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Influência da Cocaína na Lágrima

No documento Relatório de atividade profissional (páginas 44-49)

2.1.7.1 Objetivo

Avaliar qual a influência da inalação de cocaína na quantidade de lágrima.

2.1.7.2 Introdução

O conhecimento dos mecanismos de produção de lágrima são importantes para os usuários de lentes de contacto e não só. As disfunções da lágrima, seja na forma benigna ou na forma patológica, apenas têm terapêuticas paliativas direcionadas para controlo de sintomas. Assim como, normalmente são esses mesmos sintomas que permitem o diagnóstico definitivo dessa disfunção.

A prevenção ou resolução definitiva destas disfunções requer o conhecimento pormenorizado e completo de todos os mecanismos que intervêm na produção, funcionalidade e escoamento da lágrima.

A utilização humana de certas substâncias como a Cocaína, quer pela sua ação potente quer pela sua ação direcionada, permitem olhar para dentro dessa caixa negra que é o mecanismo de produção de lágrima.

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Foi esse o objetivo do artigo de que fui autor publicado no Journal of Psychoactive Drugs intitulado “Assessment of tear amount in subjects under the effect of (inhaled) cocaine”41.

Nesse artigo, estudei qual a influência da inalação de cocaína, por humanos, na quantidade de lágrima produzida.

2.1.7.3 Desenvolvimento

Este tipo de experiência apresenta características que a tornam particularmente invulgar, pela dificuldade de acesso a este tipo de sujeitos de estudo e pela necessidade de conciliar esse acesso e disponibilidade com os padrões científicos mínimos exigidos para a

realização de uma experiência com resultados úteis.

Várias medidas foram tomadas no desenho da experiência para lidar com essa situação. Como primeira medida, o número de sujeitos incluídos destinou-se a dar potência estatística aos resultados. Como segunda medida, e na impossibilidade de assegurar e avaliar qual a pureza e quantidade de cocaína inalada, o diâmetro pupilar foi utilizado como indicador do estado de influência ou não da cocaína.

Também se caraterizou o perfil de consumidor de cocaína, já que o desenho da experiência pretendia estudar o utilizador ocasional para comparação de entre estado de influência e não-influência da cocaína.

Todos os sujeitos, antes de aceitarem participar na experiência, foram fortemente

desaconselhados do consumo de qualquer tipo de drogas psicoativas. Todos os sujeitos que aceitaram participar, após a explicação da natureza e procedimentos do estudo assim como das suas consequências, assinaram o consentimento informado.

A cada sujeito foi atribuído um número e uma fase aleatória de influência, ou não, da

cocaína. O examinador não conhecia nem o perfil de consumo, nem qualquer outro dado do paciente, assim como também não conhecia o estado de influência ou não de cocaína, no momento dos exames. O investigador que realizou a análise estatística também não sabe qual o grupo que está sob influência, ou não, da cocaína.

O procedimento experimental consistiu na realização de um questionário para a

identificação do perfil de consumidor de drogas psicoativas. Realizou-se o teste Schirmer I, na versão de 3 minutos, para minimizar o tempo de interferência com o sujeito e porque se correlaciona muito bem com a versão de 5 minutos. Os critérios de inclusão e exclusão, assim como outros detalhes, podem ser consultados no Repositorium.42

2.1.7.4 Resultados

Os valores do Schirmer I, para o grupo de sujeitos que não se encontravam sobre a influência de cocaína foram de 22,50±12,85 mm (média±desvio padrão), no intervalo de 5 até 55 mm. Sob a influência de cocaína foram de 16,52±10,13 mm (média±desvio padrão), de 1 mm até 38 mm. O t-test emparelhado a um lado considera a diferença, nos resultados de Schirmer I, estatisticamente significativa (t=3.155, df=21, p=0.0024). A diminuição nos resultados do Schirmer I é de 26,6% e está presente em 77,3% dos sujeitos.

2.1.7.5 Discussão

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significativa na média, mínimo e máximo dos valores, e do desvio padrão, de Schirmer I para a amostra estudada. Essa diminuição é clinicamente significativa, sendo de 8

segundos (26,6%) na diferença das médias entre o estado sem influência da cocaína e com. Para além disso, essa mesma diferença é também estatisticamente significativa. E por último, essa diminuição é transversal à amostra, com 77,3% dos indivíduos a exibirem o mesmo comportamento.

O Schirmer I é um teste que pretende medir a quantidade de lágrima presente e produzida pelo olho, num determinado período de tempo. Como discutido, no anexo 5.III (pág. 138), de que a parte aquosa representa a maior percentagem de constituintes da lágrima e é

produzida principalmente pela glândula lacrimal. Também é, de todas as glândulas

envolvidas na produção de constituintes para a lágrima, a que responde com maior rapidez e quantidade aos estímulos. Mediante os resultados observados no estudo realizado, parece existir uma relação direta entre a inalação de cocaína e a diminuição da quantidade de lágrima. Por esse motivo, importa tentar identificar qual o possível mecanismo de ação. A total ausência de informação científica nesta área, envolvendo a cocaína e a sua

influência na lágrima, implicou um estudo aprofundado na anatofisiologia que regula a função da glândula lacrimal. A próxima secção aborda esse estudo realizado por mim e as consequências produzidas para a análise dos resultados da experiência realizada.

i. Mecanismo de ação e controlo da glândula lacrimal

A secreção da glândula lacrimal (SGL) é composta por proteínas, eletrólitos, mucinas e água. O volume elevado dessa secreção quando comparado com o das outras glândulas acessórias, justifica a sua importância fundamental no volume e composição do fluido lacrimal.43 A correta proporção de cada um destes constituintes, sobretudo eletrólitos e

proteínas, é importante para a proteção e nutrição da superfície ocular corneal. Os eletrólitos são responsáveis pela manutenção da integridade da superfície ocular e da manutenção do estado de hidratação corneal. As proteínas sintetizadas pela glândula lacrimal têm funções na proteção da córnea e conjuntiva.

O mecanismo de controlo da glândula lacrimal é neuronal, permitindo um ajuste rápido na produção em função dos estímulos, sejam eles ambientais, como a temperatura, humidade, químicos, mecânicos ou patogénicos, sejam por necessidades do epitélio corneal, como controlo do crescimento, cicatrização, transporte de eletrólitos, manutenção da barreira lágrima/humor aquoso ou remoção de proteínas superficiais. A Unidade Funcional Lacrimal44

(UFL) é constituída pela própria glândula lacrimal com as suas células secretórias e ductos, pelos nervos aferentes sensitivos (trigémino ou V par)45 da córnea e conjuntiva, do núcleo

do V par para o núcleo do VII par e seu constituinte núcleo lacrimal do cérebro (parte superior do núcleo salivatório superior) e pelo nervo parassimpático (facial ou VII par) 46,

nervo Petrosal Superficial Maior, gânglio esfenopalatino47 (ou pterigopalatino) até à glândula

lacrimal. E pela via do simpático (nervo cervical superior ou axónios pós-ganglionares do gânglio superior cervical) 48 eferentes pelo pós-sináptico nervo Petrosal Profundo49 até ao

gânglio esfenopalatino, onde não realizam qualquer sinapse, e daí para a glândula lacrimal.

43,49,46

Este mecanismo de controlo não atua como um simples reflexo a estímulos, mas com o processamento dos estímulos sensoriais no núcleo lacrimal, incluindo estímulos ou informação de outros centros nervosos, como o da visão, ou estímulos emocionais

47 procedentes do hipotálamo.43

A resposta é calibrada para que baixos níveis de estimulação sejam capazes de produzir fluído da glândula lacrimal suficiente para cobrir toda a superfície ocular. Uma estimulação mais intensa deve produzir secreção suficiente para remover e renovar todos os compostos sobre a superfície ocular e produzir excesso de lágrima.50

Debruçando-nos em particular no funcionamento normal da glândula lacrimal e na sua relação com a superfície ocular, a ativação dos nervos sensoriais na superfície ocular é responsável pelo aumento da secreção da glândula lacrimal e da vasodilatação dos seus vasos sanguíneos, através do reflexo do parassimpático-trigémino ou V par, mediado pelo nervo facial VII par, e embora estas duas ações sigam caminhos diferentes nas vias eferentes, estão sincronizadas. O mecanismo que as sincroniza, após o núcleo lacrimal, é desconhecido, embora se saiba que a secreção é bloqueada por antagonistas muscarínicos e a vasodilatação não é bloqueada por nenhum dos outros mediadores conhecidos neste sistema: muscarínicos, VIP (vasoactive intestinal peptide) ou antagonistas simpáticos.43,51

Apesar dos nervos sensoriais da superfície ocular serem morfologicamente homogéneos, funcionalmente e eletrofisiologicamente são heterogéneos. 52 São vários os estudos que os

dividem e quantificam como sendo cerca de 20% em mecanorecetores de baixo nível e mecanonocirecetores de elevado nível, 70% como polimodal nocirecetores e 10 a 15% como recetores do frio.51,50

Os mecanorecetores e mecanonocirecetores são ativados por estímulos mecânicos de magnitude suficiente para danificar a córnea. Os polimodal nocirecetores podem ser estimulados por uma variedade de estímulos diferentes como forças mecânicas,

temperaturas extremas, irritantes químicos e mediadores químicos endógenos libertados por tecido danificado, células inflamatórias ou plasma extravasado dos vasos sanguíneos. Acosta et al também apurou que os recetores polimodal são os mais eficazes a

desencadear uma resposta de produção de fluído da glândula lacrimal quando comparados com a resposta obtida pela ativação dos mecanorecetores e recetores do frio. Em comum, todos os recetores exceto os do frio produzem uma sensação com características distintas mas com uma base comum de irritação. De forma que qualquer estímulo mecânico, químico, inflamatório ou de temperatura extrema será sempre acompanhado de sensação de irritação, enquanto o arrefecimento da córnea apenas será sentido como arrefecimento sem irritação, até ao limite de temperatura extrema.52 De notar, o facto dos recetores

sensitivos da conjuntiva não produzirem qualquer alteração da secreção lacrimal. A existência constante, com frequência e intensidade variável, de impulsos nervosos emitidos por estes recetores é argumento principal para o modelo que considera que, a produção de lágrima é realizada de forma homeostática, em resposta a um controlo neuronal constante. O principal corolário deste modelo é a inevitabilidade de disfunções lacrimais ou, melhor dito, da UFL resultarem em baixa, ou nula, produção lacrimal, ou em excesso.44 Este modelo ajusta-se de forma muito precisa, ao modelo que anteriormente

tinha sugerido aquando da publicação do artigo «The influence of humidity, temperature,

and oral contraceptive in tear».53

É a este nível, de controlo neuronal, que a cocaína tem a sua ação farmacológica mais conhecida, produzindo anestesia corneal ou das mucosas oculares na instilação em gotas tópicas. O mecanismo desta ação é através do bloqueio dos canais de sódio, impedindo a repolarização da membrana celular dos nervos sensitivos, com a inibição da emissão ou transmissão do impulso nervoso.54,5,55,56 Numa revisão bibliográfica extensa não foi

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encontrada nenhuma referência sobre qual a possibilidade de anestesia ou analgesia corneal em consequência da inalação de cocaína. Contudo, perante o fato da cocaína ser facilmente absorvida pela mucosa nasal e aparelho respiratório, com difusão para a corrente sanguínea e mantendo a sua ação potente sobre o organismo, não se pode excluir essa hipótese sem estudo experimental especificamente desenhado para o avaliar.

Na aplicação do modelo de homeostasia acima mencionado, ou mesmo no contexto no modelo de produção lacrimal basal e reflexa, a anestesia ou total inibição dos nervos sensitivos corneais resulta sempre na redução da produção de lágrima. Em vários estudos, a utilização de anestésico tópico corneal produziu uma redução no lacrimejo, medido com

Schirmer I entre 25% e 40%.57,58,59 Estes resultados comparam-se aos 26,6% de redução

observados no artigo aqui apresentado.

Seguindo o fluxo do impulso nervoso sensitivo no sentido drómica, e de acordo com a anatomia da UFL, os impulsos sensitivos da córnea e conjuntiva são processados pelos núcleos do V par, transmitidos para os núcleos do VI e VII par na via parassimpática e núcleo cervical superior para a via simpática. É nestes centros nervosos que se integram os sinais do Hipotálamo e outras fontes de estímulo, como o lacrimejo emocional, à produção de lágrima para além dos nervos sensitivos das superfícies oculares. E é sobre estes mesmos centros nervosos do Sistema Nervoso Autónomo (SNA) que a cocaína tem a sua ação mais potente. A Dopamina, Acetilcolina e Noradrenalina são três mediadores químicos fundamentais no funcionamento do SNA. Considerando que a cocaína possui uma ação anticolinérgica de bloqueio dos recetores e fluxo de Dopamina e Acetilcolina, 60,61,62,63,64,65 a

consequência dessa ação sobre os centros nervosos envolvidos no lacrimejo é esperada que seja a diminuição da eficácia da inervação parassimpática de estimulação à produção lacrimal. Sinergicamente, a cocaína também tem uma ação agonista sobre os centros nervosos simpáticos potenciando a ação da Noradrenalina, 60,61,62,63,64,65. O resultado será a

amplificação do estímulo simpático nervoso de redução da produção.

Paralelamente a esta ação central, e seguindo o arco do reflexo lacrimal no sentido antidrómico dos núcleos nervosos até à glândula lacrimal, a cocaína também pode agir diretamente na glândula lacrimal, sobre os recetores muscarínicos conhecidos como M3AChR, inibindo a ação parassimpática, e agindo sobre os recetores adrenérgico de Noradrenalina, conhecidos como NorEpi ou alpha10-AR, potenciando a sua estimulação.43

Seja pela ação sobre o SNA central ou periférico, diretamente na glândula lacrimal, ou seja pela possível ação de anestesia local, a ação esperada da cocaína será a de redução substancial do reflexo lacrimal corroborando os resultados observados neste estudo.

2.1.7.6 Conclusão

Este estudo realizado permitiu-me compreender em profundidade a UFL, integrando os diferentes tipos de nervos sensitivos corneais. Reforçou e aumentou o meu conhecimento sobre o SNA e Sistema Nervoso Central (SNC), as suas vias, conexões e funções. Também permitiu melhor compreensão da sua bioquímica. A integração com conhecimentos obtidos sobre o filme lacrimal, permitiu sugerir vias de ação de substâncias, neste caso cocaína, sobre a UFL contribuindo de forma significativa para o meu desenvolvimento e

simultaneamente para o conhecimento mundial e estado-da-arte nesta área.

Em todas as etapas deste trabalho foi possível aplicar competências e conhecimentos anteriores, exercer discernimento científico autonomamente para adquirir mais

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competências e conhecimentos de forma a fundamentar hipóteses sólidas explicativas para os resultados obtidos. Esses conhecimentos e competências não se limitaram ao plano clínico de análise de cada caso em particular e do seu significado e condição. Pelo contrário, partindo dessa base, aprofundei a natureza do assunto em estudo para o plano em que produz consequência para a análise clínica de futuros casos. Finalmente, expus o produto desse trabalho à avaliação por padrões de elevado rigor científico numa publicação científica de renome internacional.

No documento Relatório de atividade profissional (páginas 44-49)