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3 INSTITUIÇÃO, MEMÓRIA E INFORMAÇÃO ARQUIVÍSTICA

3.1 INSTITUIÇÃO E MEMÓRIA

Para Baremblitt (1992, p.27), a sociedade se estrutura como uma rede, um tecido de instituições. Tanto que o equilíbrio e controle interno das relações sociais podem ser compreendidos como os limites que uma instituição causa a outra. Com efeito, as instituições, além de suas estruturas organizacionais, possuem lógicas de conduta em diferentes graus de formalização. De fato, leis ou normas podem ser compreendidas como instituições. A instituição surge na tentativa de superar a diferença que não pode ser efetivamente compartilhada. O institucionalizado se refere, portanto, ao que foi superado do conjunto dos interesses particulares seja de indivíduos, instituições ou organizações.

Em um plano formal, uma sociedade se constitui em instituições para regular a produção e a reprodução de sua cultura e dos seus modos de civilidade

4 Como lembra Gagnon-Arguin (1998 apud ROUSSEAU; COUTURE, 1998, p.33) “os documentos

desempenham também um papel de prova. [...], encontramos diversas categorias de documentos que têm valor de prova ou um valor legal. De múltiplas formas, eles desempenham sempre um papel na defesa dos direitos das pessoas e das instituições”.

em seus aspectos mais específicos. Contudo, para os efeitos objetivos e efetivos das instituições, o instituído deve se realizar coletivamente em dispositivos concretos: as organizações, os comportamentos, as leis, enfim, as regras de convivência. De fato, instituições surgem sobre o acúmulo das experiências julgadas “positivas” de uma cultura, adquirem autonomia e generalidade. Assim, uma instituição formaliza a memória (conjunto de experiências) que uma cultura dispõe sobre um ou outro procedimento moral, ético, cultural, científico, entre outros.

Diante da memória institucional estamos, em realidade, frente à história das realizações “práticas” do que foi instituído. Ou seja, como a instituição foi “objetivada”, “realizada”, em uma organização. A UFBA, por exemplo, ainda que tenha se constituído como instituição (na data de sua fundação, em 8 de abril de 1946), possuiu ao longo dos anos diversos modos de organização, de “objetivação” institucional.

Ainda, segundo Baremblitt (1992, p.31), em uma instituição podem distinguir-se duas vertentes importantes: [...]uma é a vertente do instituinte, e outra a do instituído”. E aqui estamos diante de duas relações entre memória e instituição. Pensando em uma genealogia das instituições podemos sugerir que a memória, primeiro, é instituinte, gerando o instituído a partir de sua consolidação. A memória institucional surge a partir da formalização de tudo o que foi instituído, que reedita a memória instituinte, mas a partir de uma “organização” prévia, articulada, sempre com a finalidade de representar e conservar a memória instituinte e sua vitalidade para a instituição. A memória instituinte é uma força produtora de códigos institucionais. Trata-se, a rigor, da memória institucional para a renovação institucional voltada para a inovação.

O momento inicial do processo constante de produção e de criação das instituições gera um produto, o instituído. O instituído é o efeito da atividade do instituinte. De fato, nosso objeto de pesquisa é a memória do que foi instituído, e nosso objetivo é tentar fazer da memória do instituído, memória instituinte, ou seja, memória ativa, dinâmica, que participa da produção do instituído. Para Baremblitt (1992, p.32):

o instituinte aparece como um processo, enquanto o instituído aparece como resultado. O instituinte transmite uma característica dinâmica; o instituídotransmite uma característica estática, congelada .

institucional de natureza arquivística estão lidando com uma memória estática, uma memória “controlada” e, mesmo, conservadora, considerando que sempre reedita os padrões de acumulação sem compromisso histórico ou institucional. Contudo, é evidente que o instituído desempenha uma função decisiva na cultura operacional das instituições, porque mantém articuladas as normas constituídas; as pautas de integração cultural; os padrões de conduta e toda normatização da vida em coletividade. O desafio aqui é que a memória do instituído possa, também, ser percebida como agente instituínte, deve acompanhar e ser preparada para sugerir e implementar transformações institucionais.

Assim, os setores que lidam na instituição com a memória institucional, como o Arquivo Geral da UFBA, protagonizam um jogo silencioso de conservação e transformação entre o organizado e o organizante. Enquanto organizado, o Arquivo Geral cumpre a representação coletiva através da memória “instituída” para o conjunto da comunidade da UFBA. Porém, não há um núcleo organizante no Arquivo, passível de relação atualizada com a memória instituinte, sempre renovada e transformadora. No cerne do instituído a memória e sua gestão ganham feições burocráticas, técnicas e procedimentos que funcionam no limite da mera repetição.

Hoje, o que há de instituído na UFBA reúne complexos dispositivos técnicos de formalizar, conter e organizar sua memória, imediata ou de longo prazo. Contudo, as versões institucionais do passado, ainda que guardem qualidades como a fidelidade dos documentos e sua complexa riqueza de detalhes, pode calar a diversidade, as versões particulares, pessoais e mesmo passionais dos fatos e ocorrências. O uso do passado como memória social controlada, fonte e instrumento de poder foi trabalhado por Foucault (1997, p.145-151). Os dispositivos institucionais de memória devem proporcionar uma história da memória instituinte, sempre em movimento, renovadora, participativa do cotidiano do instituído; e aqui reside o nosso desafio: criar na instituição espaço para vozes instituintes. Desta forma, os arquivos devem

[...] dar conta dos enunciados em sua dispersão, em todas as falhas abertas por sua não-coerência, em sua superposição e substituição recíproca, em sua simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível; em suma, tem que dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de uma devir estranho (FOUCAULT, 1997, p.146).

Podemos compreender a memória como um teatro, fazendo menção a uma divisão que haveria entre uma região interior da memória institucional (onde a representação de uma rotina é preparada) e uma região exterior da memória social (onde a representação é apresentada), ou seja, escolhe-se aquilo que vai ser mostrado e o que deve ser ocultado. Infere-se daí que durante toda a dinâmica de constituição da memória institucional, as informações estão sendo controladas, se não intencionalmente, subjetivamente. Com efeito, ainda que a competência da tecnologia mantenha a memória dos processos burocráticos e oficiais armazenadas em detalhes, o caráter da informação ganha impessoalidade neste processo e se atrela a um padrão discursivo de memória. Por padrão discursivo de memória queremos identificar o conjunto preparado das versões individuais selecionadas para uma versão oficial da memória institucional.

As instituições de transmissão de saber e cultura tendem, por constituição, a legitimar significados e bens simbólicos dominantes (BOURDIEU, 1992, p.121), resumindo-se a repetir suas regras e conteúdos. Passam a abrigar redes discursivas totais, saberes órfãos dos sujeitos que poderiam lhes atribuir causas e efeitos imediatos e contemporâneos. A violência simbólica, correlacionada com a competência dos arquivos, consiste em manter e transmitir designações unívocas de expressões da memória institucional, privilegiando a indiferença impessoal dos significados burocráticos em detrimento da diversidade particular da memória instituinte, da memória que se constitui como informação estratégica, capaz de transformar efetivamente a instituição e o modo como está organizada.