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2. A SEGUNDA EMERGÊNCIA: O DIÁLOGO

2.2. A teoria do diálogo

2.2.3. Obstáculos ao diálogo

Bohm (1995; 1999; 2005) considera que um importante obstáculo ao diálogo e que subjaz a vários outros provém da fragmentação do pensamento, mencionada nas partes iniciais deste texto. Para o autor, a fragmentação artificial da realidade, sua posterior naturalização e a consequente separação entre sujeito e objeto criaram a percepção de que é possível que se tenha uma visão da realidade em sua totalidade e de que é possível, para o pensamento, encerrar todos os aspectos do real em si. Disso deriva a noção de certeza sobre as coisas e a dificuldade de perceber que visões de mundo são socialmente construídas (SPINK, 2003), a partir de espaços histórico-culturais diferentes (FREIRE, 1983). Também, decorre a incapacidade de percepção do potencial complementar e de aprendizado das discordâncias. Daí a dificuldade de convivência entre diferentes certezas ou opiniões, o que tende a levar para a condição de combate, de imposição de valores, de entrincheiramento, de foco na parte e busca de deslegitimação do outro. Esse outro, por sua vez, se torna progressivamente suas opiniões, é “sloganizado” (FREIRE, 1983), e como não há espaço para um aprofundamento das raízes dessas opiniões, elas são tomadas de forma estereotipada e superficiais. O processo dialógico visa, entre outras coisas, ultrapassar esses estereótipos e os papéis sociais de cada um, no encontro das “pessoas de carne e sangue” (YANKELOVICH, 2001, p. 105, tradução

nossa). Mergulhar nos estereótipos, individuais e coletivos, em processos de grupo também não é uma tarefa simples de se empreender, já que ao longo dos anos foram eles que permitiram a edificação da compreensão de ordem das coisas. Tocar neles é, portanto, um desafio que pode desestruturar toda uma vida de certezas, sem que se saiba, por trás delas, o que se encontrará (ISAACS, 1999a).

Por outro lado, se a opção é pelo reconhecimento dos limites das próprias percepções e, portanto, a legitimidade do outro, do potencial criativo da discordância, isso pressupõe a necessidade de inclusão das diferenças nos processos, o que traz, por sua vez, maiores dificuldades para o “funcionamento” de um grupo, já que desafia o modelo hierárquico com o qual as pessoas, em geral, estão acostumadas.

Por fim a cultura da fragmentação, que leva às conversa com “lados”, impede que atenção seja direcionada para os próprios processos subjacentes de pensamento que, segundo Bohm (2005), operam estratégias e bloqueios que, por sua vez, tendem a fazer com que as pessoas se alinhem aos pontos de vista que confirmam seus paradigmas e se afastem daqueles que os desafiam. Para o autor, a inconsciência quanto aos processos de pensamento de onde seus conteúdos emergem, leva a essa dificuldade de autoanálise.

Outro fator que se coloca, ao mesmo tempo em que o anterior, no caminho para a emergência do diálogo, está relacionado aos papéis sociais que as pessoas carregam e que acabam por defini-las, para si e para os outros, determinando sua forma de pensar e as ações a serem empreendidas. Tais papéis impedem o alcance da “absoluta singularidade” abordada por Brandão (2007) e também que a pessoa se situe no “tempo presente” de Buber (1979), já que há uma definição prévia do que se esperar de tais papéis e de quem os representa. Além disso, as assimetrias de poder carregadas pelos papéis sociais são geradoras de insegurança nas partes envolvidas e, com isso, impedem a reciprocidade. Como coloca Buber (Ibid.), os papéis sociais fazem parte das pessoas mas não são as pessoas, a sua humanidade (grifo nosso). Schein (1993) destaca em seu texto a dificuldade de se construir um espaço genuinamente dialógico devido a uma espécie de acordo social pelo qual questões desestabilizadoras da harmonia do grupo não devem ser explicitadas e trazidas para a mesa. Se, por um lado, isso possibilita o convívio social imediato, por outro fomenta a superficialidade das relações e impede, de fato, que se saiba o que de fato está ocorrendo com o grupo. Para o autor,

eventuais crises são importantes porque ao permitirem uma melhor compreensão da realidade, tendem a melhorar a coesão do grupo em longo prazo.

Spink (2003) chama a atenção para o fato de que o diálogo não pode ser considerado como algo que será alcançado em uma única reunião. Não pode, como visto anteriormente, ser tomado como um ponto de partida, “como algo que está instantaneamente disponível quando um encontro começa ou quando alguém pergunta ‘alguma questão’ após uma apresentação de vinte e cinco minutos” (Ibid., p. 182, tradução nossa). É, na verdade, uma condição a ser construída ao longo do tempo e que não precisa estar restrito a um tempo e espaço específicos.

Ainda em relação ao tempo, Freire (1983) demonstra em seu texto como que, na relação entre extensionistas agrônomos e camponeses, o diálogo é muitas vezes considerado “inviável” por conta da lentidão dos resultados. Essa é uma questão fundamental na formação de um processo dialógico, e a abordagem de Freire pode ser expandida para qualquer situação. A questão do tempo ou da sua economia é importante, no entanto, para aqueles que chegam ao processo com uma agenda pronta e um conjunto de resultados pré-definidos para serem alcançados e que almejam que isso seja realizado com ‘eficiência’. Para o autor, tempo perdido é o do “blá-blá-blá [...] ou do puro ativismo, pois que ambos não são tempos da verdadeira práxis” (Ibid., p. 33). Ainda, que a demora possa significar “um tempo que se ganha em solidez, em segurança, em autoconfiança e interconfiança” (Ibid.), que são alguns resultados intangíveis dos processos dialógicos (YANKELOVICH, 2001).

Um último aspecto que se coloca como entrave à ocorrência do diálogo é trazido por Yankelovich (2001), que aponta para a simples inexistência de abertura ao diálogo por parte de algumas pessoas. Várias razões podem ser trazidas para explicar um contexto deste tipo, entre elas a recusa para a conversa entre pontos de vista irreconciliáveis. Como coloca Bohm (1999), o ponto de partida crucial para a ocorrência do diálogo é a disposição dos envolvidos em participar, em compartilhar críticas, em ouvir, em ver o mundo e ser visto pelos olhos dos outros. É, portanto, fundamental que as pessoas queriam fazer parte do processo e estejam abertas para resistir às dificuldades que possam surgir. Segundo Freire (1983), como o diálogo é um encontro amoroso, ele não pode ser um encontro entre inconciliáveis.

Esse ponto, novamente, remete diretamente aos críticos do diálogo abordados acima. Alguns destacam ingenuidade dos propositores do diálogo nos encontros entre os irreconciliáveis.

Kaplan (2010), por exemplo, sugere ironicamente a promoção do diálogo entre latifundiários e representantes do Movimento dos Sem Terra, que seria impossibilitado pela distância entre os valores de um e de outro e da história de confrontos entre eles.

A questão que se coloca, então, é se é possível que se determine e que se elejam os contextos de irreconciliabilidade a princípio, antes que os processos, de fato, se deem. Isaacs (s.d), por exemplo, demonstra em seu relatório o resultado do sucesso de processos dialógicos em situações de tensão históricas consideradas, inicialmente pelo envolvidos, como insolúveis. Além dele, Gordon (1986) narra em seu livro o projeto que empreendeu por três anos visando ao desenvolvimento de relações dialógicas entre Israelenses e Árabes, e que se não foi completamente bem sucedido (no sentido de promover relações dialógicas entre todos os participantes e também posturas duradouras e resistentes às influências externas), conseguiu envolver parte de seus participantes em relações dialógicas.

Da mesma forma, enquanto se tecla estas linhas, sabe-se de um processo de aproximação em andamento no estado da Bahia, entre um movimento de trabalhadores sem terra com uma grande empresa (em âmbito mundial) de celulose e papel. O que se conclui, a partir desses exemplos, é que não é possível que se decrete a irreconciliabilidade a priori.

Nos quatro estudos de caso divulgados no relatório de Isaacs (s.d.), as partes envolvidas foram capazes de colocar em suspenso seus pressupostos de raiz e suas inferências acerca do outro e conviverem, e no caso de Israel, o que foi buscado foi a construção de espaços de diálogo, ou seja, espaços seguros para a emergência e a expressão da diversidade em sua genuinidade. Assim, conclui-se aqui que o diálogo não significa o abandono dos pontos de vista ou ideologias pelas partes. Também, que as dificuldades que se interpõem à consecução de práticas dialógicas não podem justificar sua exclusão como possibilidade coletiva. Assim, torna-se necessário o refinamento teórico-prático acerca de processos que possam reduzir a letalidade dos obstáculos colocados acima, e de outros não abordados, no sentido de se consolidar essas práticas.