• Nenhum resultado encontrado

4. PROCESSOS SUBJETIVAÇÃO OU A INVENÇÃO DE NOVAS

4.2. INDIVIDUALIZAÇÃO DO SUJEITO

Antes do surgimento da modernidade, ainda no período conhecido como obscurantismo, as relações aconteciam de forma dependente, o indivíduo estava circunscrito e mantinha relação de extrema dependência com seu clã, seu grupo social circundante, e conservava a subjetividade em relação de dependência permanente. De acordo com Guattari e Rolnik (1986, p.35), “a noção de responsabilidade individuada é uma noção tardia, assim como as noções de erro e culpabilidade interiorizada.”

Somente a partir deste período do século XIX é que houve um confinamento das subjetividades em sujeitos sociais concretos e um irrefreável rompimento com as formas

antigas de dependência. Os ideais da Revolução Francesa apregoaram a liberdade de direito, mas não de fato. Os sujeitos perderam suas referências subjetivas dos grupos comunitários a que pertenciam e passaram, de forma desarraigada, a prestar contas a leis transcendentais da subjetividade capitalística. (GUATTARI; ROLNIK,1986, p.35)

A ideia de sujeito é recente, nasceu junto com a modernidade e viveu um curto espaço-tempo; sua morte e seu fim estão declarados, no período considerado “pós-moderno” e esse processo parece ser irreversível. No entanto, ao mesmo tempo em que os teóricos sociais consideram a imagem do sujeito ultrapassada, as práticas regulatórias buscam governar o ser humano baseadas nas características estruturantes do sujeito moderno.

As práticas nas quais os seres humanos se envolvem ainda estão fundamentadas na noção de identidade, como se os eus estivessem imbuídos de uma subjetividade particular, individualizada e motivados por aspirações a respeito da sua autorrealização, a fim de maximizar a expressão destas identidades. Mais do que pensar em um sujeito, a subjetivação induz a forças advindas de diversos lugares. No dizer de Deleuze (1992, p. 116-117), “a subjetivação tem pouco a ver com o sujeito. Trata-se antes de um campo elétrico ou magnético, uma individuação operando por intensidades (tanto baixas como altas), campos individuados e não pessoas ou identidades.”

Partindo dessa individualização, os ideais de autonomia e liberdade embasam as práticas políticas que, através de uma imagem unificada do ser humano, acreditam fazer reivindicações legítimas através dos seus atos de escolha. Desta forma, “a dispersão conceitual do ‘eu’ parece caminhar em paralelo com sua intensificação ‘governamental’.” (ROSE, 2001, p.141)

A experiência vivida pelos sujeitos propicia composições para a formação da subjetividade, a partir de fluxos, movimentos, composições e recomposições com outros seres e objetos, espaços e lugares. As relações e as ligações produzem os sujeitos como um agenciamento que metamorfoseia suas propriedades conforme a composição de suas conexões, dessa forma,

[...] a subjetivação é, assim, o nome que se pode dar aos efeitos da composição e da recomposição de forças, práticas e relações que tentam transformar – ou operam para transformar – o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres capazes de tomar a si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles. (ROSE, 2001, p. 143)

De forma análoga percebemos o quanto a educação, buscando a relação do sujeito interiorizado com o pensamento (cogito cartesiano), insiste em desnaturalizar a relação dos indivíduos com seus grupos comunitários, sobretudo quando se trata de pessoas pobres. Os alunos são convocados a todo instante a negar os valores culturais, os ritos, as peculiaridades da sua comunidade para incorporar um modo de vida diverso, supostamente melhor, mais apropriado, civilizado, que seria ensinado nas instituições escolares.

Negando esta imposição, num processo de subjetivação que opera como resistência, apresento outro exemplo, de uma aluna que questiona a professora por que ela deve falar o português, atentando-se para as regras gramaticais formais, sendo que no local onde vive, as pessoas não costumam falar assim, e se ela proceder desse modo, pode até ser simbolicamente excluída desse grupo, caso resolva diferenciar-se através da linguagem:

[...] mas pra quê que a gente vai falar assim se todo mundo aonde eu moro num vai me entender? Se eu falar desse jeito que a senhora tá falando aí, professora, todo mundo vai rir da minha cara. (Eva – aluna da professora Isi)

Ao pensar em modos de subjetivação Foucault (apud DELEUZE, 1998), não pensou em um retorno ao sujeito, mas na possibilidade de constituir modos de existência, inventar novas possibilidades de vida. Acontece que esses modos não se encontram ocultos, escondidos, inconscientes, ao contrário, aparecem sempre e são passíveis de ser capturados, acontece que, para absorvê-los, é necessário se debruçar sobre a forma como se manifestam, atribuir-lhes sentido, entender seus enunciados e suas visibilidades

É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades. E a visibilidade de uma época é o regime de luz, e as cintilações, os reflexos, os clarões que se produzem no contato da luz com as coisas. Do mesmo modo é preciso rachar as palavras ou frases para delas extrair os enunciados. (DELEUZE, 1992, p.120)

Os enunciados que pairam sobre a escola e os alunos sem situação de risco ainda são enunciados da modernidade, que criam a expectativa de que os alunos deverão ser prósperos, independentes e autônomos; para tanto, precisam ser disciplinados e autogovernáveis, contudo, alguns alunos escapam destas expectativas e conseguem construir formas e movimentos diversificados no cotidiano. Assim, para Foucault, a subjetivação não se trata mais de formas determinadas como o saber, nem de forças coercitivas como no poder; ela constitui-se como regras facultativas, éticas e estéticas que produzem a existência

ou estilos de vida. Só que a composição dos modos de existências dos alunos não depende apenas deles, uma vez que

um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de toda identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a ‘pessoa’: é uma individuação particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento. É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia ultrapassar o saber nem resistir ao poder. (DELEUZE, 1992, p. 124)

Novas formas de subjetivação são criadas pelos alunos em situação de risco, constantemente, não obstante, as professoras, em alguns casos, por não encontrarem repercussão na coerção das relações de poder, ao invés de construírem novos modos de existências, como comumente fazem os alunos, por vezes mais desterritorializados, apelam ao passado e queixam-se dos bons momentos que viviam quando eram respeitadas, quando os alunos eram disciplinados, quando, de acordo com elas, havia de fato aprendizado na escola. O discurso comumente ouvido nas entrevistas foi o discurso saudosista de que a escola era boa, funcionava, era auspiciosa, venturosa, animadora.

A Situação de Risco caracteriza um acontecimento, e quais seriam as características desse acontecimento? Para se falar dos processos de subjetivação de alguns alunos da escola pesquisada é importante fazer um desdobramento da situação em que eles se encontram, tratada aqui como “de risco”, sendo que esta se caracteriza como um acontecimento e como tal possui algumas características específicas, que poderiam estar relacionadas a questões como estar na rua, faltar as aulas, não aprender o que foi proposto, mas transcende a estas situações faltosas e engloba a informalidade que constroem dentro da escola, as relações pueris, a familiaridade com os colegas, dentre outras coisas.

A não aprendizagem de alguns alunos, dentre eles os que são considerados em situação de risco, não significa que não aprendem as coisas da vida, as coisas que lhes possam despertar interesse ou ser-lhes úteis. Significa que não aprendem o que é proposto pela escola, porque não se sentem suficientemente capturados pelos fluxos ou pela forma como são tratados.

De forma análoga, o estar transitando entre a rua e a escola não significa que não considerem esta como importante. Foucault (apud DELEUZE, 2002, p.142) chama a atenção de que a formulação dos modos de existência não é apenas estética, é o que considera como ética, “por oposição à moral [...] a ética é um conjunto de regras facultativas

que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica”. Assim, percebemos uma postura incoerente dos profissionais da escola ao falar da forma como os alunos se comportam, se expressam, uma vez que esta forma está diretamente relacionada com os estilos de vida que têm, estilo este que se difere muito do vivido por muitos destes profissionais.

Serem considerados alunos em situação de risco na escola traz como consequências serem vistos como ruins ou fracassados, ou, pior ainda, despertar um sentimento de rejeição como o expresso por um dos gestores:

Estes, nos últimos meses de aula, já estamos dando suspensões mais longas, deixando ficar cada vez menos tempo na escola, os alunos que, no ano seguinte, não aceitaremos a matrícula. (Gérson – gestor)