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Nómadas Globais: uma visão antropológica da globalização

Humberto Martins e Márcio Martins

A globalização vista à microescala de uma lupa incidindo sobre as experiências de pessoas concretas, sem negligenciar as inscri- ções macroscópicas, históricas, políticas e normativas das ‘globa- lizações’ e dos quotidianos das pessoas, discute-se ao nível das suas vivências. Esta bem pode ser a síntese das propostas sugeri- das nas duas comunicações e do debate produzido subsequente- mente. No painel, que resulta nestes dois artigos, falou-se desde a antropologia e a geografia. Primeiro, um texto que nos sugere pensar a antropologia como metodologia de envolvimento, do ‘estudar com’ as pessoas e que permite reconhecer temas como o da mutualidade e da simetria no fazer parte do Mundo, mas que, simultaneamente, nos faz ‘achegar’ à percepção de assi- metrias, desigualdades, diferenças e diversidades em termos de responsabilidade, agência e poder neste processo, aparentemen- te ‘all-inclusive’ e inevitável, que designamos por ‘globalização’. Somos, de facto, todos coetâneos uns dos outros, assumindo a copresença num mundo partilhado e de interdependências várias mas que, ainda assim, não nos pode fazer esquecer todos estes diferenciais de poder.

“How we think they think?”, perguntava Maurice Bloch (1998) numa obra na qual aborda cognição, memória e literacia entre os Zafimaniry de Madagáscar. Ora, precisamente, esta pergunta poderia ser replicada aqui numa outra formulação que, aliás, é devedora da própria crítica de Bloch ao modo como conhecemos em ciência social. “Como pensam eles?” Ou seja, e que tal tentar- mos perceber, de facto, como pensam os outros o mundo de hoje, situando e contextualizado essas formas de pensamento que,

muito justamente, podem não ser coincidentes com o devir espe- rado e projectado para a globalização apenas por alguns? É pois aqui sugerido que se reconheçam diferentes modos de ‘viver’ (n) a globalização, ou melhor, simplesmente formas de viver. Ponto. Numa atitude epistémica, que também é ética e política, simulta- neamente de reconhecimento que nós somos e fazemos mundo e como convite a estar atento, com vontade de descoberta perma- nente – do olhar permanente ‘over the shoulder’ – de querer saber mais. E se é fácil esta afirmação como discurso formulaico – como retórica programática (e conhecemo-lo, de facto, em muitos pro- gramas e retóricas políticas: bottom-up vs. top-down, metodolo- gias participativas, etc.) – é muito mais difícil a sua concretização na prática. E, neste sentido, sugerir um termo como o de desglo- balização não pode, uma vez mais e neste sentido crítico, servir apenas como poética (i.e., como desejo inventivo para um novo devir), encerrando-nos uma vez mais num universo conceptual desligado de fenómenos sociais observáveis. O termo é proposto tendo na sua base, por um lado, o pensamento de ideólogos da contemporaneidade (e.g. Latouche 2011) mas, igualmente, um conjunto de situações e práticas observadas um pouco por todo o lado e que, finalmente, nos asseguram não só a multiplicidade de ‘formas’ que a globalização pode assumir mas, igualmente, de ritmos e direcções. Falamos de fluxos e fricções, falamos de ‘ir em frente’, de marcha atrás e de inversão de sentido. Convém, pois, escrutinar práticas, até porque todas as relações sociais estão configuradas em dimensões simbólicas e de poder (tácito, muitas das vezes) que só a longa duração e a proximidade nos permitem desconstruir. É disso que se trata ao estudar o turismo na era da híper-mobilidade, de um turismo que se revela como consequência e causa destes fenómenos globais. Os temas da agência, da responsabilidade, da autenticidade, do consumo, do crime, da saúde e da sustentabilidade surgem-nos como horizon- tes críticos nos quais devemos situar aquela que é uma das mais celebratórias práticas da globalização: o turismo. Entre a turis- tificação abusiva dos lugares, a turistofobia dos residentes dos lugares procurados, e a turistofilia (o desejo de viajar, conhecer e partilhar) dos turistas, onde situar a lei, as políticas públicas, o lado normativo que ajude a enquadrar interesses diversos e com- petitivos, o inevitável (e, porque não, desejável) conflito entre as diferentes partes interessadas? Voltamos ao tema das interde-

pendências, à necessidade de sopesar diferentes perspectivas e a problemas de governança.

Uniformização ou diversidade? A resposta a esta questão não estará tanto em impor quadros normativos estritos, porque os humanos, como sabemos, parecem ser inesgotáveis na sua cria- tividade e capacidade de inventar soluções e respostas aos mes- mos. O ponto do argumento discutido nesta sessão sugere como pressuposto uma rejeição – a de produzir generalizações –, o que nos obrigará sempre a conhecer e reconhecer as especificidades que se escondem por detrás dos grandes quadros classificató- rios e conceptuais. Ocidente, Oriente, Outro, Turistas, Residen- tes, Homens, Mulheres, Portugueses, Europeus, Globalizados, Excluídos, Incluídos são categorias indicativas que têm que ser concretizadas por conhecimento situado e contextualizado; e, assim, um ‘nós’ e um ‘eles’ como dicotomia fixista, abstracta, inibidora do bom conhecimento e, sobretudo, facilitadora do desconhecimento e do pré-conceito deixam de fazer sentido. O pressuposto para a compreensão do mundo está em ‘dar nomes’ às pessoas, conferir rosto e substância às grelhas de leitura for- mais, que, quase sempre, são estranhas às vidas concretas dos seres humanos.

Referências Bibliográficas

Bloch, Maurice, 1998, How We Think They Think – Anthropolog- ical Approaches to Cognition, Memory and Literacy, Boulder and Oxford, Westview Press.

Latouche, Serge, 2011, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Lisboa, Edições 70.

Globalização: Globalizações? Desglobalização?