIA: A PESQUISA