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3. A REGULAMENTAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO

3.3. A FILIAÇÃO DECORRENTE DE TÉCNICA DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA 44

3.3.3. Inseminação Heteróloga

Para finalizar a análise dos incisos do artigo 1.597 do Código Civil que trata sobre a filiação presumida nos casos de Reprodução Assistida, traz o inciso V da inseminação heteróloga, ou seja, aquela na qual o material masculino pertencerá a um terceiro de fora da relação quando pelo menos um da relação seja considerado infértil ou “hipofértil”.84 Por isso, é de suma importância o consentimento do marido/companheiro para que seja presumida a paternidade e evitar que aquele que não doou o material genético biológico se negue a assumir a filiação da criança. Nesse dispositivo prevalece a paternidade afetiva e não a biológica.

83 BRASÍLIA. Senado Federal. Projeto de Lei nº 90, 24 fev. 1999. Ementa: Dispõe sobre a Reprodução Assistida.Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao= 15032>. Acesso em: 04 mar. 2020.

84 SOUZA, Fernanda Maria Costa de; et. al. Inseminação Artificial Heteróloga: implicações bioéticas e jurídicas. In Revista Brasileira da Ciência da Saúde, 16(03) out. 2012. Disponível em: <https://pesquisa.b vsalud.org/portal/resource/pt/lil-655253>. Acesso em 04 mar. 2020.

Nessa perspectiva, o Enunciado 104 do Conselho Nacional de Justiça explica que, no caso de uma inseminação heteróloga, o “pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade”.85

Nesse sentido, para garantir que a fecundação seja realizada de forma segura, tanto para o casal quanto para quem doa os gametas, há determinações sobre como fazer a coleta, a idade máxima que os doadores podem ter no momento da doação, a questão da identidade do doador, a quantidade de gravidez que um mesmo doador pode gerar por localidade, entre outras questões. Para isso, a Resolução 2.168 de 2017 do CFM descreve em seus itens as observações que as clínicas e pessoas devam seguir para que sejam realizados os procedimentos.

Embora o artigo do Código Civil em questão trate apenas da presunção de paternidade na constância do casamento, ou seja, gametas masculinos de terceiro, será trazido a regra geral da Resolução que também aborda gametas femininos.

O primeiro item da Resolução trata da gratuidade de dispor do material, ou seja, não poderá o doador ou doadora exigir remuneração para a doação de gametas, assim como também, não é permitido que a parte interessada no material faça uma oferta onerosa a fim de obter para si o sêmen ou óvulo. Além disso, os doadores têm idades máximas para serem aptos a doação: 35 anos para mulheres e 50 anos para homens, podendo haver exceções de acordo com o caso e analisado pelo médico responsável, o qual deverá se embasar em “critérios técnicos e científicos”,86 em razão da qualidade desses gametas, pois, quanto mais velhos são esses materiais genéticos, mais difícil é a fertilização e também há maior probabilidade de “anomalias nos cromossomos” que podem resultar em riscos à saúde do feto.87

Ainda no que tange às doações, tem-se que, em regra, as identidades dos doadores serão sigilosas aos receptores, bem como o contrário. Está no rol de exceções quando há na cessão temporária de útero a utilização dos óvulos da própria cedente, ainda que tal prática não seja estimulada para não causar percalços jurídicos e morais, ainda sim é uma opção para conseguir realizar a fecundação. No entanto, essa quebra de sigilo dos

85 Jornada de Direito Civil I: enunciados aprovados/ coordenador cienífico Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 104. 12 e 13 set. 2002. Disponível em: <https://www.cjf.jus .br/enunciados/enunciado/735 >. Acesso em 04 mar. 2020.

86 BRASÍLIA. Resolução CFM nº 2.168. op. cit.

87 ELER, Guilherme. Pais mais velhos passam mais mutações genéticas para os filhos. In Super Interessante, 21 set. 2017. Disponível em: <https://super.abril.com.br/ciencia/pais-mais-velhos-passamma is-mutacoes-geneticas-para-os-filhos/>. Acesso em 04 mar. 2020.

doadores poderá ocorrer se houver motivo de força médica, e a identidade será revelada somente para médicos. No PL 90/1999 havia previsão da quebra de sigilo, além do já prevista no texto da Resolução, também em casos em que a pessoa gerada por meio de inseminação heteróloga tenha vontade, livre, consciente e esclarecida de obter essas informações.

Art. 9º O sigilo estabelecido no art. 8º poderá ser quebrado nos casos autorizados nesta Lei, obrigando-se o serviço de saúde responsável pelo emprego da Reprodução Assistida a fornecer as informações solicitadas, mantido o segredo profissional e, quando possível, o anonimato.

§ 1º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida terá acesso, a qualquer tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde que manifeste sua vontade, livre, consciente e esclarecida, a todas as informações sobre o processo que o gerou, inclusive à identidade civil do doador, obrigando-se o serviço de saúde responsável a fornecer as informações solicitadas, mantidos os segredos profissional e de justiça.

§ 2º Quando razões médicas ou jurídicas indicarem ser necessário, para a vida ou a saúde da pessoa gerada por processo de Reprodução Assistida, ou para oposição de 5 impedimento do casamento, obter informações genéticas relativas ao doador, essas deverão ser fornecidas ao médico solicitante, que guardará o devido segredo profissional, ou ao oficial do registro civil ou a quem presidir a celebração do casamento, que notificará os nubentes e procederá na forma da legislação civil.

§ 3º No caso de motivação médica, autorizado no § 2º, resguardar-se-á a identidade civil do doador mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores informações sobre sua saúde.88

Cabe trazer à baila a questão do item da Resolução e do artigo da PL, a cessão temporária de útero com o uso do óvulo da gestante seria ilegal, uma vez que, para ocorrer esse procedimento, a candidata a gestação deverá ser parente e conhecida daquela que pretende solicitar a gestação89. Contudo, como dito, está no rol das exceções à regra. Nesse sentido, o Tribunal Justiça de Santa Catarina, em um caso concreto, entendeu ser legítima esse tipo de doação.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE DUPLA PATERNIDADE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. MÉTODO DE REPRODUÇÃO HETERÓLOGA ASSISTIDA QUE UTILIZOU GAMETA DOADO PELA IRMÃ DE UM DOS AUTORES, QUE TAMBÉM GESTOU A CRIANÇA. REGISTRO DE NASCIMENTO DA MENOR CONSTANDO OS NOMES DO CASAL HOMOAFETIVO COMO SEUS PAIS. INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRETENDIDA NULIDADE DA SENTENÇA, POR INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO E PORQUE NÃO LHE FORA OPORTUNIZADA A MANIFESTAÇÃO SOBRE O MÉRITO. ALEGAÇÃO DE QUE O FEITO DEVERIA VERSAR SOBRE ADOÇÃO, EM RAZÃO DE O GAMETA NÃO TER SIDO DOADO POR PESSOA

88 BRASÍLIA. Senado Federa. Projeto de Lei nº 90, 24 fev. 1999. op. cit

ANÔNIMA, O QUE DETERMINARIA A COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE. INSUBSISTÊNCIA. PARQUET QUE, AO PROCLAMAR A INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO, SE MANIFESTOU SOBRE O MÉRITO DA DEMANDA, OPONDO-SE AO PLEITO, TESE ENCAMPADA DEPOIS PELA PROCURADORIA. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE LEGAL AO ATENDIMENTO DO PEDIDO. DOADORA DO GAMETA QUE, APÓS O NASCIMENTO DA CRIANÇA, RENUNCIOU AO PODER FAMILIAR. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE DEVE PREPONDERAR SOBRE FORMALIDADES, APARÊNCIAS E

PRECONCEITOS. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA

REALIZADO EM CONTRARRAZÕES. IMEDIATA EMISSÃO DA CERTIDÃO DE NASCIMENTO DA INFANTE, QUE SE ENCONTRA, ATÉ O MOMENTO, DESPROVIDA DO REGISTRO. POSSIBILIDADE.

REQUISITOS DO ART. 273 DO DIPLOMA PROCESSUAL

PREENCHIDOS. RECURSO DESPROVIDO. [...]

O fato de a doadora do óvulo, que também gestou a criança, não ser anônima, não representa óbice para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva e consequente registro da criança em nome de ambos os pais, notadamente porque decorre de um projeto amplamente idealizado pelo casal e que – a toda evidência, diante da impossibilidade de os gametas de ambos os interessados serem utilizados na fecundação – só pôde ser concretizado mediante a utilização de método de reprodução heteróloga assistida.

Formalidades não essenciais, aparências e preconceitos não podem preponderar sobre o melhor interesse da criança, impedindo-lhe de obter o reconhecimento jurídico daquilo que já é fato: o status de filha e integrante legítima do núcleo familiar formado pelos pares homoafetivos.90

Seguindo com a análise, dentre esses doadores, nenhum poderá ser membro da equipe médica e funcionários da clínica, os autores Eduardo Dantas e Mariana Chaves explicam que essa vedação é estabelecida porque um médico não poderá se aproveitar do não conhecimento dos pacientes para forçar algum procedimento ou obter vantagens. O outro motivo seria para preservar a privacidade dos pacientes, já que violaria a regra do anonimato entre o doador e a receptora.91

Outro ponto de relevância neste título é em relação entre a obrigatoriedade de as clínicas manterem dados sobre características fenotípicas e uma amostra do material celular e a quantidade de gestações de sexos diferentes que nasceram pelo mesmo doador. A razão dessa regra é para evitar que, no futuro dos que foram gerados pelo procedimento heterólogo, haja complicações genéticas e bioéticas, tal como duas pessoas se relacionarem e serem irmãos genéticos, o conhecido como “incesto acidental”, que não é

90 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível nº 2014.079066-9, 12 de mar. 2015. Relator: Desembargador Domingos Paludo. Lex: jurisprudência TJSC. Disponível em: <http://www.direitohomoafetivo.com.br/jurisprudencia-categoria/parentalidade/86/1>. Acesso em 04 mar. 2020

bem visto dentro da sociedade brasileira e geram questões de ordem ética e civis, como o impedimento ao casamento entre irmãos, previsto no artigo 1521, IV, Código Civil.92

Para finalizar a questão da inseminação heteróloga, cabe trazer o item da Resolução que aborda sobre a responsabilidade do médico assistente na escolha do doador, que deverá escolher preferencialmente doadores com características fenotípicas e de maior probabilidade de compatibilidade com a receptora. O primeiro requisito leva em consideração que a criança seja o mais parecido possível com as características físicas de seus pais, como se biológica fosse. No entanto, levanta questões sobre a autonomia dos casais ao decidirem sua reprodução, assim como pessoas solteiras, que só poderiam ter crianças de aparência semelhantes às suas, não levando em consideração que essas poderiam se relacionar com pessoas diferentes de seu tipo físico.93 Já com relação a aspectos de compatibilidade biológicas, não há controvérsia. Isto porque a gravidez precisa se desenvolver e, para isso, é necessário que os componentes químicos do corpo do doador e da receptora não sejam incompatíveis ou que não gerem insegurança à gravidez ou ao risco de desenvolver anomalias que prejudiquem a saúde da criança, como por exemplo, a diferença entre o Rh, negativo ou positivo, da mãe e o do filho. Maria Helena Varella Bruna explica a situação:

Eritroblastose fetal é uma doença hemolítica causada pela incompatibilidade do sistema Rh do sangue materno e fetal. Ela se manifesta, quando há incompatibilidade sanguínea referente ao Rh entre mãe e feto, ou seja, quando o fator Rh da mãe é negativo e o do feto, positivo. Quando isso acontece, durante a gestação, a mulher produz anticorpos anti-Rh para tentar destruir o agente Rh do feto, considerado “intruso”.

[...]

A pesquisa de anticorpos anti-Rh por meio do teste de Coombs indireto é o principal exame a ser realizado durante o pré-natal de mãe com Rh negativo cujo parceiro é Rh positivo, ou que tenha recebido uma transfusão de sangue inadequado. Esse exame deve ser repetido mensalmente para verificar a existência de anticorpos anti-Rh.94

Pela análise da explicação, fica evidente que uma incompatibilidade entre os Rh materno e fetal pode tornar a gravidez de risco ou até insustentável. Por isso, quanto à

92 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Ementa: Instituiu o Código Civil. Diário Oficial da União: 11 de janeiro de 2002, Brasília, DF.

93 DANTAS, Eduardo; CHAVES, Marianna. op. cit. 116.

94 BRUNA, Maria Helena Varella. Incompatibilidade sanguínea. In Drauzio Varella, doenças e sintomas, [20--], [S.I]. Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/incompatibilidadesan guinea/#:~:text=Eritroblastose%20fetal%20%C3%A9%20uma%20doen%C3%A7a,e%20o%20do%20fet o%2C%20positivo.>. Acesso em 14 jul. 2020.

questão biológica, não se poderá negar a importância de uma verificação prévia quanto ao doador, visto que os desdobramentos podem gerar uma complicação à saúde de ambos.