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Capítulo 9: Aspectos volitivos

9.1 Intencionar (Absichtigen/Intention/Beabsichtigen/Meinen)

Como veremos posteriormente, Wittgenstein manifesta alguma indecisão em atribuir uma posição para a intenção com relação às disposições. O intencionar carece do fator optativo que está presente no desejar. No entanto, um fator volitivo está claramente presente. O intencionar, embora não seja uma disposição, é assimilável à mesma. Ele “não colore os pensamentos”, não é emocionalmente sugerido, não é um

“ter-em-mente espiritual (geistige Meinen)”317 que acompanha o pensamento, e não nos

informa sobre as inclinações subjetivas ou sobre as disposições do sujeito, mas apenas de um momento da sua ação.

Porque quero ainda, além do que já fiz, também comunicar-lhe uma intenção (Intention)? – Não porque a intenção ainda era algo que acontecia naquela ocasião. Mas porque eu quero comunicar-lhe algo sobre mim que vai além daquilo que acontecia naquela ocasião. Abro-lhe o meu íntimo quando digo o que queria fazer. - Não, porém, em virtude de uma auto-observação, mas por meio de uma reação (poder-se-ia também chamar isto de intuição). 318

A função da declaração de intenção não é descritiva. Na verdade, nenhum verbo psicológico usado na primeira pessoa tem uma função eminentemente descritiva, e é claro, considerando que o sentido de uma descrição seja o de apresentar um quadro intersubjetivamente acessível, esta possibilidade de expressão de estados psicológicos na primeira pessoa é excluída desde o início.

317 TS 232, 648 e 666-667 = BPP II, §§ 178 e 243. Ver também: TS 227b, 290 = PU, § 592.

318 TS 227b, 314 = PU, § 659. Original: “Warum will ich ihm außer dem, was ich tat, auch noch eine

Intention mitteilen? Nicht, weil die Intention auch noch etwas war, was damals vor sich ging. Sondern, weil ich ihm etwas über mich mitteilen will, was über das hinausgeht, was damals geschah. Ich erschließe ihm mein Inneres, wenn ich sage, was ich tun wollte. Nicht aber auf Grund einer Selbstbeobachtung, sondern durch eine Reaktion (man könnte es auch eine Intuition nennen).”

Dois pontos são dignos de nota nesta afirmação: o primeiro é que a forma pretérita de vontade é equivalente à forma pretérita de intencionar (“eu tinha a intenção de fazer” = “eu queria fazer”), enquanto na sua forma presente os dois verbos são diferentes. Isso se torna mais claro porque, como veremos melhor abaixo, querer já é um fazer (consciente e teleologicamente orientado) definido na tomada de decisão e não como um fato consumado. Por essa razão, a forma pretérita da vontade deve ser limitada ao início da vontade, à intenção, excluindo a ação, agora definida em sua factualidade. O segundo ponto a ser levado em consideração é que, quando eu comunico a minha intenção não o faço com base em uma auto-observação, mas de uma reação. Ora, que isto não vem de uma auto-observação é bem claro, já que não se dão nem nos comportamentos nem nos sentimentos específicos do intencionar, mas pode ser concebida como “reação”, o que nos permite reconhecer a intenção, como tal, e isto é muito mais obscuro.

O único apoio que Wittgenstein parece nos dar para entender esse reconhecimento através da “reação” está relacionado com a afinidade entre “eu desejo” e “eu posso continuar”, onde o elemento disposicional na intenção, isto é, a capacidade de fazer (na situação), assim como o modo de reagir, pode ser reconhecido colocando-o à prova: “Eu queria dizer que ...”, ou seja, recordo-me do que eu estava dizendo, recordo-me do contexto e motivações e, no momento, isso me sugere esta particular direção para continuar.

No entanto, sei que tenho uma intenção, não a “percebo”, nem a infiro a partir de outros fatores, e por isso é difícil descrever “como” eu sei através de uma noção como esta de reação, ou mesmo da intuição: a intenção não é uma disposição, se não na medida em que é essencial um saber, que em vez disso é uma disposição. A

natureza característica da intenção não pode ser colocada à prova.319

A posição gramatical da intenção pode ser esclarecida pensando que é

impossível dizer “Estou engajado em intencionar”, ou “Estou em meio a intencionar”320.

O intencionar é um verbo que indica um momento inicial, não um instante temporal: é um início lógico, a primeira das seguintes, independente das determinações de

duração321. O que a intenção inicia é a vontade. Quanto à vontade, a intenção pressupõe,

de certa forma, a existência de um hábito, de uma técnica: a intenção é intenção de

319 MS 136, 69a = BPP II, § 243.

320 MS 133, 15r = BPP I, § 598. Original: “‘Ich Bin dabei, zu beabsichtigen’, oder ‘Ich Bin beim

Beabsichtigen.’”

321

fazer. Como um momento interior, a intenção irá refletir para além da realidade (passada e futura) que se pode iniciar com a intenção, como um jogo de xadrez em um mundo no qual ele nunca antes foi jogado, e que será interrompido depois de um momento. As condições de possibilidade de ter a intenção se alargam até as condições

do saber, o que não é gramaticalmente atribuível à momentaneidade322.

A intenção, com relação à vontade, apresenta uma situação semelhante à do compreender com relação ao saber: ambos os conceitos são concebíveis como um momento limite dos correlativos. Por outro lado, não existe apenas uma estrutura paralela, mas há também uma conexão interna entre a vontade e saber, o que significa que se pode fornecer uma abordagem comum para o problema do “capturar em um momento” todo um processo, bem como parece constituir uma situação paradoxal, em que se compreende em um momento um saber relacionado a um processo no tempo, também parece um problema o fato de que a intenção implica em um momento todo o processo que se segue em toda a sua extensão. Uma intenção tem sentido apenas no contexto de um saber consolidado como fundo, e da história precedente em que o presente caso se encaixa. Assim, Wittgenstein diz:

Quando eu vejo o leiteiro chegando, eu pego a minha garrafa e vou em direção a ele. Eu vivencio um pretender [Beabsichtigen]? Não que eu saiba. (Talvez tão pouco quanto tento andar, para andar). Contudo, se eu fosse parado e alguém me perguntasse: ‘Onde é que você quer ir com aquele jarro?’, eu proferiria a minha intenção’ (Absicht). 323

Esse caso é interessante por causa de sua normalidade: o movimento de ir até o leiteiro é um exercício diário. No entanto, não faz sentido considerar um automatismo puro, porque as situações nas quais posso encontrar o leiteiro parecem ser as mais diversas, e eu não aprendi um mecanismo contínuo em que cada uma dessas situações traz à tona o movimento de ir ao leiteiro se e quando ele aparecer eu faço um movimento. Por outro lado, se não podemos falar de um ato inconsciente, nem podemos falar, pelo menos não necessariamente, de um momento de decisão em que me é representada distintamente a próxima ação, me diz algo, e então eu ajo.

É correto dizer que eu tinha a intenção de ir buscar o leite, embora eu não tenha experimentado tal intenção, de algum modo característico, e a certeza desta

322 TS 227b, 147 = PU, § 205. 323

MS 130, 253-254 = BPP I, § 185. Original: “Wenn ich den Milchmann kommen sehe, hole ich

meinen Krug und gehe ihm entgegen. Erlebe ich ein Beabsichtigen? Nicht daß ich wüßte. (So wenig vielleicht, wie ich versuche zu gehen, um zu gehen.) Wenn ich aber aufgehalten und gefragt würde ‘Wohin wolltest du mit dem Krug?’, würde ich meime Absicht aussprechen.”.Ver também: TS 227b,

comunicação residir no fato de que uma vez que eu aprendi a fazer esta ação, agora eu sei, e que, diante de uma interrupção da ação, eu sinalizo o limite de acesso da próxima ação voluntária, portanto, no lugar gramatical da intenção.

A análise da intenção nos mostra que se pode falar da ação consciente não apenas com referência a um processo explícito de tomada de decisão, mas também com referência a uma estrutura de hábito, de percursos, onde não há uma experiência única de reflexão, um “passo para trás” da consciência. O nosso comportamento pode estar alerta, racional, ativo, sem que qualquer momento de mediação ocorra.

De particular interesse se demonstra agora a relação entre os usos dos verbos Absichtigen, Beabsichtigen, Meinen, Intentionen no sentido de “intencionar”. Em alemão, os verbos em questão, não são claramente distintos. Em qualquer caso, uma afinidade de uso é muito evidente, e Wittgenstein, neste contexto, frequentemente, passa da análise de um ao de outro: em ambos os casos, existe uma projeção voluntária, que ocorre em um determinado momento, e que indica uma direção comportamental além dela, o que implica todo um processo.

A afinidade pode ser destacada se imaginarmos que a mesma cena do leiteiro seja parte do nosso próprio jogo: diante da pergunta: “Que intenção você tinha?” poderíamos responder tanto “intencionava ir ao encontro do leiteiro” quanto “pretendia protagonizar a minha impaciência andando ao encontro do leiteiro”. No primeiro caso, referindo-se à orientação da minha ação, e no segundo caso, do seu significado.

É claro que quando me refiro ao significado, disso faz parte, também, a ação intencionada do protagonista, e, portanto, também a sua intenção como um todo. Devemos, portanto, dizer que ele não intencionar é um caso especial de intenção? É verdade que, quando “intencionar...” está também implícito um “ele intencionou”, a ação posterior, no entanto, as funções dos verbos em cada caso é muito diferente, e, portanto, não pode ser transposta, sem dúvida, um como função especificada do outro.

Em uma forma particular como “Com que intenção eu o vi ...”, os dois verbos são sobrepostos: Eu tinha a intenção, e a mesma foi dirigida a uma manifestação de significado: essa possibilidade de sobreposição é dada aqui pelo fato de que minha ação funciona como um sinal para um significado, anulando aqui a diferença específica entre os dois usos verbais. Mas, em geral, não se trata de usos ordenados segundo uma maior ou menor especificidade, uma vez que, por assim dizer, muda não só a extensão, mas também a forma dos dois campos semânticos: intencionar refere-se a uma ação subjetiva, considerada como um sinal objetivado.

Neste sentido, no interior do intencionar podemos localizar um dos pontos de transição entre a centralidade do sujeito e a do objeto no âmbito da vontade: intencionar, por um lado, sublinha o objeto da ação do sujeito, enquanto, por outro, refere-se a um sinal, e não necessariamente um produto do próprio sujeito que o intenciona de uma determinada maneira. Deve-se observar a este respeito que, segundo a nossa interpretação, o verbo português “intencionar” cobre toda a área dos verbos da língua alemã em questão.

O “intencionar” se move mais para o plano receptivo porque também envolve um uso semelhante ao “compreender” e ao “interpretar”: intenciono expressar as minhas palavras de certa maneira, e intenciono ouvir as suas palavras de certa maneira, mas no segundo caso claramente o momento receptivo é prioritário.

Se, por exemplo, depois de chegar a um cálculo para determinados fins, surge uma inesperada contradição, na qual estamos inclinados a dizer: “É diferente do que eu tinha em mente”. Isto, no entanto, não significa dizer que me foi representado o caso e eu o tenho voluntariamente excluído. Quando eu digo que, ensinando a numeração que eu tinha-em-mente que depois de 100 deve seguir 101, isso não quer dizer que eu tenha pensado nessa passagem desde o início. E isto porque “os verbos ter-

em-mente (meinen) e pensar (denken) possuem gramáticas diferentes”324.

Podemos dizer que, se intenciono me representar sempre o quadro completo de tudo o que tenho em mente, então não pode ser verdade que a intenção sempre comporta o seu objeto, pois pode muito bem ser que o quadro final que me é fato, resultasse numa inadequação ou falsidade. Em vez disso, o traço característico da intenção é que usamos a expressão própria em referência ao que não tínhamos imaginado o que foi dito de forma explícita. Devemos dizer que a intenção é uma pura interioridade, um ato espiritual irredutível a factualidade?

William James: O pensamento está já completo no princípio da frase. Como é possível sabê-lo? – Mas a intenção de proferir o pensamento pode existir já antes de a primeira palavra ter sido dita. Pois, se se perguntar a alguém: ‘Sabe o que queres dizer?’, ele responderá frequentemente pela afirmativa.

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Mas esta concessão implica também que uma descrição satisfatória do “objeto experimentado”, que acontece na intenção parece impossível: “as respostas que

324

TS 227b, 89 = PU, § 125; TS 227b, 323 = PU, § 693.

325 MS 137, 45a = Z, § 1. Original: “William James: der Gedanke sei schon an Anfang des Satzes

fertig. Wie kann man das wissen? – Aber die Absicht, ihn auszusprechen, kann schon bestehen, ehen das erste Wort gesagt ist. Denn fragt man Einen ‘weisst du, was du sagen willst?, so wird er es oft bejahen.” Ver também: TS 227b, 314 = PU, § 666.

se nos apresentam à primeira vista, não servem para nada”. Eu intenciono que intenciono, sem dúvida, mas também tematicamente sem saber o que intencionei, e todos os fatores descritíveis que acompanham o “momento” de intenção são irrelevantes.

Mas vamos nos perguntar, então, que função tem uma comunicação em que ocorre o verbo “intencionar”? Se eu disser: “Com este gesto eu quis dizer...” ou “Ele quer dizer que a outra parte”, estas são essencialmente explicações gramaticais: isto explica a posteriori algo que estava implícito em um sinal ou uma série de sinais. Isto é: Quero dizer, quando intenciono não ajo, nem estou a ponto de agir, mas reconheço uma conexão que já foi instaurada. Deste ponto de vista, se pode ver a conexão entre seguir uma regra e compreender: a compreensão não estabelece a “regra”, o hábito, mas ao contrário, a pressupõe. E neste sentido, a intenção não ensina nada, mas simplesmente justifica a posteriori o que já estava implícito.

Se alguém ao ensinar uma regra diz, diante de um desvio do aluno, não ter intencionado a regra assim, isso é perfeitamente correto, mesmo que o desvio específico não tenha sido previamente pensado. Mas, então: “Como devemos julgar se alguém tinha isto em mente? [...], que ele, por exemplo, dominava uma determinada técnica de aritmética e álgebra e ensinou ao outro, da maneira usual, o desenvolvimento de uma série”326.

Assim, o critério externo para o reconhecimento do intencionar pode reduzir-se ao reconhecimento de um processo consolidado, ao qual se adiciona um comportamento linguístico voltado ao uso dos sinais. É evidente que este comportamento lingüístico deva remeter-se, por sua vez, a um uso consolidado de sinais: “Com a palavra ‘bububu’, posso ter em mente ‘Se não chover, irei caminhar’ -

Somente numa linguagem é que eu posso ter em mente algo como algo”327.

Esse exemplo é inequívoco: com essa expressão arbitrária eu não consigo intencionar nada porque para intencionar algo de uma forma ou de outra, a intenção deve estar sedimentada em um uso lingüístico comum. Somente neste caso, quando tivermos um comportamento sedimentado, já percorrido, é que falamos de “intenção”. Dúvidas, no entanto, parecem poder surgir em casos como: dizer “Aqui está frio”, e ter

em mente “Aqui está quente”328.

326 TS 227b, 323 = PU, § 692. 327 TS 227b, 33 = PU, § 38, p. 22. 328

Neste caso, você pode ser tentado a dizer que é possível intencionar contra o uso verbal consolidado. Mas o que nós realmente fazemos em um caso como este? Faz sentido dizer que nós estamos intencionando diversamente aquele sinal? O que pode acontecer é, por exemplo, que nós pronunciamos as palavras: “Aqui está frio”, e, no entanto, imaginemos, de alguma forma, a intensificação de calor, mas isso não significa que usamos essas palavras para significar que o calor está intenso, nós simplesmente realizamos paralelamente um ato linguístico e um ato imaginativo.

Ou podemos intencionar “Aqui está frio”, ironicamente, que acompanha a expressão com algum tipo de gesto interior ou exterior, um tipo de franzir das sobrancelhas ou uma mudança no tom da voz, que transforma “Aqui está frio” em “Aqui está frio, e como não!”. Neste caso, no entanto, tal expressão não equivale, totalmente, à expressão não irônica “Aqui está quente”, mas a ironia pressupõe que o contexto impõe um significado diverso daquele usual enunciado, e o que fazemos, é intencionar as palavras da maneira usual, mas com atenção a um ambiente particular.

De certo modo, a intenção funciona apenas sobre a base do uso consolidado, e tudo o que se pode fazer é pensar, ao mesmo tempo, a expressão do sinal em questão, a coisas diversas daquela usualmente associada a ele. Mas a intenção não é nem pensar, nem representar, uma vez que é sempre apenas a ilustração de uma continuação na dependência de um ponto determinado.

Aposterioridade do intencionar a respeito do uso é o que explica a aprioridade com que o intencionar capta seu objeto: o captura sempre porque se limita a iluminar o que é sempre já pego, sem nada inventar. A intenção não é um processo,

assim como “um cálculo não é um experimento”329: no cálculo, como na intenção o

processo já é incorporado e resolvido, não representa um problema, e o sentido de ilustrar o que se intenciona, ou de ilustrar a regra, a iluminação desta conexão já está disponível.

O intencionar, enquanto ligado a uma explicitação dos sinais, ou dos objetos, que desempenham papéis, tem uma clara afinidade com o interpretar, sobre o qual devemos nos deter, mas antes disso, vamos analisar diretamente o conceito de “vontade” que, como já vimos, é o limite de transição com relação ao intencionar.

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