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4. PROCESSOS SUBJETIVAÇÃO OU A INVENÇÃO DE NOVAS

4.3. SINGULARIDADE x INDIVIDUALIDADE

A subjetividade é pensada por Guattari e Rolnik (1986) como produção, e nas sociedades capitalísticas esta produção seria feita através de entraves aos processos de singularização e o consequente desencadeamento de processos de individualização, sendo que estes propiciam a organização dos indivíduos segundo processos universais que serializam e individualizam. Os processos de singularização, inversamente, ocorrem quando os homens, através da experiência, produzem referências para a criação de formas de organização do cotidiano. À medida que nasce o indivíduo, através de processos de individuação, morrem os processos de singularização; assim, o modo de fabricação de subjetividade capitalística recorre à massificação e serialização dos homens, sobretudo através da mídia.

Na escola, as tentativas de modelização são frequentes e alguns adereços vistos antes como tentativa de serialização passam a funcionar de modo oposto. Nesta escola pesquisada, existe a indicação do uso do fardamento, mas, por se tratar de uma escola pública, não há como torná-la obrigatória. Este deve ser comprado pelos alunos no início do ano, só que alguns não possuem dinheiro para comprá-lo e passam a frequentar as aulas com suas roupas, em alguns casos, rotas e rasgadas.

Percebo que os alunos gostam de usar a farda e nas entrevistas, com exceção de um estudante, todos os demais afirmaram achar importante seu uso. Eles gostam, pois, por meio dela, há a possibilidade de se homogeneizarem e possivelmente se esconder, principalmente

nos casos de pobreza extrema, em que o aluno não possui roupas para ir à escola. Em uma das salas, onde tive oportunidade de assistir a algumas aulas, notei que uma aluna era sempre solicitada pela professora para mostrar as atividades feitas no seu caderno. Esta aluna era reconhecida e apreciada por seus colegas, pois denotava ter poder aquisitivo maior que os demais e ia para a escola sempre sem farda. Ela aproveitava essa oportunidade de ir sem farda para mostrar suas roupas, seus acessórios, quase sempre inacessíveis aos seus demais colegas de sala, que em algumas ocasiões sentiam-se menosprezados – sobretudo as meninas –, em função dos constantes elogios que a professora direcionava a ela. Estava no centro das atenções, todos da sala prestavam muita atenção em tudo que ela fazia, como se, implicitamente, a professora e os demais colegas a considerassem como um modelo a seguir. Neste caso, a ausência do fardamento constituía-se num diferencial, mas que não denotava privação, mas apresentava-se como um distintivo econômico.

A produção de subjetividade pelo capitalismo acontece em série, em torno de um consenso que consegue esquadrinhar a subjetividade e propagá-la em nível das relações sociais. Esta produção começa desde a infância, quando a criança adentra “no mundo das línguas dominantes”, sendo estimulada a seguir modelos imaginários e técnicos. No mundo escolar, há exigências relacionadas a modelizações propostas para serem seguidas pelos alunos, que devem se comportar, vestir, falar, brincar, enfim, subjetivar-se a partir de modelos em série já pensados como sendo o protótipo do bom aluno.

Mesmo sendo a maioria das crianças da escola, de baixa renda, o imaginário dos alunos é povoado por idealizações advindas, quase sempre, de modos de vida diferentes dos seus. É grande a impregnação do modo de vida capitalístico, estimulado, sobretudo pelo consumismo, contribuindo para que as crianças se sintam cada vez mais inferiorizadas por não terem condições de consumir.

Um evento que acontece na escola com regularidade é a ‘feira da pechincha’. Durante a pesquisa aconteceram duas versões desse evento com o intuito de arrecadar dinheiro para a realização da festa do “Dia do Professor”. A ideia, bem como a iniciativa, foi da direção e não obstante a intenção ter sido muito boa, considero que esta feira contribui sobremaneira para corroborar com o modo de vida capitalístico, uma vez que estimula o consumo dos alunos, sobretudo para a aquisição de produtos que provavelmente não teriam condições de obter se tivessem que desembolsar o valor do produto novo. Acontece que, se por um lado os alunos sentem-se lisonjeados por estar consumindo um

produto de boa qualidade, por outro lado, sentem-se menosprezados por estarem levando um produto “velho”, já usado. A própria disposição das coisas na feira já inspirava um tom de escassez, sendo que as professoras e os funcionários da direção levavam seus objetos – em sua maioria roupas e sapatos – usados para serem comercializados e apenas os alunos e os funcionários da limpeza compravam estes objetos, conferindo ao evento uma nuança de verticalização e de diferenciação social muito grande.

Fotos nº14 e nº 15: Feira da Pechincha

Fonte: arquivo pessoal Kueyla Bitencourt

Quando uma criança tende a fugir destas modelizações, são estimuladas a sentirem- se culpadas. A culpabilização é uma função, de acordo com Guattari e Rolnik (1986), da subjetividade capitalística, pois através dela pode-se exigir que o indivíduo se singularize com o máximo de consistência de sua posição: “quem você pensa que é?” Acontece que esta posição não pode ser alcançada individualmente, já que ela implica sempre em uma relação coletiva. O indivíduo para se posicionar deve fazê-lo em relação a outrem.

Comumente, na relação escolar, os alunos são considerados com posições inferiores aos demais atores dessa instituição. Tanto em questões de aprendizagem, de conteúdo acumulado, de desenvolvimento moral, de enquadres comportamentais. Eles são vistos como inconclusos, incapazes, inacabados, como seres moldáveis que estão sempre em construção, portanto, não confiáveis, não alicerçados, e isto os colocam numa posição de inferioridade em relação às demais pessoas da escola. É comum, pois, a disputa entre eles por um destaque dentro desta massa homogênea em que se constitui o alunado e alguns se mostram mais estudiosos e se aproximam mais do que se esperam deles enquanto alunos e outros destacam-se por fazer contraposição aos primeiros, subjetivando-se em esferas mais adversas e embativas.

É preciso destacar o fato de que a escola não é apenas um lugar de aprendizagem dos saberes, como também um lugar para aprender a exercer o poder e aprender as relações de

poder. Dessa forma a escola, historicamente, abandonou a construção do aluno domesticado, domado, e passou a investir nos alunos autocontrolados e racionais, sendo que a razão significa um poder exercido sobre si mesmo, que substitui o poder vindo do ambiente externo.

Esta valorização racional estimula o desenvolvimento da autonomia nos alunos; acontece que esta autonomia também tem seu lado de dependência em relação ao saber, uma vez que é preciso apropriar das regras para se chegar sozinho a uma descoberta mediante um conjunto de técnicas que favorece uma relação de saber,que envolve ainda uma relação de poder. A autonomia se constitui

portanto, o nome de uma relação social especial com o poder e o saber. A escola, que pretende tornar os alunos autônomos ensinando-os a virar-se sozinhos, diante de dispositivos de saberes objetivados, visa à produção de disposições cognitivas para poder apropriar-se de saberes escritos complexos, e, ao mesmo tempo, de disposições sociais a fim de poder agir nas formas particulares de exercício do poder. (LAHIRE, 2004, p.64)

Quanto à postura de embate, a consequência mais provável, certamente seria a segregação, outro componente importante dessa subjetividade que falamos. Para a manutenção da ordem social são criadas escalas de valores, hierarquizações, mesmo que de maneira artificial e pouco convincente. Tem-se, com isso, a valorização de modos de vida elitizados, aos quais devem se submeter os demais indivíduos e estratos sociais. Este mecanismo suscita fenômenos de desvalorização como a humilhação social, em que grupos sociais são desconsiderados e tratados como subumanos. Assim, temos acesso a algumas falas de professoras e gestores da escola que falam sobre as condições de exclusão e, às vezes, de humilhação social a que estão expostos alguns de seus alunos:

Então, assim, eles são excluídos, devido à condição social deles, devido à forma como eles são vestidos, o fato deles mesmo se excluem quando eles travam pra não aprender, criam essa barreira e, assim, por exemplo, pede pra que eles fazem a leitura e eles não fazem a leitura. Pode ser por vergonha de não saber ler ou então dos colegas rirem deles, aí, os próprios colegas exclui, assim, por estar sempre tentando chamar atenção, através das atitudes agressivas deles. É, eles tão gritando, pedindo socorro, então, assim, a gente num tá pronto, a gente não tem preparo suficiente pra socorrê-los. (Lia – gestora)

E dentro da sala ele é uma das crianças que sofre discriminação, né, por conta da casa onde ele vive, do trabalho da família dele, da profissão da família dele, da condição em que ele chega na escola. É uma das crianças mais discriminadas, mas é também um dos que mais discriminam os outros. (Isi – professora)

As estatísticas demonstram que a maioria deles cai na marginalidade, né, ou melhor, na criminalidade. E aí eu acredito que aí vai ser mais difícil ainda de lidar, de recuperar, de tirar essas pessoas do fracasso, né. Então eu fico assim imaginando porque são seres humanos e, acima de tudo, por serem seres humanos não são vistos como seres humanos. A sociedade precisa entender e saber que isso é um problema social, não é um problema de um segmento da sociedade, isso é um problema da sociedade como um todo. (Gérson – gestor)

As normas, os exames, as classificações e as punições são parte da noção de governo e expõem para o indivíduo sua identidade, seu verdadeiro “eu”. Os alunos passam então a acreditar que é bom ou fracassado de acordo com os parâmetros instituídos pela escola, outras vezes pela sociedade. (MARSHALL, 1994) À medida que os alunos que pouco conseguem se adequar à governamentalidade requerida pela escola se percebem como fora da norma – através de constantes suspensões, brigas com os colegas, repressões das professoras – acabam se distanciando aos poucos da escola, começam a se sentir pertencentes a ambientes mais informais e desprendidos.

A subjetivação se opõe à moral – que constitui o saber e o poder – ela é ética e estética. Estar em situação de risco não significa ser bom ou ruim, significa que as composições das intensidades, dos fluxos compuseram esta situação e é a forma na qual alguns alunos se subjetivam para enfrentar o vivível. Para criar os modos de subjetivação dos alunos em situação de risco é preciso que os alunos criem suas forças e, somadas a elas, combinarão as forças existentes na cultura escolar, que em confronto com as forças dos alunos criam um modo de existência mais amplo e por todos compartilhados:

É que as forças do homem não bastam por si só para constituir uma forma dominante onde o homem possa alojar-se. É preciso que as forças do homem se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas outras forças com as quais estas do homem se associam. (DELEUZE, 1992, p. 146)

Dessa forma, explanarei sobre algumas possíveis forças que, em combinação, possibilitaram a formação dos processos de subjetivação dos alunos em situação de risco no contexto institucional da escola. Para tal empreitada, falarei inicialmente de alguns processos subjetivos que incluem os afetos e as relações que possibilitam a confluência desses para gerar intensidades, desejos e transformações.