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8. O incidente de qualificação de insolvência

8.3. Insolvência culposa e fortuita

Existem duas modalidades de insolvência: a fortuita e a culposa.

O CIRE no artigo 185º faz uma distinção entre uma insolvência fortuita e culposa, sendo que somente existe concretização no ordenamento jurídico português para a insolvência culposa (artigo 186º do CIRE), pelo que dir-se-á a contrario que todas as situações que não se enquadrem neste artigo se enquadrarão no âmbito de uma insolvência fortuita. A sentença de qualificação de insolvência (culposa ou fortuita) não é vinculativa em sede de tutela sancionatória penal (artigos 227º a 229º do CP) e/ou do n.º 3 do artigo 82º do CIRE, sendo que o Juiz nestes casos poderá proferir uma decisão independente da decisão que foi tomada no incidente de qualificação. No entanto, inversamente, poderá o Juiz em sede do incidente de qualificação atribuir valor probatório às sentenças penais ou às sentenças derivadas do n.º 3 do artigo 82º do CIRE.

Para preenchimento do estatuído no n.º 1 do artigo 186º do CIRE têm de estar preenchidos alguns pressupostos: objectivos (actuação dos administradores de direito e de facto ou do devedor criando ou agravando a insolvência, (acção e/ou omissão)), subjectivos (actuação com culpa grave ou de forma dolosa); e temporais (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência).

Os n.ºs 2 e 3 do artigo 186º do CIRE congregam presunções.

No nº 2 as presunções são inilidíveis, “iuris et de iure” conforme se infere da expressão do preceito legal “sempre culposa a insolvência”, e referem-se as alíneas a) a i) a todas as situações que afectem o património do devedor; que embora lhe tragam benefício a título

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pessoal, sejam prejudiciais para o património societário, mas que beneficiam o

administrador que os pratica ou terceiros; ou que se traduzam no incumprimento legal 100.

Para Catarina Serra 101 as alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE são presunções

absolutas de insolvência culposa, e alíneas h) e i) do n.º 2 do mesmo preceito não passam de meras ficções.

Luís Menezes Leitão 102 entende não ser necessário qualquer nexo de causalidade entre

os factos elencados no n.º 2 do artigo 186º do CIRE e a actuação (por acção ou por omissão) do devedor ou do seu administrador, para se concluir se ocorreu ou não criação ou agravamento da insolvência, e consequentemente para se qualificar a insolvência como culposa, “a lei institui consequentemente no artigo 186º n.º 2, uma presunção iuris et

de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse agravamento da situação de insolvência”.

Rui Estrela Oliveira 103 considera ser necessário um nexo de causalidade entre a conduta

do administrador e a criação ou agravamento da situação de insolvência, com excepção feita às alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, ”com excepção dos resultados

decorrentes da interpretação das alíneas h) e i) (…) a prova do nexo de causalidade entre a conduta e a criação ou agravamento do estado de insolvência é necessária para fazer actuar as presunções”.

Daí a distinção feita por este Autor 104 quanto às alíneas n.º 2 do artigo 186º do CIRE,

dividindo-as em dois grupos, alíneas a) a g) são causas semi-objectivas de insolvência

culposa (em que só se prova a insolvência culposa quando se estabelece o nexo de

causalidade entre a conduta dos administradores e a criação ou agravamento da insolvência), e as alíneas h) e i) são causas puramente objectivas de insolvência culposa (as quais dispensam o estabelecimento de qualquer nexo causal, para que se prove a insolvência culposa).

100 Distinção esta que é apontada por Fernandes, Luís A. Carvalho, in A Qualificação de Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor,Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial-Novo Direito da Insolvência, Lisboa, 2005, pág. 95, nota 23

101Serra, Catarina, O Regime Português da Insolvência, cit., pág. 141 102 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito da Insolvência, cit., pág. 274

103 Oliveira, Rui Estrela de, Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, Julgar, n.º 11, 2010, pág. 242 104Oliveira, Rui Estrela de, Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, cit., pág. 237 a 244

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A jurisprudência também não tem sido unânime quanto à necessidade ou não de prova do nexo de causalidade entre a conduta do administrador e a criação ou agravamento da insolvência 105.

Explica a jurisprudência maioritária 106 “Verificada qualquer uma das situações tipificadas

nas als. do n.º 2 do art. 186º do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa, por se tratar de presunções inilidíveis de situações de insolvência culposa” (…) “Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento-cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008, DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009.”

As presunções das alíneas a) e b) do n.º 3 são ilidíveis, “iuris tantum”, conforme se infere da expressão do preceito legal “presume-se a existência de culpa grave”.

Ao contrário do que sucede no n.º 2 do artigo 186º do CIRE expõe a jurisprudência maioritária, que “o n.º 3 do mencionado normativo legal estabelece apenas uma

presunção de culpa grave, presunção iuris tantum que pode ser elidida por prova em contrário, pelo que mesmo que tal presunção se verifique, se exige ainda, que para a actuação do insolvente como culposa, se demonstre que tenha sido a actuação/omissão do devedor a causar ou a agravar a situação de insolvência, nos termos do n.º 1 do citado art. 186º.”107

Rui Estrela Oliveira 108 apresenta entendimentos distintos quanto às alíneas do n.º 3 do

artigo 186º do CIRE. Considera necessário estabelecer-se um nexo de causalidade no que diz respeito à alínea a) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE. No entanto, quanto à alínea b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE entende “que o legislador prescindiu uma vez mais da

105 Como sendo necessária o nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento da insolvência, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.02.2011, processo n.º 1293/07.0TJPRT-AG.P1, “A mera alegação de alguma das situações descritas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 186.º do CIRE não é suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, exigindo-se, ainda, a alegação e prova do nexo de causalidade entre a actuação ali presumida e a situação da insolvência nos termos previstos no n.º 1 do mesmo artigo”. Em sentido oposto, de que se dispensa o nexo de causalidade, todos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.05.2013, processo n.º 380/09.2TBAVR-B.C1; de 21.01.2014, processo n.º 174/12.8TJCBR-C1; de 13.11.2012, processo n.º 333/11.0TBPCV-A.C1, em www.dgsi.pt

106Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.05.2010,processo 427/07.7TBAGD-G.C1, em www.dgsi.pt

107 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.05.2013, processo 102/12.0TBFAG-B.C1. Neste mesmo sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora,de 13.12.2011, processo n.º 2976/09.6TBSTR-A.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.09.2014, processo n.º 1048/12.8TVPD-G.L1-6, todos em www.dgsi.pt

51 alegação e da prova do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou o agravamento do estado de insolvência.”

Se analisarmos as alíneas do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, nem todas congregam o mesmo tipo de importância perante a insolvência culposa, sendo que as alíneas h) e i) se traduzem em situações de incumprimento, tal como as alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE, ao passo que as restantes alíneas do n.º 2 (alíneas a) a g)) parecem conter decisões de gestão e representação empresarial por parte do devedor.

Daí que na doutrina se esgrimam argumentos diferentes, quanto ao n.º 3 do artigo 186º do

CIRE em que uns autores 109 pugnam por autênticas presunções (relativas) de insolvência

culposa (ou presunções relativas de insolvência culposa) e outros autores 110 entendem tratarem-se de presunções ilidíveis de culpa grave que admitem prova em contrário.

Catarina Serra 111 sufraga o entendimento de Luís Menezes Leitão 112, de que entre os

factos elencados no n.º 3 do artigo 186º do CIRE e n.º 1 do mesmo preceito, se estabelece um nexo de causalidade, mas acaba por ir mais além.

No que concerne às alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE esta Autora 104

entende estarmos perante autênticas presunções ilidíveis de insolvência culposa e não perante presunções relativas de culpa grave.

A jurisprudência que comunga desta mesma posição, expõe o seguinte: “trata-se de casos

(…) em que, tendo em vista desencadear a qualificação da insolvência como culposa (…) não faz sentido exigir o nexo causal entre o facto/dever omitido e a geração ou o agravamento da situação de insolvência (…) É justamente por isto (…) que entendemos que as presunções do art. 186º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada (no facto praticado), tendo antes que ser vistas como presunções (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência.” 113

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.05.2010 respeitante ao processo n.º 427/07.7TBAGD-G.C1 aflora esta mesma temática, quanto às alíneas a) a g)

109 Serra, Catarina, O Regime Português da Insolvência,cit., pág. 141

110 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito da Insolvência, cit., pág. 275, Oliveira, Rui Estrela, Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, cit., pág.244 e 245, Epifânio, Maria do Rosário, Manual de Direito da Insolvência, cit., pág. 128

111 Serra, Catarina, O Regime Português da Insolvência, cit., pág. 141

112 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito da Insolvência, cit., pág. 275 “Efectivamente, o que resulta do art. 186º n.º 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º n.º1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.” 113 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.05.2012, processo n.º 1053/10.9TJCBR-K.C1, em www.dgsi.pt

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do n.º 2 e as alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE, considerando que “estas

presunções não são simplesmente de culpa qualificada- no (f)acto praticado- mas são de culpa qualificada na insolvência.”

Analisadas as alíneas de ambos os números do artigo 186º do CIRE, e porque se tratam

de situação de incumprimento, parece descabido que umas permitam ónus de prova e as outras titulem, sem mais, como culposa uma atitude, coadjuvada ou não com um nexo causal entre actuação/omissão de condutas do devedor e/ou seus administradores quanto à criação ou agravamento de insolvência.

Talvez o legislador pouco se quisesse importar com as alíneas do n.º 3 do artigo 186º do CIRE, ao tratarem-se de presunções relativas e também provavelmente pelos factos ínsitos nas mesmas estarem patentes noutros artigos do CIRE, por consagrarem deveres, e como tal sujeitos a outras cominações legais tão ou mais gravosas, do que a qualificação de uma insolvência como culposa.

A alínea a) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE refere-se à apresentação à insolvência, a sua obrigatoriedade decorre dos artigos 18º e 3º do CIRE, e a sua falta de apresentação e de cumprimento de prazos legais, já foi supra aflorado.

Já no que concerne à alínea b) do supra citado preceito legal, quanto à prestação de contas, a mesma deriva de um dever geral de relatar e apresentar as contas, acompanhada dos respectivos documentos legais (artigo 65º do CSC), e sujeitá-los à

apreciação e deliberação dos órgãos societários (alínea d) do artigo 406 do CSC) 114.

Entendemos, face à análise realizada, que deverá verificar-se um nexo de causalidade entre as presunções constantes do n.º 2 do artigo 186º do CIRE e o n.º 1 desse mesmo preceito, com vista a apurar se os administradores de facto e de direito criaram ou agravaram a situação de insolvência, para que se evitem soluções abusivas (dado que nem todas as alíneas traduzem as mesmas realidades).

114 A prestação de contas encontrava-se sujeita a registo comercial (artigos 70º e 70ºA do CSC, e alínea n) do n.º 1 do artigo 3º, n.º 2 do artigo 15º e 42º do CRC). O Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, criador da IES, permitiu a desmaterialização de todo o processo, através do registo informático das contas, sujeito a pagamento de um emolumento, para que as contas possam ser disponibilizadas e passem a constar das certidões permanentes. No entanto, e uma vez mais com vista a evitar a prevaricação no que concerne ao registo de contas, o Decreto-Lei n.º 250/2012, de 23 de Novembro veio introduzir duas medidas: a impossibilidade de realização de outros actos de registo que estejam relacionados com o giro societário, quando não exista registo de prestação de contas, e quando a prestação de contas não seja efectuada em dois ou mais anos consecutivos, poderá a ocorrer dissolução oficiosa da sociedade de acordo com o Regime dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais.

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Quanto às presunções constantes do n.º 3 do artigo 186º do CIRE, as alíneas a) e b) deste preceito traduzem deveres, e como tal entendemos não ser necessário estabelecer qualquer nexo de causalidade entre a conduta do administrador de direito e o administrador de facto e o n.º 1 do mesmo preceito, dado que “esvaziaria a utilidade

destas presunções 115”.

Jurisprudencialmente, podemos chegar a uma conclusão: apesar das alterações legislativas introduzidas, com o cunho de penalizar a actuação dos administradores que são prevaricadores, o que é facto é que parcas têm sido as sentenças em que efectivamente se pune quem actuou violando deveres legais ou contratuais e criou ou agravou uma situação de insolvência.