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5 ENSINAMENTOS E REPERCUSSÕES NA FORÇA TERRESTRE BRASILEIRA O estudo do conflito das Falklands / Malvinas coloca-nos diante do que, nos

5.3 O ELEMENTO HUMANO

5.3.2 Instrução militar

As observações relativas à instrução / adestramento levantadas no presente estudo remetem particularmente:

(1) à instrução técnica de especialistas, particularmente daqueles que operam com meios eletrônicos, pela crescente complexidade das tecnologias incorporadas aos equipamentos;

(2) à valorização de áreas ou técnicas de combate já conhecidas, mas até então menos difundidas, como operações especiais, operações psicológicas e combate noturno; e

(3) às deficiências argentinas no desenvolvimento de atributos e valores já consagrados, com destaque para as técnicas e práticas de liderança (em todos os níveis).

Todos os aspectos supramencionados, por sua vez, assinalam a importância de se intensificar a instrução e o adestramento militar dos quadros em geral, desde o tempo de paz. Dos três aspectos acima enumerados, ater-se-á mais detidamente

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Organização militar com vocação para emprego em área de operações com condições especiais de ambiente ou que empregue técnica que requeira equipamento adicional ou treinamento especializado (montanha, caatinga, pantanal, garantia da lei e da ordem, artilharia de foguetes etc.)

aos primeiro e terceiro, onde os ensinamentos teriam ecoado no Exército Brasileiro com maior intensidade.

Também foram nesse sentido as conclusões do estudo realizado pelo EME em 1982. Nas diretrizes para sua elaboração, expedidas pelo Vice-Chefe do Estado Maior do Exército, o então General de Divisão Leônidas Pires Gonçalves, já constava que “a focalização da Argentina é do maior interesse. Contudo, os aspectos referentes aos materiais modernos e novos métodos de combate por parte dos ingleses merecem atenção especial.” Uma vez concluído, o trabalho apontou, na sua parte final, a necessidade de se intensificar o treinamento, particularmente quanto a instrução tática dos quadros, a já mencionada instrução técnica dos especialistas, e as instruções de operações especiais e de manutenção do material. (Brasil, EME, 1982: 107)

É interessante destacar aqui a importância atribuída pelo Ministro do Exército, à época o general Walter Pires, ao estudo histórico-doutrinário do conflito, realizado pelo EME e a preocupação de que suas conclusões e ensinamentos tivessem ampla divulgação no âmbito da Força Terrestre, conforme o teor, reproduzido a seguir, de um documento226 do Chefe de Gabinete do Ministro ao Vice-Chefe do EME:

[...] 2. O Sr. Ministro, considerando a importância dos ensinamentos

constantes do referido Estudo e desejando dar a eles a mais ampla divulgação, incumbiu-me de solicitar a esse Estado-Maior, por intermédio de

V Exa, providências no sentido da elaboração de uma síntese daquele documento, onde sejam abordados os principais aspectos relacionados com as operações terrestres.

3. Deseja ainda o Sr. Ministro, que a síntese acima solicitada seja difundida de forma a que todos os oficiais do EB dela tenham conhecimento. [grifos nossos]

No caso argentino, apesar de o general Menéndez afirmar o contrário, as deficiências observadas em parte de seus quadros (conforme diversos depoimentos colhidos por pesquisadores argentinos) apontam para a conclusão de que o longo período de combate à subversão na Argentina teria impactado na instrução e preparo da tropa, mais adestrada para a guerra irregular do que para o combate convencional. Um exemplo ilustrativo disso foi a verificação de que, por ocasião do desembarque britânico em San Carlos, após a queda de um helicóptero, recrutas argentinos continuaram atirando sobre os 2 tripulantes sobreviventes, por

desconhecerem a Convenção de Genebra. Tal informação foi transmitida pelo tenente Esteban, comandante do pequeno efetivo argentino que se encontrava em missão naquela área, por ocasião do desembarque (Hastings; Jenkins, 1883: 203; Middelbrook, 2003: 147). Esse tema, depois da guerra, passaria a constar do currículo da instrução básica do Exército Argentino.

Como já registramos anteriormente no presente trabalho, o longo período sem envolvimento do Brasil em conflitos convencionais, aliado à Doutrina de Segurança Nacional, ainda fortemente impregnada no pensamento militar brasileiro no início dos anos 80, poderiam ter contribuído para que o mesmo tivesse ocorrido no Brasil, dada a ênfase atribuída às atividades voltadas para a segurança interna (instrução de combate à guerra irregular / guerra revolucionária, desde o final dos anos 60).

Questionado sobre a ênfase da instrução militar na década de 1970 atribuída à guerra insurrecional, o general Leonidas concorda que em todas as escolas essa ênfase ocorreu, mas não em detrimento do combate convencional. Nesse ponto, faz um paralelo com o conceito moderno de guerra de quarta geração227, a seu ver uma mistura de combate convencional e insurrecional, sem uma divisão clara. Afirma o general: “Quem pode o mais, pode o menos. Com um acréscimo pequeno, específico, fica-se preparado para a outra [modalidade]. O inverso não é verdadeiro.[...] Qualquer que seja a guerra, a convencional é a base, porque ela abre todas as frentes. Aí, você especializa o pessoal [grifo nosso].”

Todavia, o general Leônidas assinala que, em diversos momentos de sua vida militar, observara uma instrução militar descolada da realidade (material e situacional) brasileira. O ex-ministro cita como exemplo emblemático desse mal a doutrina da guerra pentômica (já mencionada no capítulo 3), que chegou a ser discutida aqui no final dos anos 1950. Ao assumir o Ministério do Exército, determinaria uma modificação curricular nas escolas em geral, com dois grandes objetivos: “fazer com que as instruções fossem o mais próximo do moderno quanto

226 Ofício N° 214 / A3, de 12 de abril de 1983 (documento confidencial, à época).

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Na Guerra de Quarta Geração, o Estado perde o monopólio sobre a guerra: ao redor do mundo, os militares encontram-se combatendo oponentes não estatais, como a al-Qaeda, o Hamas, o

Hezbollah e as Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia. Lind (2005: 12-17) afirma que, nessa

guerra, a invasão de imigrantes pode ser tão perigosa quanto a invasão do exército inimigo. Muitas das táticas usadas pelos oponentes são táticas de guerrilha, incluindo muito do que chamamos de terrorismo. A mudança em quem combate torna difícil diferenciar entre o amigo e o inimigo. “Nada disto é novo; é novo apenas para forças armadas estatais programadas a combater outras forças armadas estatais.”

possível, mas dentro das nossas possibilidades e limitações de material, e abrir a mente do pessoal para o que é mesmo a guerra”.

Na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), essa diretriz refletiu-se, adicionalmente, na ampliação de sua estrutura física (obras iniciadas em 1987 e inauguradas em 1989), praticamente dobrando a capacidade de formação de oficiais, com o objetivo de, no futuro, fazer frente ao aumento de efetivos que se vislumbrava nos Projetos FT-2000 e FT-21.

Sendo a AMAN o estabelecimento de ensino militar responsável pela formação da maior parte da oficialidade de carreira do Exército Brasileiro – a totalidade dos oficiais da linha bélica (o oficial ali formado recebe o diploma de Bacharel em Ciências Militares), julgamos pertinente explicar sucintamente a estrutura de seu sistema de ensino.

Ali são incutidos nos cadetes os principais valores da cultura organizacional da Força Terrestre, que serão desenvolvidos/cultivados ao longo de toda a carreira do oficial. Seus cursos, desde 1964, possuem quatro anos de duração, dividindo-se em duas fases: Curso Básico228 e Cursos das Armas (são sete as especialidades ali conduzidas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Material Bélico e Intendência).

O ensino na AMAN contempla duas grandes áreas: Ensino Fundamental (disciplinas ditas “universitárias”, nas áreas de Ciências Exatas e Ciências Humanas, para todos os cursos) e Ensino Profissional (disciplinas militares, comuns e específicas de cada curso).

Na fase inicial, o Curso Básico, o Ensino Fundamental concentra-se na área das Ciências Exatas (matemática, geometria descritiva, física/mecânica, química, estatística, informática e topografia) e, no Ensino Profissional, os cadetes têm instrução militar de matérias que são comuns a todas as sete especialidades já mencionadas. Ao término do Curso Básico, de acordo com o mérito intelectual (classificação obtida), os cadetes deverão optar por uma delas, momento em que definem sua futura área de atuação na Força Terrestre.

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De 1964 a 1976, o Curso Básico abrangia os dois primeiros anos; de 1977 a 1987 foi reduzido a um ano e, em 1988, retornou à conformação anterior de dois anos. Além de concentrar disciplinas ditas “básicas”, tanto no Ensino Fundamental como no Profissional permite um período de convivência e conhecimento mútuos, objetivando um melhor relacionamento interpessoal futuro, visto que os cadetes serão mais à frente divididos em armas / serviços distintos.

Na segunda fase, já dentro da especialidade escolhida, predominam no Ensino Fundamental as disciplinas da área das Ciências Humanas (geografia, história militar, direito, psicologia, filosofia e didática). No Ensino Profissional, há algumas matérias comuns a todos os cursos e uma quantidade maior de disciplinas específicas da área de trabalho escolhida. Outras disciplinas, como Idiomas e Redação e Estilística, permeiam os quatro anos da AMAN.229

Da análise da evolução do seu currículo na década de 1980 (ver Anexo “A”), particularmente na parte do ensino profissional, verifica-se que as cargas horárias destinadas aos Ensinos Profissional e Fundamental mantiveram-se praticamente estáveis até o ano de 1987, numa proporção média de dois para um, respectivamente. Uma mudança significativa no currículo ocorreu no ano de 1988, no contexto das já mencionadas diretrizes expedidas pelo general Leônidas, então Ministro do Exército, quando o Curso Básico voltou a ter a duração de dois anos.

Houve um expressivo aumento das cargas horárias, tanto no Ensino Profissional como no Fundamental (possivelmente pelo reajuste de horas antes destinadas a atividades complementares)230 e encontramos pequenas modificações, que remetem a alguns ensinamentos colhidos no conflito em tela.

Ocorreu ainda, no Curso Básico, a partir de 1983, a inclusão de uma carga horária anual de cerca de 30 horas, para “Desenvolvimento da Personalidade Militar”. Buscava-se, nessa disciplina incutir / desenvolver nos novos cadetes os chamados, no jargão militar, “Atributos da Área Afetiva”, dentre os quais, o aspecto da liderança. Com a mudança de duração do Curso Básico para dois anos, essa carga horária estendeu-se também para o 2º ano do curso.

Antes do conflito o currículo da Academia já contemplava, no 4º (e último) ano do curso, uma disciplina denominada “Liderança” e uma determinada carga horária destinada à prática das atividades de comando e de instrutor, combinadas com estágios em organizações militares do Corpo de Tropa. Apesar de tais atividades constarem do programa de matérias em toda a década, como disciplinas do Ensino Profissional no 4º ano, somente encontramos o registro de carga horária destinada

229 Na obra de Celso Castro “O Espírito Militar: um estudo de Antropologia Social na Academia Militar

das Agulhas Negras” (1990) há um minucioso estudo sobre a AMAN, sua história e seus cursos, do

qual se pode obter uma visão bem detalhada da estrutura e da vida dos cadetes na década de 1980.

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A proporção, antes de dois para um, passou a aproximadamente 1,5 para um, mantendo-se ainda, coerentemente, a carga maior na parte profissional. O anexo “B” traz um extrato das disciplinas ministradas (e respectivas cargas horárias) no período de 1982 a 1989. Não foram registradas horas

especificamente à mencionada prática de atividades de comando e de instrução (350 horas anuais) a partir de 1988. Isso denotaria um aumento na preocupação com o desenvolvimento de atributos de liderança no último ano do curso.

Acerca da importância do desenvolvimento da liderança no meio militar, em todos os níveis, o general Leônidas afirma:

A cadeia de comando é potencializada pela liderança. Esta é resultado do somatório de treinamento com atributos pessoais inatos, nos diversos níveis: bom treinamento de militares com poucos atributos, resultará num somatório baixo (ou até nulo); o inverso, resultará num somatório mediano; o verdadeiro diferencial esta na combinação de bom treinamento com atributos pessoais. (Gonçalves, 2010)

Também de interesse para o presente trabalho, as disciplinas “Guerra Revolucionária” e “Informações”, parte integrante do Ensino Profissional e ministradas no 2º e 3º anos do curso, seguiram sendo ministradas, coerente com o fato de, como se viu no terceiro capítulo, a Doutrina de Segurança Nacional estar ainda fortemente impregnada no pensamento militar na década de 1980.

Chama também a atenção, a partir da referida mudança curricular, a discriminação de uma carga horária específica no Ensino Profissional para a instrução de operações especiais – um dos aspectos valorizados no estudo do conflito e cuja necessidade de intensificação ficou patente –, nos quatro anos de curso e sob o título de “Instrução Especial”. Esse tipo de instrução, comum a todos os cursos, já estava presente no currículo da Academia, mas como mera integrante do grupo de matérias “Assuntos Profissionais”. Essa inserção, perfazendo um acréscimo de 250 horas, representou parcela significativa do aumento da carga horária verificada no Ensino Profissional.

Finalmente, o Ensino Profissional da AMAN (como o das demais escolas militares) foi também impactado pelo advento de novas atividades no Exército Brasileiro, em decorrência direta do desenvolvimento das respectivas doutrinas de emprego, importantes para a formação dos oficiais nas diferentes especialidades ali conduzidas.

destinadas a estudo, realização de provas e atividades complementares e extra-classe, previstas e distribuídas nos quatro anos.

5.3.2.1 Aspectos derivados de novas tecnologias

A já mencionada criação do Centro de Instrução de Guerra Eletrônica, primeira organização militar voltada para essa atividade no EB e como se viu, não por coincidência, voltada para o ensino, redundou na inserção de um novo ramo de especialização de pessoal, por meio de cursos para oficiais e praças.

Em 1986, membros do núcleo de implantação daquele centro frequentaram cursos na França, Grã-Bretanha, EUA e RFA e realizaram visitas a instalações industriais e militares no Brasil e no exterior, tudo com o propósito de colher informações técnicas e doutrinárias sobre o emprego operacional da Guerra Eletrônica e, mais tarde, constituir o núcleo docente do CIGE.231

Em novembro de 1989, foi diplomada a primeira turma de “guerreiros eletrônicos”, composta de quinze oficiais e dez sargentos do Exército e um oficial e dois sargentos do Corpo de Fuzileiros Navais.232

Nesse mesmo período foram elaborados os primeiros manuais brasileiros regulando a doutrina de emprego de Guerra Eletrônica. O conteúdo dos manuais ostensivos233 passou a ser de conhecimento obrigatório para os militares de comunicações e para aqueles de outras armas que trabalhassem ou planejassem o emprego de emissores eletrônicos (de comunicações ou radares). Isso levou à inserção desse tema no currículo das escolas de formação, nos diversos níveis, assim como na instrução militar de comunicações das OM em geral, operacionais ou não.

Por decorrerem diretamente da implantação da atividade de Guerra Eletrônica no Exército Brasileiro, evento intimamente ligado aos ensinamentos da Guerra das Falklands / Malvinas, tais cursos e estágios (e a subsequente inserção do assunto “Guerra Eletrônica” no currículo das escolas de formação e na instrução militar de comunicações e eletrônica) podem ser também considerados “ecos” daquele conflito.

A implantação da Aviação do Exército teve também impacto nas mesmas áreas já apontadas na atividade de Guerra Eletrônica: todo um corpo de doutrina de

231

Nota-se aqui, mais uma vez, a presença da emulação e do isomorfismo, nitidamente normativo.

232

No âmbito do Centro de Instrução de Guerra Eletrônica, funcionaram inicialmente dois cursos de longa duração (cerca de seis meses), voltados para oficiais e sargentos da Arma de Comunicações.

233 A difusão dos manuais com classificação sigilosa “Reservado” ou “Confidencial” restringe-se, de

modo geral, ao uso por especialistas ou planejadores de nível intermediário (capitães) ou superiores (a partir de major), no exercício de suas funções de oficial de Estado-Maior ou durante os cursos da

planejamento, emprego e manutenção foi criado e era imperiosa a sua disseminação no âmbito da Força Terrestre. Os manuais criados igualmente passaram a ser de conhecimento obrigatório de militares, inclusive “não-especialistas em Aviação”, que planejassem o emprego ou trabalhassem com helicópteros, o que igualmente levou à inserção desse tema nos currículos da AMAN, da EsAO e da ECEME.

Tanto na área de Guerra eletrônica, como na de Aviação, o Exército Brasileiro seguiu selecionando e enviando anualmente militares para o exterior, a fim de realizarem intercâmbios, visitas e cursos de especialização / atualização em estabelecimentos de ensino ou mesmo junto aos fornecedores dos equipamentos em uso no país, na sua maioria importados.

Verificou-se no presente estudo que, fator positivo a ser destacado, o Exército Brasileiro sempre preservou a área do ensino (formação e especialização de recursos humanos) quando da ocorrência de cortes orçamentários, de modo a se manter, dentro do possível, ao menos doutrinariamente atualizado.