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Capítulo 9: Aspectos volitivos

9.3 Interpretar (Deuten)

Vamos caracterizar a gramática do termo “interpretar” de forma que clareiam as diferenças e limites com relação aos conceitos de “querer” e “intencionar” ao mesmo tempo em que marca a sua posição.

...

Vimos como o intencionar, como centro de gravidade das volições, se move a partir do interno, como o sujeito que age ao externo como sinais, expressões. Um novo passo para o lado objetivo se apresenta, considerando o significado do “interpretar”, que, ao contrário do intencionar, não há primariamente um sentido ligado à identidade entre quem produz a expressão e que a intenciona de certo modo.

Se dou continuidade à frase interrompida e digo que é assim que eu queria continuá-la naquela ocasião, então é como se eu efetuasse um curso de pensamentos a partir de breves anotações.

E, portanto, não interpreto estas anotações? Apenas uma continuação foi possível naquelas circunstâncias? Certamente que não. Mas eu não escolhi dentre estas interpretações. Lembrei-me de que eu queria dizer isso. 334

Neste caso, podemos observar o cruzamento entre entender, intencionar e interpretar. A proposição tinha interrompido a intenção de realizá-la. Posso dizer (em alguns casos) que com o que eu disse, eu queria dizer que eu ainda tinha a dizer. E a posteriori se pode supor que eu interprete as minhas palavras, proporcionando-lhes uma continuação adequada. No entanto, diz Wittgenstein, eu não interpreto minhas palavras,

334

TS 227b, 306 = PU, § 634. Original: “Wenn ich den unterbrochenen Satz fortsetze und sage, so

hätte ich ihn damals fortsetzen wollen, so ist das ähnlich, wie wenn ich einen Gedankengang nach kurzen Notizen ausführe. Und deute ich also diese Notizen nicht? War nur eine Fortsetzung unter jenen Umständen möglich? Gewiß nicht.Aber ich wählte nicht unter diesen Deutungen. Ich erinnerte mich: daß ich das sagen wollte.”

mas realizo a intenção. Eu não vejo, por assim dizer, as minhas palavras como se fossem sinais de outras, das quais eu devo conceber uma possível conclusão, mas eu sei para qual conclusão apontei, sem ter que escolher entre as diferentes interpretações.

A respeito da intenção, a distinção é clara: a minha intenção, enquanto início de uma ação voluntária que, por definição, já implica a totalidade da ação, não tem necessidade de alguma integração interpretativa. Com relação ao entender, podemos seguir Wittgenstein ao formular a seguinte suposição e comparar eu mesmo dizendo: “Há nesta sala uma pessoa de grande valor, que responde pelo nome...” e que neste momento eu tivesse sido interrompido. Se me pedissem para dizer o que eu quis dizer com essas palavras, poderia dizer que as interpreto a posteriori? Eu não interpreto a posteriori qual nome eu tinha intenção de dizer. O entender é uma explicitação, não interpretação: cuidados que devem trazer à luz uma conexão que já tinha sido implicitamente feita, ao contrário da interpretação traz à luz uma nova conexão.

No entanto, essa distinção não é tão simples, se podemos assim dizer, uma vez que também a interpretação não inventa arbitrariamente qualquer conclusão de uma proposição, mas escolhe uma possibilidade, isto é, uma continuação compatível com o início, e tal possibilidade, no entanto, está situada na linguagem. Por conseguinte, a diferença entre interpretar e entender parece percorrer a longa linha divisória entre a possibilidade sedimentada em geral de um lado e uma possibilidade de alguma forma já realizada na intenção (que é apenas mostrada) de outro. O problema reside no fato de que esta “realização na intenção” não parece ser distinta de uma mera possibilidade, e com isso, a distinção entre entender e interpretar seria menor.

Em que base de evidência, podemos colocar a distinção entre a possibilidade já entendida e a possibilidade de escolher na interpretação? “Não seria a evidência muito parca? Sim, se a examinarmos, parece extraordinariamente parca; mas

não é assim porque não se leva em consideração a história desta evidência?”335. E a esta

história pertence todo um contexto em que a intenção é expressa, mas, sobretudo, as motivações que orientam a intenção: de fato, se uma proposição ou um discurso é interrompido, é muito provável que não se saiba exatamente quais as palavras saberíamos usar para a finalidade, mas a possibilidade de escolha é limitada pelo fato de que, em geral, sabemos onde queremos chegar, ou seja, o discurso estava situado entre

335 TS 227b, 307 = PU, § 638. Original: “Kann denn die Evidenz nicht zu spärlich sein? Ja, wenn man

ihr nachgeht, scheint sie außerordentlich spärlich; aber ist das nicht, weil man die Geschichte dieser Evidenz außer Acht läßt?” Ver também: MS 138, 29a = LSPP I, §§ 952-3.

as margens do contexto e das motivações, das quais, porém, somente o primeiro está disponível para o sujeito que interpreta externamente os sinais.

Pode-se dizer, forçando os conceitos, que o auto-entender é um auto- interpretar. Mas, nesse caso, é óbvio que o conceito de interpretação é dissolvido, porque parece não executar o espaço “interpretativo”, isto é, dado o início da expressão, há apenas de captar, mas nada a interpretar. Interpretar o fim da sequência a ser desenvolvida apartir dos sinais dados é algo a encontrar, ou pelo menos algo que não pertence a quem interpreta.

Wittgenstein investiga cuidadosamente a “gramática” do interpretar, especialmente em relação à percepção visual e ao problema da alteração de aspecto de uma percepção. Esta perspectiva preferencial não constitui uma restrição essencial na análise do interpretar. Isso representa mais um caso exemplar, a partir do qual todos os sentidos do “interpretar” podem ser vislumbrados.

No caso das figuras ambíguas, frequentemente utilizadas em experimentos da psicologia da Gestalt, observamos com a máxima evidência o limite da transição entre a visão imediata e o “ver como”, que já é um interpretar. Se, por exemplo, eu vejo um perfil ambíguo ora como a cabeça de um coelho, ora como a cabeça de um pato

(Cabeça C-P)336, eu não posso mais dizer estar simplesmente percebendo o desenho,

assim como eu fiz antes de notar que há duas maneiras de ver isso. Como se configura a diferença entre esses momentos?

Vejo duas figuras: na primeira, uma cabeça-C-P rodeado por coelhos, na outra, rodeada por patos. Eu não noto a igualdade. Segue-se daí que nas duas vezes vejo algo diferente? - Isto nos dá um motivo para usarmos aqui esta expressão. 337

A questão, neste caso, surge a partir do fato de que os traços materiais sensíveis serem idênticos, e o conceito de perceber implicar uma referência ao conhecimento da realidade na sua independência em relação ao sujeito. Se aceito dizer que as duas imagens são certamente diferentes, digo que a percepção não nos informa sobre a própria realidade, e isso contrasta com a noção de percepção. Por outro lado, se a igualdade dos traços materiais não tem sido a base também não há motivos para dizer que o suporte sensível comum da imagem-coelho foi percebido.

336 MS 144, 39 = PPF, xi, §§ 116-117.

337 MS 144, 41 = PPF, xi, § 125. Original: “Ich sehe zwei Bilder; in dem einen den H-E-Kopf

umgeben Von Hasen, im andern von Enten. Ich bemerke die Gleichheit nicht. Folgt daraus, daß ich beide Male etwas andres sehe? a Es gibt uns einen Grund, diesen Ausdruck hier zu gebrauchen.”

No caso em que, por exemplo, eu esteja diante da cabeça Coelho-Pato, eu posso ir arbitrariamente de um aspecto a outro, e chamar esta operação de uma interpretação. Mas no momento em que esta mesma imagem parece-me uma vez de um modo, e outra vez de outro, sem que eu o saiba, que há algo comum, então parece mais apropriado dizer que eu percebi algo diverso. No momento em que realmente não temos alternativas, não podemos falar de interpretação: olhando a faca e o garfo normalmente

não faz sentido dizer: “Agora eu vejo isto como uma faca e um garfo”338. “Ver como”

pressupõe a possibilidade de ver de outra forma, e isso não no sentido de uma possibilidade teórica, mas uma possibilidade ativa e presente ao ver: “[...] interpretar é

uma ação. [...].Ver não é uma ação, mas um estado”339

A encarnação da imagem com determinada situação tende, em diversos sentidos, a oferecer-lhe diversas orientações intencionais, e permite dicernir diversas conseqüências possíveis. Esta encarnação é uma operação, uma ação produtiva, que vai além de uma percepção imediata, a qual, por conseguinte, não surge, de fato, ainda como uma interpretação, mas como uma detecção direta do significado. Cada “ver como” ocorre como segundo momento a respeito de um “ver que”: “É apenas por meio do fenômeno da mudança de aspecto que o aspecto parece ser destacado do restante do ver. É como se após a experiência da mudança de aspecto se pudesse dizer: ‘Então,

havia um aspecto ali!’”340. Esta estrutura de dependência torna impossível conceber em

princípio, cada ver, cada perceber, como uma interpretação.

Mas, se perguntarmos: quais os limites que poderíamos colocar entre perceber e interpretar? Isto é, se uma mesma base material permite potencialmente interpretações completamente diferentes, que não revela algo em comum da realidade básica, somos levados a pensar que não é legítimo dizer que o interpretar, embora pressuponha gramaticalmente um perceber, que é um momento de receptividade, pode de fato abranger o significado da percepção?

A dificuldade aqui é entender a diferença funcional relativa a uma ordem contingente: o que ora é interpretação, talvez anteriormente era percepção direta. O que permanece firme é apenas que o ponto de partida não pode já ser uma interpretação. Deve, sim, ser um momento imediato que, enquanto material elástico como todos os

338 MS 137, 129b; MS 144, 41 = PPF, xi, § 122. Original: “Ich sehe das jetzt als Messer und Gabel.” 339 MS 129, 123 = BPP I, § 1. Original: “Sehen ist keine Handlung, sondern ein Zustand.”

340

sinais, parece ser desprovido de forma, dimensão e conteúdo, parece ser pura “privação”, um puro campo de jogo para a interpretação.

A interpretação, como Wittgenstein sugere, ocorre sobre a base de um evento interpretado em um entorno espacial e temporal. A interpretação escolhe uma orientação motivacional e, com isso, estabelece o significado da base de sinais (por exemplo, as linhas do “cubo ambíguo”, sem sua visão tridimensional), mas não inventa nem essa base, nem a motivação que interpreta de outra forma. Por outro lado, estes mesmos elementos, uma base e uma motivação, já devem estar presentes na percepção, onde já tem a evidência de um significado.

A dependência funcional da interpretação com relação à percepção de mudança do aspecto do aspecto, deve, portanto, vetar qualquer sentido de figurar uma eventual percepção “originária” como um “ponto” arbitrário, desprovido de forma e dimensão, de uma pura disponibilidade para ser interpretado. Mais que isso, deve-se tentar imaginar uma “percepção primeira”, que deve ser concebida como a percepção de algo estruturado, onde já há, pelo menos, o sinalizar de uma composição das condições objetivas e motivacionais.

Em outros termos, a gramática própria da interpretação nos mostra como não pode ser apenas através do momento da interpretação, que um conteúdo é fornecido: a interpretação escolhe, não cria suas possibilidades. E estas possibilidades já se encontram em uma história, que, sempre por razões gramaticais, não é, por sua vez, uma história possível, mas real, sempre já “dada anteriormente”.

O que não deve ser negligenciado são os vínculos restritivos fornecidos pela percepção que marcam os limites determinados: eu posso interpretar a cabeça C-P como um coelho ou como um pato, ou talvez até mesmo como uma figura insignificante, mas

o que não posso fazer é ver simultaneamente uma configuração e a outra341: a atitude

em um caso é diferente da atitude em outro, e as conseqüências são incompatíveis. Se, por exemplo, eu vejo por um momento, uma imagem em que eu

reconheço a figura de um animal transpassado por uma seta342, posso reproduzi-la, a

partir da memória, a imagem sem cometer certos erros, certos desvios, que poderia cometer se eu tivesse acabado de ver uma série de linhas desprovidas de unidade significativa: muitos elementos do desenho não havia necessidade de inspecão visual,

341 MS 137, 124a = PPF, xi, § 157. 342

porque se deixava avistar a competição de um sentido notório. Poderia distinguir partes essenciais e partes secundárias, um núcleo e uma periferia de sentido.

A absolutização da noção de interpretação esquece que o arbítrio, a escolha, a acidentalidade repousa constitutivamente sobre o decurso comportamental que não podemos racionalmente suspender na sua validade, sob a pena de uma suspensão das condições de funcionamento daquela própria racionalidade.

Os dois elementos aqui mencionados, o necessário posicionamento de um significado em uma história e a alternatividade entre a unidade dos significados, representa uma conexão essencial entre gramática e realidade, vista a partir do interior do funcionamento da gramática mesma. E um aprofundamento do valor destas conexões contidas nas reflexões tardias de Wittgenstein, a profundidade que não podemos aqui perseguir, deve dedicar especial atenção a este aspecto conceitual.