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Interação dinâmica entre o processo de trabalho e o processo saúde-doença

O processo saúde-doença sofre interferências de diversos condicionantes na sua estruturação, sendo o trabalho um deles, o qual será considerado mais amiúde neste estudo. Não se pretende imprimir importância maior a tal condicionante em detrimento de outros, porém é ele que, neste momento, interfere mais diretamente sobre o processo saúde-doença dos sujeitos trabalhadores envolvidos.

Na sociedade em que se vive, onde a hegemonia do capitalismo impera, o trabalhador é apreendido, predominantemente, como mercadoria de trabalho. No

entanto, é imprescindível que se mude esta visão essencialmente capitalista do trabalhador, pois ele é, para além de seu momento no trabalho. Ele é sujeito no e do trabalho e, como tal, deve ser compreendido. Como sujeito, tem a necessidade de participar do processo de trabalho no qual está inserido, sendo, portanto, parte integrante e não só mercadoria dele. Assim sendo, pode e deve produzir, para além de condições adequadas aos seus pares (pacientes/clientes da prática diária), ou seja, produzir condições adequadas para sua própria saúde.

Recorre-se às palavras de Berlinguer (1983, p.25) que ressalta a necessidade de mudar “a prática de considerar o trabalhador como parte de um conjunto mecânico, como uma variável a ser adaptada aos processos e às relações de produção historicamente determinados”, para que se perceba “a exigência que o homem seja considerado com relação às suas necessidades fisiológicas, culturais e sociais, expressas na sua existência como indivíduo e na sua ação coletiva, como um componente evolutivo de um sistema variável; são indicadas novas necessidades a serem satisfeitas, novos modos de produzir, novas orientações da ciência e da tecnologia, com a finalidade de utilizar o desenvolvimento das forças produtivas (humanas, sociais e naturais), em vez de maximizar o esforço psicofísico dos trabalhadores e os lucros.”

Neste contexto de mudanças, se faz necessário que a saúde do trabalhador tenha momento de destaque, pois sabe-se que “apesar dos avanços significativos no campo conceituai que apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação trabalho-saúde, consubstanciados sob a denominação de Saúde do Trabalhador, depara-se, no cotidiano, com a hegemonia da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Tal fato coloca em questão a distância entre a produção do conhecimento e sua aplicação, sobretudo num campo potencialmente ameaçador, onde a busca de soluções quase sempre se confronta com interesses econômicos arraigados e imediatistas, não contemplam os

investimentos indispensáveis à garantia da dignidade e da vida no trabalho” (Minayo-Gomes e Thedim-Costa, 1997, p. 23).

A hegemonia da Medicina do Trabalho “orienta-se pela teoria da unicausalidade, ou seja, para cada doença, um agente etiológico. Transplantada para o âmbito do trabalho, vai refletir-se na propensão a isolar riscos específicos e, dessa forma, atuar sobre suas conseqüências, medicalizando em função de sinais e sintomas ou, quanto muito, associando-as a uma doença legalmente reconhecida” (Minayo-Gomes e Thedim-Costa, 1997, p. 23).

Baseados nestas reflexões, conclui-se que mudanças significativas devem ocorrer no estabelecimento das políticas que regem a saúde e o trabalhador, como forma de propiciar a produção de sua saúde no espaço/ambiente do trabalho. Para isto é necessário que a relação entre o processo de trabalho e o processo saúde-doença seja compreendida, para que as modificações possam ocorrer.

Nas últimas duas décadas, estudos como de Laurell e Noriega (1989), Betancourt(1991) têm sido realizados, visando abordar a saúde do trabalhador com diferentes enfoques, não mais limitados a unicausalidade ou mesmo multicausalidade das doenças, mas voltados para a prevenção das mesmas. Ver além da unicausalidade não significa abandonar a busca das causas; significa atuar nas causas para evitar a instalação da doença no corpo individual e no corpo social do trabalho, visando a produção da saúde. Laurell e Noriega (1989) concebem o processo saúde-doença como resultante das relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza, mediadas por processos de trabalho que se realizam em sociedades concretas. Conforme a maneira como o ser humano produz e reproduz sua existência e conforme as alterações que são processadas pelas relações que envolvem esta produção e reprodução de si mesmo e da natureza, ou seja, da vida social onde está incluso o trabalho, é que se estabelecem as doenças, que se processam no ambiente/espaço do trabalho.

As condições de vida e trabalho, resultantes da organização social, “são fatores condicionantes do processo saúde-doença.”(Gelbcke, 1991, p. 19). As condições de trabalho, não só recursos humanos e materiais, como também as condições sob as quais se estabelecem as relações do e no trabalho, influenciam direta ou indiretamente no processo saúde-doença dos trabalhadores.

Partindo do pressuposto que os trabalhadores da saúde sofrem um desgaste natural, imposto pelo processo de trabalho, pelas relações de trabalho que aí são estabelecidas, o que ocasionará uma transformação no seu processo saúde-doença, depreende-se que, quanto maior for este desgaste, maior será o comprometimento da saúde do trabalhador. Este desgaste, muitas vezes, não é percebido dentro da organização do trabalho, devido ao fato da atenção maior estar voltada à produção.

A organização do trabalho contém, em si, um conjunto de elementos, ou seja, um complexo de causas que, ao interagir com as ações dos trabalhadores, pode ou não conduzir a acidentes de trabalho. Esse complexo de causas, por si só, não se constitui em ameaça à saúde do trabalhador. Porém, dentro deste complexo, existem elementos de risco que podem provocar acidentes. São parte do processo de trabalho e são produzidos no próprio processo de trabalho. Mas para que se componham em acidentes, é necessário que exista uma articulação entre eles e o trabalhador, entre eles e a dinâmica do processo de trabalho. E o que faz com que se estabeleçam estas articulações são as relações de trabalho, que comportam tanto o componente individual - cada trabalhador com suas particularidades, suas concepções, suas vivências - quanto o coletivo do trabalho, que é mais que a soma das individualidades: são as relações entre elas, as relações entre cada parte do todo.

Em Cézar Vaz (1996, p. 106) encontra-se um conceito de organização do trabalho, que contempla a existência destas relações e que mostra as articulações que se processam entre as ações dos trabalhadores, para que se componha tal

organização: “A expressão organização do trabalho infere algo, no sentido de uma corrente de conscientização que penetra e subordina o conjunto de ações que constitui o trabalho, em que cada uma dessas ações é concebida como existente somente por meio das outras e para as outras e o todo do trabalho, ou seja, as ações realizadas são , ao mesmo tempo, meios e fins, uma com respeito à outra e todas com respeito à totalidade do trabalho. Nessa direção, a organização do trabalho não possui só o sentido de uma simples força motriz, como uma máquina que dá movimento às ações, mas possui, também, o sentido de uma força formadora ou determinante tal que se comunica aos componentes

do processo.” .

As ações individuais estão para o conjunto do trabalho, assim como o conjunto se completa de individualidades. As ações individuais podem desencadear alterações na organização do trabalho, como já mencionado, e esta provoca, também, alterações individuais, constituindo um movimento constante no processo de trabalho. Sendo os sujeitos trabalhadores quem imprime concretude à ação, são eles, portanto, que sofrem as conseqüências diretas da ação individual. Como suas ações individuais são meio e não fim na organização do trabalho, o momento historicamente vivido do acidente de trabalho, envolvendo sangue e/ou fluidos corporais, provoca alterações coletivas.

O momento do acidente individual ocorre como parte de um processo de trabalho coletivo que possibilitou tal vivência. E dele se parte para que se possa compreender a organização do trabalho e buscar alterações que os próprios trabalhadores motivam a acontecer.

A produção e reprodução da saúde pelo trabalho, necessita contemplar um conjunto de ações que se desenvolvam como resultado de uma política que, fazendo parte da organização do trabalho em saúde, volte-se para a prevenção de situações de risco e acidentes de trabalho envolvendo sangue e/ou fluidos corporais.

Preocupação especial deve ser dada a este tema, visto a compreensão da saúde do trabalhador desta área, estar tendendo, ainda, a ações fragmentadas e desarticuladas.

Dentro do ambiente hospitalar, onde o processo de trabalho em saúde encontra-se extremamente centrado no modelo clínico biologicista, que tem por finalidade a recuperação do corpo individual, a preocupação maior volta-se sempre para a cura do corpo doente, inclusive quando se trata da saúde do trabalhador, ou seja, predomina a política de assistência à doença ao invés da produção de saúde.

Por ser algo complexo e multifacetário, a saúde do trabalhador envolve vários setores e órgãos governamentais, devido à necessidade do estabelecimento de políticas de saúde preventivas. Pode-se iniciar com investimentos no interior das instituições, no sentido de modificar, no próprio processo de trabalho, a concepção que se tem hoje de prevenção do risco e acidente, de forma a iniciar um processo de alteração coletiva. É fundamental partir de concepções, pois é o início da prevenção. Dependendo da forma como se entende acidente de trabalho e risco ocupacional, trabalha-se a prevenção.

Esta realidade vem sendo modificada por poucos, ainda de forma desordenada, individual, o que não é suficiente. A prevenção tem que fazer parte do conjunto de ações coordenadas para o qual definimos trabalho, estar imbricada nas relações de trabalho, nas políticas institucionalizadas de prevenção de acidentes, na preservação da saúde do trabalhador.

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