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Instâncias que intervêm no exercício da leitura

PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPÍTULO 2: A LEITURA E A SOCIEDADE DO CONHECIMENTO

3. O ensino/aprendizagem da leitura para a Sociedade do Conhecimento

3.2. Instâncias que intervêm no exercício da leitura

Sendo a leitura uma prática interactiva e intersubjectiva, pode-se afirmar que ela implica uma relação complexa entre três instâncias: produção (autor), produto (obra) e (re)produção (leitor). Esta relação é diferida e, portanto, mediada por uma pluralidade, sincrónica e diacrónica, de contextos socioculturais, onde essas diversas instâncias se inscrevem.

Esta concepção da leitura leva-nos a destacar o leitor, o texto e o contexto como instâncias essenciais na leitura, tal como defendem Jocelyne Giasson (1993) e Leonor Lencastre (2003).

Como nos diz Jocelyne Giasson (1993, 21), «Os investigadores são hoje unânimes em considerar a leitura um processo interactivo (Pagé, 1985; Mosenthal, 1989). Existe igualmente consenso quanto às grandes componentes do modelo de compreensão na leitura, isto é, o texto, o leitor e o contexto. Esta classificação encontra-se num grande número de autores como Irwin (1986), Deschênes (1986), Langer (1986)».

Da mesma forma, Leonor Lencastre (2003, 97-98) considera que «a visão mais actual da compreensão de textos encara-a como um processo construtivo, fruto da interacção de dois grandes grupos de variáveis, inerentemente mais ligadas ao leitor, ou ao texto, não esquecendo todos os condicionalismos da situação particular da leitura.»

Impõe-se, portanto, que consideremos cada um destes aspectos: leitor, texto e contexto.

3.2.1. O leitor

Como referimos anteriormente, quer Jocelyne Giasson (1993), quer Leonor Lencastre (2003), destacando o consenso entre os investigadores, referem a importância do papel do leitor no processo de leitura.

Segundo Jocelyne Giasson (1993, 25), «O leitor constitui certamente a variável mais complexa do modelo de compreensão».

Leonor Lencastre (2003, 98) apresenta, como principais factores relacionados com o leitor, «o conhecimento prévio, a perspectiva, os interesses e as atitudes, a capacidade

cognitiva, o objectivo da leitura, as estratégias e estilos de processamento da informação textual.»

O leitor aborda a actividade de leitura com as estruturas cognitivas e afectivas que lhe são próprias. As estruturas «são as características que o leitor possui, independentemente das situações de leitura.» (Giasson: 1993, 25). Correspondem aos conhecimentos sobre a língua e sobre o mundo que o indivíduo possui e aos interesses que este manifesta e que darão o seu contributo no decurso de uma determinada leitura.

Essas características do leitor (conhecimentos sobre a língua, conhecimentos sobre o mundo e interesses) permitem-lhe levantar hipóteses sobre a relação entre o oral e o escrito e sobre o sentido do texto.

Os conhecimentos sobre a língua que o leitor possui (adquiridos e, em parte, desenvolvidos no seu meio familiar, de modo natural, enquanto criança) são de natureza fonológica, sintáctica, semântica e pragmática (cf. Giasson: 1993, 26-27). Estes conhecimentos estão incluídos no conhecimento ligado à linguística textual (“text-bound knowledge”), uma das três dimensões do conhecimento prévio apresentadas por John Chapman (1985, 264), e são também desenvolvidos na escola.

Por sua vez, os conhecimentos sobre o mundo dizem respeito à experiência de vida do leitor, incluindo experiências relacionadas com outras leituras feitas, e podem incluir-se numa outra dimensão do conhecimento prévio que John Chapman (1985, 264) designa por “real-world knowledge”.

Segundo este autor, o conhecimento prévio engloba ainda uma terceira dimensão: “specific content knowledge”. Nesta dimensão, inclui-se o conhecimento relativo ao assunto do texto.

A investigação tem demonstrado o importante papel que o conhecimento prévio desempenha na compreensão do texto e na aquisição de novos conhecimentos. A este propósito, Leonor Lencastre (2003, 145) afirma: «A maioria dos estudos empíricos parece demonstrar que a quantidade de conhecimento do domínio que os sujeitos possuem antes da leitura tem um impacto importante na forma como tratam a informação e por consequência no seu desempenho. O conhecimento prévio do domínio parece não só influenciar a quantidade de informação compreendida, mas também a forma como ela é compreendida».

Num estudo que tinha como um dos seus objectivos «verificar de que modo os alunos utilizavam os seus conhecimentos prévios na compreensão em leitura» (Carreira e Sá: 2004, 74), concluiu-se que, com o desenvolvimento do conhecimento prévio dos alunos, se verificou uma melhoria do seu desempenho em tarefas associadas à compreensão na leitura (cf. Carreira & Sá: 2004, 79).

Durante a leitura, o leitor recorre também a diferentes processos que lhe permitem compreender o texto. Como nos diz Jocelyne Giasson (1993, 32), «Os processos de leitura dizem respeito ao recurso às habilidades necessárias para abordar o texto, ao desenrolar das actividades cognitivas durante a leitura. É importante mencionar que estes processos, que se realizam a diferentes níveis, não são sequenciais mas simultâneos.».

Segundo Judith Irwin (1986), podem distinguir-se cinco grandes categorias de processos: microprocessos, processos de integração, macroprocessos, processos de elaboração e processos metacognitivos.

Os microprocessos servem para compreender uma informação contida numa frase: reconhecimento das palavras, leitura de grupos de palavras e microsselecção (selecção da informação que deve ser retida numa frase).

Os processos de integração têm como função estabelecer ligações entre as proposições ou as frases: utilização de referentes, utilização de conectores e inferências baseadas em esquemas.

Os macroprocessos orientam-se para a compreensão global do texto, para as conexões que permitem fazer do texto um todo coerente: identificação das ideias principais, resumo e utilização da estrutura do texto.

Os processos de elaboração são os que permitem ao leitor ir para além do texto, fazer inferências: previsões, imagens mentais, resposta afectiva, ligação com os conhecimentos e raciocínio.

Os processos metacognitivos gerem a compreensão e permitem ao leitor adaptar-se ao texto e à situação: identificação da perda de compreensão e reparação da perda de compreensão.

3.2.2. O texto

A grande importância que o texto tem na leitura decorre de vários aspectos que estão ligados a algumas das suas características, uma vez que o leitor pode reagir e comportar-se de maneira diferente conforme as características do texto que lhe é apresentado.

Segundo diversos autores (Giasson: 1993; Lencastre: 2003; Solé: 1998), a estrutura do texto, o seu conteúdo e a intenção do seu autor são aspectos decisivos para a compreensão do mesmo.

A estrutura do texto é um factor importante na leitura, porque, segundo Isabel Solé (1998, 87), «ofrece indicadores esenciales que permiten anticipar la información», uma vez que o leitor «puede utilizar las mismas claves que el autor usa para componer un significado, pêro esta vez para interpretarlo» (Solé: 1998, 88).

Por outro lado, segundo Leonor Lencastre (2003, 122), os estudos experimentais sobre questões relacionadas com a estrutura dos textos apontam «para a ideia de que um texto bem organizado, segundo um determinado padrão retórico, parece levar a uma melhor compreensão do que um texto que não segue um determinado padrão.»

Como existe uma relação entre o conhecimento da estrutura organizacional do texto e o tipo e quantidade de informação lembradas, os leitores podem utilizar esse conhecimento como estratégia de processamento favorecedora da compreensão.

Jocelyne Giasson (1993, 163) diz-nos que os alunos têm mais dificuldade em compreender os textos informativos do que os narrativos e que «Certos autores (...) explicam esta situação pelo facto de os textos informativos conterem muitas vezes um conteúdo não-familiar, conceitos novos, frases longas e estruturas sintácticas complexas. Outros invocam, por outro lado, a falta de interesse e de motivação dos alunos perante este género de texto.» Mas há autores que invocam, ainda, a falta de conhecimentos dos alunos em relação à estrutura do texto.

Vemos assim que a estrutura do texto, quando associada ao conhecimento que o leitor tem relativamente a essa estrutura, assume um papel importante na leitura.

Finalmente, a estrutura do texto está também ligada, quer ao conteúdo, quer à intenção do autor. Como diz Jocelyne Giasson (1993, 36) «o autor escolherá uma estrutura de texto que convenha ao conteúdo que quer transmitir».

Constatamos assim que o texto, em geral, e algumas das suas características, em particular, podem interferir de forma significativa na leitura, o que faz dele uma variável importante a ter em conta no acto de ler.

3.2.3. O contexto

A terceira variável a ter em conta na leitura é o contexto. Este engloba todas as condições em que se encontra o leitor, quando entra em contacto com um texto. Estas condições incluem as que o leitor se impõe a si mesmo e as que o meio determina (cf. Giasson: 1993, 40).

No que se refere às condições que o próprio leitor determina, trata-se do que pode ser designado por contexto psicológico e «diz respeito às condições contextuais próprias do leitor, quer dizer ao seu interesse pelo texto a ler, à sua motivação e à sua intenção de leitura.» (Giasson: 1993, 40).

Relativamente às condições que o meio determina, podemos considerá-las tendo em conta uma dupla perspectiva: por um lado, a leitura associada à vida escolar e, por outro lado, a leitura associada a uma prática social e cultural.

Na primeira perspectiva, as condições são normalmente definidas pelos professores – tempo disponível, uma leitura partilhada ou não, silenciosa ou em voz alta, etc. Nesta situação, podemos falar do contexto social entendido como «todas as formas de interacção que podem produzir-se no decurso da actividade entre o leitor e o professor ou entre ele e os seus pares: as situações de leitura individual por oposição a situações de leitura perante um grupo; as leituras sem apoio, por oposição às leituras orientadas.» (Giasson: 1993, 42).

Já na leitura associada a uma prática social e cultural, embora também se deva incluir a perspectiva anterior, as condições são determinadas por um leque muito mais alargado de factores, conduzindo, conforme as circunstâncias, a uma utilização mais adequada ou menos adequada da leitura.

Finalmente, podemos ainda considerar o contexto físico que «compreende todas as condições materiais em que se desenrola a leitura»: ruído, temperatura ambiente, qualidade de reprodução dos textos, etc. (Giasson: 1993, 42).

Em termos gerais, podem-se, assim, distinguir três tipos de contextos: psicológico, social e físico.