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CAPÍTULO III – ANÁLISE E DISCUSSÃO DO CORPUS DA PESQUISA

3.3. O QUE PODE SER DITO PELO NÃO DITO

3.3.2. Intenções e hipocrisias organizacionais

Submerso aos discursos (PPC’s, PE’s e entrevistas) e às práticas didático- pedagógicas observadas em sala de aula e, situando-se no ponto extremo das análises realizadas, encontram-se três intenções organizacionais: função social da escola, interdisciplinaridade e formação integral. Intenções organizacionais que foram inferidas com base nas descrições encontradas nos discursos e nas práticas e correspondem, considerando Bardin (2009), às variáveis inferidas alcançadas por intermédio das técnicas e procedimentos da análise de conteúdo.

Estas intenções organizacionais se organizam numa tríplice estrutura associativa, a qual corresponde a uma segunda estrutura que é composta por três polos articulados naturalmente – sociedade, escola e aluno (ver Fig. 10). Há uma relação biunívoca entre intenções e polos. Verificou-se que no interior daquelas intenções falta uma articulação entre aspectos importantes para que o processo educacional contribua efetivamente para o desenvolvimento dos alunos. Constatou- se, a partir das descrições realizadas na pesquisa, que esse fato se relaciona com as hipocrisias organizacionais teorizadas por Brunsson (2007).

Figura 10 – Intenções organizacionais, inferidas no processo educacional pesquisado. Fonte: descrições dos resultados e análises.

Interdisciplinaridade Formação integral Função social da escola Escola Aluno Sociedad

Para Brunsson (2007), as hipocrisias organizacionais caracterizam-se pelas contradições existentes entre as decisões tomadas e as ações realizadas na organização. Para o autor, as hipocrisias organizacionais mantêm a organização viva na medida em que contribuem para acomodar conflitos intergrupais e proporcionar flexibilidade para resolvê-los11, assim como legitimar a organização de modo a continuar assegurando recursos para a sua manutenção.

3.3.2.1 Função social da escola

Este trabalho identificou que existe, em relação aos cursos pesquisados, hipocrisia organizacional quanto à função social da escola. De acordo com a análise documental dos PPC’s e PE’s, o papel sociocultural da educação de formar para o trabalho e para valores encontra-se presente nos objetivos do curso de Pedagogia; encontra-se presente, também, no curso de Administração quando o PPC menciona que o aluno será formado no campo econômico, político, cultural e social do País. Nos PE’s dos dois cursos, esse papel encontra-se presente, dentre outros, nos objetivos de formar para o compromisso com uma ética profissional e com a vida em sociedade; formar para a visão holística das organizações, produzindo conhecimentos contextualizados.

Este discurso institucional, de caráter normativo, garante a legitimidade social dos cursos na medida em que o cumprimento da função social da educação é anunciado no PPC e nos PE’s como se fosse uma lei a ser obedecida pelos envolvidos no processo educacional. No entanto, as pressões e exigências no âmbito dos cursos, conforme evidenciou a pesquisa, caracterizam contradições que distanciam o discurso da prática. Esta situação define uma hipocrisia organizacional, pois, em seu nascedouro, as decisões estão fadadas a não se cumprirem (BRUNSSON, 2007).

Se, por um lado, tal hipocrisia é favorável à gestão organizacional por funcionar como uma forma de resolver conflitos intergrupais ao conferir flexibilidade à organização (LIRA, 2010), por outro lado, seus desdobramentos impactam o

11 Cabe explicar que o conceito de hipocrisia organizacional proposto por Brunsson (2007) não possui

conotação pejorativa ou condenatória que, em princípio, poderia supor. Como explica Lira (2010), neste conceito não está em jogo um juízo de valor, mas um juízo de realidade sobre o comportamento das organizações.

processo educacional, como evidenciaram algumas falas dos professores participantes. Os depoimentos dos participantes P1 e P8 são emblemáticos. Para o primeiro, a função social da escola tem se perdido: “O verdadeiro papel da escola é preparar os alunos para realizarem exames avaliativos nacionais, estaduais e municipais ou formá-los para serem cidadãos?”. Para P8, a universidade deveria apoiar trabalhos filantrópicos em prol do meio ambiente, envolvendo os alunos. Esta fala evidencia uma preocupação em formar o aluno para ter compromisso com a ética profissional e com a organização da vida em sociedade, conforme preconizam os PE’s de vários professores dos cursos pesquisados.

3.3.2.2. Interdisciplinaridade

A pesquisa identificou que a interdisciplinaridade presente no discurso da instituição se caracteriza como uma hipocrisia organizacional. Os documentos normatizam sua implementação, porém a mesma não acontece de acordo com a proposta institucional. No PPC de Pedagogia consta que o curso se sustenta numa filosofia que busca desenvolver mecanismos de interdisciplinaridade e flexibilização do currículo a fim de permitir “o desenvolvimento da progressiva autonomia intelectual do aluno” (p. 21). Essa autonomia é considerada condição necessária para que o egresso possa vir a superar os desafios de renovadas condições de exercício profissional e de produção do conhecimento. De acordo com o documento, estes mecanismos interdisciplinares serão desenvolvidos na medida em que as dimensões técnica, humana e político-social do educando sejam envolvidas. O PPC de Administração, por sua vez, normatiza a integração entre as disciplinas do curso como uma epistemologia a ser adotada para melhor compreensão dos fenômenos da administração de empresas.

Estas normatizações sobre a interdisciplinaridade legitimam os cursos na medida em que anunciam a integração de aspectos da realidade social e científica a qual foi fragmentada pela Modernidade (MORIN, 2008b; SANTOS, 2007, 2008; WILBER, 2006). Para o curso de Pedagogia, o aluno deve ser capaz de “articular ensino e pesquisa na produção do conhecimento e na prática pedagógica” (p. 41). Para o curso de Administração, os alunos devem ter uma “visão holística das organizações bem como compreender a interdisciplinaridade que a gestão

administrativa requer” (PE da disciplina Jogos de empresas, p. 1). Apesar do que propõem os dois cursos, a pesquisa identificou que a dinâmica curricular desenvolvida é diferente do discurso institucional.

De acordo com os depoimentos, os participantes sentem falta de uma estratégia integradora entre as diversas disciplinas, envolvendo conteúdos, tais como: ética, cidadania, moral, valores, relacionamentos, leituras e autonomia. Para o professor participante P1, embora ética e cidadania sejam assuntos que constem dos parâmetros curriculares nacionais como temas transversais, isto não acontece porque eles permanecem no nível das conceituações.

Para P2, por sua vez, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade contribuem para desenvolver valores. No entanto, o participante citou que a formação dos alunos tem sido um processo de “apartação” dos conhecimentos científicos, filosóficos e religiosos, sendo necessário organizar as informações dessas três áreas do saber humano de maneira que haja continuidade dos assuntos, o que contribuiria para desenvolver os alunos. Segundo a opinião de P7, a descontinuidade favorece a perda de oportunidades para desenvolver valores.

De acordo com os participantes, o relacionamento entre professor e alunos, bem como destes entre si, também seria favorecido com a concretização da interdisciplinaridade. Para o participante P4, o tema conflito deveria ser explorado melhor no curso de Pedagogia, não ficando a cargo de decisões solitárias dos professores a implementação de ações didático-pedagógicas.

Para P5, os alunos deveriam ser incentivados a ler diversos autores sobre determinado tema, o que contribuiria para desenvolver diferentes visões sobre o mesmo assunto e para adquirir autonomia. Por sua vez, P8 entende que esta aquisição será possível se a universidade desenvolver mais atividades, programas e projetos interdisciplinares – além do PIPA12.

3.3.2.3. Formação integral

12 Como foi dito anteriormente, o PIPA é um trabalho interdisciplinar do curso de Administração, que

visa a integrar teoria e prática, incentivando os alunos a verificarem a aplicação dos conhecimentos adquiridos (p.11 do PPC).

A pesquisa evidenciou, também, hipocrisia organizacional no discurso da instituição sobre a formação para a integralidade humana. Segundo o PPC de Pedagogia, os egressos do curso estão aptos a “promover práticas educativas que desenvolvam integralmente a criança até seis anos, em seus aspectos físicos, psicossociais e cognitivo-linguístico e refletir para compreender” (p. 32). Por sua vez, o egresso do curso de Administração deve saber planejar e solucionar problemas, ter senso crítico, capacidade de contextualizar, visão sistêmica, gosto pelo trabalho em equipe e, finalmente, ser empreendedor.

O caráter formal e institucionalizado destes discursos legitima o objetivo de preparar pedagogos e gestores, bem como administradores, para serem pessoas críticas, contextualizadas com o mundo e com os valores da educação e da administração de organizações. No entanto, a preparação desses futuros profissionais evidenciou lacunas na formação integral do educando. Foi também constatado que os participantes se desdobravam para que os futuros profissionais concluíssem a graduação com essas competências. Entretanto, dificuldades práticas eram encontradas para desenvolver valores e formar os alunos numa perspectiva mais humanista.

Para P1, valores são desenvolvidos a partir de três condições. O professor precisa estar preparado tanto profissional como pessoalmente para o exercício de sua tarefa, fazendo o que diz e falando somente o que faz. O currículo precisa estar contextualizado, sendo necessário desenvolver “temas atuais envolvendo conteúdos como a ética e a dignidade humana”. O aluno precisa estar aberto a mudanças. No entanto, de acordo com o depoimento do participante, nenhuma dessas três condições se efetiva porque “a função social da escola está totalmente deturpada. Os professores não sabem quais são os seus verdadeiros papéis e, com isto, entram no jogo de trabalhar conteúdos curriculares para fazer com que os alunos passem no vestibular”. Segundo o participante, este é um dilema vivido pelos professores que provém do descumprimento da Carta Magna brasileira: “a formação para a cidadania é algo que a Constituição prega, mas não é cumprida. Forma-se o aluno somente para o mercado de trabalho”.

Para o participante P6, desenvolver valores como autonomia e consciência crítica exige, por parte do professor, mais do que o mero conhecimento do PPC do curso e sua compreensão. Para ele, o PPC de Administração é bem elaborado, no entanto, é sempre possível ao docente descumprir as normatizações, “podendo

subverter tudo aquilo”. Segundo P6, o desenvolvimento dos alunos ocorre quando a sua formação “inclui, além da informação, a dimensão política e a cidadania, permitindo-lhes optar pela vida”.

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