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Comunicação global e nichos culturais: uma abordagem à estética das mensagens

1) Individuação e devires

Num tempo em que a crise de valores assoma as construções indi- viduantes, questões prementes impõem-se: quais são as figuras que impedem de dizer «eu sou», «eu existo», «eu sei quem sou» e de que forma estão ligadas às figurações colectivas que impe- dem de afirmar «nós somos» ou «nós existimos»? Compreender como se devém-eu, hoje, como se devém-povo, implica mapear as linhas de força que são a trama dos processos contemporâneos de individuação, por via de uma (des)localização das singularidades expressivas que os compõem numa teia global. Ao falarmos dos processos comunicacionais globalizados e dos segmentos recepto- res das suas mensagens somos levados a analisar estes fenómenos à luz da contemporaneidade de conceitos como a individuação colectiva, a transindividuação e a individuação subjectiva. E sob todos estes prismas, a noção de identidade(s) está implicada. Enquanto indivíduos e colectividades, lidamos diariamente com questões de índole psicológica, sociológica e comunicacional em torno da temática da identidade. Esta designa os processos de identificação das sociedades ocidentais dos nossos dias e resulta de uma movimentação superlativa de produção e circulação de toda uma imagética construtora de figurações mentais. Trata-se, pois, de uma maquinaria de produção conceptual absolutamente inclusiva que absorve no seu circuito tudo o que pode ser mar- ginal, integrando-o no seu movimento comunicacional global, numa teia estética que alimenta as necessidades plásticas dos públicos que lhe são destinados.

Pierre Klossowki escrevia, em 1971, na conclusão do seu livro, A Moeda Viva: «Se a produção aperfeiçoada dos instrumentos de pro-

dução consegue reduzir a mão-de-obra, se o tempo ganho a produzir tempo ganho se salda em tempo disponível para a sensação, para as competições do prazer (Fourier) – a própria sensação não será, ainda assim, gratuita.» (p. 73). Esta obra, tão pioneira quanto visionária, sublinhava, já no início dos anos 1970, o valor da atenção que cada indivíduo disponibiliza no circuito de transacção de mercadorias culturais. A emoção voluptuosa para o consumo é a moeda viva que os grandes canais de comunicação global pretendem cativar e comercializar ao integrá-la no circuito de produção de valor garantido pelo número ou pelo volume de audiência disponível e apta a consumir. Ora, o movimento que confunde e completa tal mecanismo – circuito das mensagens na engrenagem da comuni- cação-mundo – esvaziando-o do conteúdo portador de uma for- ça disruptiva e integrando, como mera forma expressiva, numa mega-produção estética de mensagens, a emoção voluptuosa do consumidor-receptor, é o próprio corpo da maquinaria – o meio, os media –, que designamos aqui «comunicação global».

Aos conceitos esvaziados de força, ou seja, os sujeitos cuja iden- tidade se constrói no âmago desta rede de produção estética de mensagens formatadas para o consumo em massa, correspon- dem blocos de individuação colectiva, que aqui designamos «nichos culturais».

Confundindo-se com as mensagens produzidas e difundidas pela comunicação global, as figurações arquetípicas – ou imagens mentais, verdadeiros símbolos do consumo a que a contempo- raneidade chama «marcas» – confundem-se com as mensagens aos olhos do sujeito consumidor, e as linhas de força – que são os objectos de desejo da emoção voluptuosa – ganham contornos ora de linhas disjuntivas, ora de linhas de fuga, ora de linhas de vida ou até linhas de morte. Falamos, claro, de migrações con- ceptuais ao nível das migrações humanas, dos êxodos formais e estéticos, de movimentos de circulação de corpos num eixo sul-norte, ou ainda da aniquilação de classes médias críticas e, justamente, constitutivas de espaços públicos como zonas tem- porariamente livres para a produção de opinião pública efectiva- mente crítica, em desaparição.

Perante tal cenário, que pode parecer alarmante, temos de enten- der os movimentos do grande sistema de comunicação global

que funciona em circuito fechado de produção-débito-consumo de informação – uma informação que não informa claramente, pecando por excesso e desorganização de dados, que não forma, porque, supostamente, a formação entedia, mas que diverte. Indústria do entretenimento, pois, do lazer, que anestesia (no sentido Proustiano do termo) e diminui o critério crítico e de produção de memória, conduzindo inexoravelmente as nossas sociedades para uma síndrome de anamnese e hipomnese (cf. Bernard Stiegler), com o perigo ameaçador da obsolescência do humano. É, justamente, este espaço comunicacional lúdico que é mais facilmente assimilado pelos espectadores da rede comu- nicacional mundial. Trata-se de uma rede que liga entre si os vários polos emissores e receptores de mensagens por todo o pla- neta, unificando e homogeneizando o código. Mas esta rede (cf. Manuel Castells) não é senão uma hipótese de comunicar. E é precisamente neste ponto que se pode tornar perigosa e totalitária, no momento em que exclui outras possibilidades de comunicação, instantaneamente e em rede. Será que o fim em si é apenas comunicar? Garantir e demonstrar que o sistema fun- ciona e não transmitir qualquer mensagem carregada de ideias? Providenciar um modus operandi de um pronto-a-pensar ou de um pronto-a-não-mais-se-individuar? Alguns pensadores con- temporâneos, como a filósofa Marie-José Mondzain, no seu livro Homo Spectator, alerta justamente para este perigo, defendendo que existe uma crise da imagem decorrente da condição passiva do espectador. Também Jacques Rancière subscreve esta posi- ção, mas propõe a emancipação do espectador como resposta a este aniquilamento anestésico do sentido crítico individual e colectivo, advogando ainda a possibilidade, já existente, de um universo estético que possa permitir essa emancipação: libertan- do os cidadãos e devolvendo-lhes a qualidade de intervenientes políticos activos de um espectáculo político mediatizado a nível planetário. Emancipar os espectadores do espectáculo uniformi- zador dominante, emancipar o aprendiz do seu mestre ou ainda instaurar o espaço comunitário de pensamento e livre expressão estética, no que denomina a partilha do sensível, eis alguns dos tópicos que abrem caminho a novas possibilidades de individua- ção colectiva como linhas de força libertadoras e emancipadoras das vidas singulares.

A intersubjectividade e a transindividuação são temas caros a outro pensador actual, também ele filósofo, mas um pouco mais céptico. Bernard Stiegler defende a urgência de o ser humano restaurar as suas faculdades cognitivas, designadamente a prá- tica da memória (individual, transindividual e colectiva), com a proposta de uma ontologia da emancipação tecnológica para evi- tar as técnicas de domínio e de controlo instauradas nos sistemas políticos das nossas sociedades capitalistas globalizadas.

Como devir-eu numa comunidade, como afirmar-se sem medo de existir, pergunta o filósofo português José Gil no seu famoso ensaio Portugal, Hoje - O Medo de Existir. Deste livro sobram mui- tas perguntas, nomeadamente no sentido da identidade singular, colectiva e global. Haverá uma identidade colectiva padrão de função molar (para falar com Gilles Deleuze) que se sobrepõe às várias identidades colectivas moleculares (cf. Deleuze e Guatta- ri)? Esta dicotomia molar (poder dominante) e molecular (devir minoritário) fecha o ciclo do nosso raciocínio, remetendo nova- mente para a dicotomia de Jacques Rancière entre a posição de quem vê de forma passiva e de quem vê, transformando, de for- ma activa a sua condição identitária singular e colectiva por via de uma partilha estética e ontológica do regime do sensível. Nada que Pierre Klossowksi não tivesse vislumbrado uns anos antes na sua Moeda Viva. Trata-se, como nos dizia Walter Benjamin no iní- cio do século XX, de um necessário treino para a sobrevivência perceptiva no seio dos novos meios de comunicação de massa. 2) O regime estético

Para lançarmos a questão e a possibilidade de um debate em tor- no daquilo que vemos e daquilo que nos é dado a ver, lembremos a alegoria da caverna de Platão (fala Sócrates a Glauco): «Imagi- na agora o estado da natureza humana com respeito à ciência e à ignorância, conforme o quadro que dele vou esboçar. Imagina uma caverna subterrânea que tenha a toda a sua largura uma abertura por onde entre livremente a luz e, nessa caverna, homens agrilhoa- dos desde a infância, de tal modo que não possam mudar de lugar nem volver a cabeça devido às cadeias que lhes prendem as pernas e o tronco, podendo tão-só ver aquilo que se encontra diante deles. Nas suas costas, a certa distância e a certa altura, existe um fogo

cujo fulgor os ilumina, e entre esse fogo e os prisioneiros depara-se um caminho dificilmente acessível. Ao lado desse caminho, imagi- na uma parede semelhante a esses tapumes que os charlatães de feira colocam entre si e os espectadores para esconder destes o jogo e os truques secretos das maravilhas que exibem. - Estou a imagi- nar tudo isso.» (Platão, República, LIV. VII).

A alegoria de Platão pode aqui funcionar como contraponto às fábulas estéticas insidiosamente moralizantes da comunicação globalizada, a comunicação-mundo, para falar com Armand Mat- telart. Estas fábulas surgem tanto na informação mediatizada dos grandes canais televisivos como na comunicação empresa- rial, seja ela desportiva ou institucional, quer se trate de ONG’s ou das publicações oficiais da ONU. Com o advento das empresas (cf. Jacques Attali) transnacionais e das suas tentaculares filiais, é bem visível a forma processual e o modelo de expansão cultural globalizante por estas protagonizado, através dos seus métodos de estetização dos produtos fornecidos e impostos nas culturas locais e nacionais. Um dos exemplos pode ser o dos gelados Olá, com a sua criação do Perna de Pau como produto específico do nosso país, ou, por oposição de método, o da revista National Geographic, que apenas é feita com uma percentagem mínima de assuntos relativos ao país em que é distribuída. Sucede com estes dois produtos o que sucede com a grande maioria dos fran- chisings (cf. Armand Mattelart), sejam eles de marcas comunica- cionais, informativas e culturais ou de outra natureza industrial. A forma/ invólucro-simbólico dos vários conteúdos mantém-se inalterada, mesmo que os conteúdos sejam simplesmente inexis- tentes, a forma é vazia e a estética oca, no sentido do interesse cultural de cada consumidor público, dado que não existe um reconhecimento identitário colectivo sensivelmente partilhado. Apenas se processa uma aceitação especular do que é veiculado num sentido vertical do palco global industrial para a plateia pas- siva do espectador individual fechado na sala escura do seu gru- po pseudo-localizado, que não se constitui como comunidade de partilha do sensível.

Tomemos ainda a estética das mensagens como uma recodifica- ção semiológica e linguística, onde o domínio é o da forma em detrimento dos conteúdos: o jornalismo desportivo (cf. Ignacio

Ramonet) é um excelente exemplo das técnicas de comunicação global que fazem com que em vez de notícias surjam as storys, conhecidas entre nós sob o nome de estórias, como a TSF tão bem as narra, e que se desejam sem comentários críticos.

Mas, afinal, existirá verdadeiramente uma comunicação glo- bal? Um espectáculo total a nível planetário que nos tolda a visão enquanto cidadãos singulares e enquanto espectadores do mundo? Será possível sair da caverna e ver para além do choque provocado pelo sol a incidir directamente na retina? Ser-nos-á permitido o tempo necessário para uma adaptação dos sentidos à possibilidade de novos mundos, de novas comunidades estéti- cas que se constroem neste regime da partilha do sensível? E que território poderá acolher esta afirmação que legitima a entrada na cena da comunicação global por parte de franjas marginais que regressem à caverna?

«Quais são os preceitos e os momentos de afirmação para a concretização de comunidades emancipadas que se afirmem comunicacionalmente no regime da partilha do sensível?». De todas as apresentadas, esta é a questão que mais nos inquieta. Entendamos a comunicação global como um circuito fechado de produção-débito-consumo de informação – uma informação que não informa claramente, pecando por excesso e desorganização de dados, que não forma, porque, supostamente, a formação entedia, mas que diverte. É este espaço lúdico que é mais facil- mente assimilado por todos os utentes da rede comunicacional mundial. Trata-se de uma rede comunicacional que liga entre si os vários polos emissores e receptores de mensagens por todo o planeta. Como se de ilhas se tratasse, ilhas metafóricas em cone- xão umas com as outras, estaríamos perante uma insularidade globalizada. Mas esta «rede» (Manuel Castells, 1998, pág. 18) não é senão uma hipótese de comunicar que, como as demais, tem como objectivo final providenciar um modus operandi de um novo pronto-a-pensar ou de um pronto-a-não-mais-se-indivi- duar que seja a garantia de uma funcionalidade ideal do circuito de comunicação. É preciso que funcione sem falhas.

Se encararmos a comunicação global, à escala de uma socieda- de/cultura/civilização dita avançada, estaremos a excluir toda

uma vasta gama de sociedades/culturas/civilizações. Talvez até, todo um mundo, o chamado Quarto Mundo – esse recém-criado departamento de gente, modos e terra que não pertence ao mun- do global e não conhece qualquer fronteira geográfica. Estamos, assim, perante uma análise da «comunicação mundializada» (Armand Mattelart 1999, pág. 7-10). Chamemos-lhe mundo da comunicação global.

Deparamo-nos, pois, com uma «alteração de contexto comuni- cacional» (Ignacio Ramonet, 1999, pág. 20-23). Mas encontra- mos velhos problemas traduzidos para uma nova linguagem. Encontramos novos problemas. Substituiu-se a exploração do Homem pelo Homem pela exploração da Terra pelo Homem e, finalmente, pela exploração do Homem pela informação global, pela técnica, pela máquina, pelo mercado livre real ou virtual (hiper-mediatizado). Muito de acordo com os «desígnios ciber- néticos do pós-Segunda Guerra Mundial» (Philippe Breton, 2000, em congresso).

Temos, então, neste mundo da comunicação global, várias fran- jas de consumidores/públicos/espectadores, ou «comunidades de consumidores» (Armand Mattelart, 1997, pág. 314), que se revêem e reconhecem entre si através de «padrões culturais iden- titários» (Alexandre Melo, 1995, pág. 13). Que padrões culturais são esses?

Consideremos que se trata de uma série de referências compor- tamentais, de gostos, e até de descodificação das mesmas men- sagens, isto é, uma estética comum, uma comunhão de modos de vida e de consumo – uma espécie de conjugação entre uma movimentação socio-tribal e um movimento técnico-cultural sem ter de se realizar/concretizar num espaço existente, palpá- vel. Pode ser um «não-lugar» (Carlos Fortuna, 1997, pág. 91-92), onde as conversas, as marcas de roupa, a ocupação de tempos livres, e o próprio grupo ou classe profissional a que cada um per- tence se encontram em ligação, em «re-ligião» (re-ligação): uma comunhão em rede.

3) Comunicação global e nichos culturais –