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Quimioprofilaxia: um bloqueador do potencial de risco para outro acidente a soroconversão

Após o acidente de trabalho, envolvendo sangue e/ou fluidos corporais, o trabalhador exposto inicia tratamento profilático, entendido, no contexto dos acidentes, como a medida máxima de prevenção de outro acidente: a soroconversão. A quimioprofilaxia acontece como ação inibidora, funciona como um bloqueador do potencial de risco, ou seja, diminui o potencial da situação de risco para evitar a soroconversão. Isto pode ser visualizado no esquema seguinte:

soroconversão. A medida em que o trabalhador acidentado faz uso da quimioprofilaxia, este potencial pode ser bloqueado, havendo a não contaminação.

A necessidade de quimioprofilaxia é ressaltada, objetivando provocar um processo reflexivo conjunto, sobre a potencialidade que, cada acidente envolvendo sangue e/ou fluidos corporais encerra, para outro acidente, este sim, individualmente vivido. Esta é uma conduta institucionalizada, bastante produtiva, apesar de ainda não divulgada, a ponto de absorver todos os trabalhadores. Em relação ao uso, é respeitado o direito do trabalhador em querer ou não fazer o tratamento, porém, seus benefícios, principalmente quanto à redução das taxas de soroconversão, são enfaticamente apresentados. De direito, passa, então, a um dever, pois a produção da sua saúde fica na dependência da sua adesão ao tratamento.

A fala do T6 mostra claramente, esta reflexão:

“O pessoal disse: tu vais ter que tomar. Ah! Eu vou ter que tomar! Nessas alturas, eu já não sabia se ia tomar ou se não ia. Não sabia que atitude eu ia tomar, porque eu não estava preparada para aquilo: tomar o remédio. A í eu fiquei pensando: eu tenho que tomar. Como que eu não vou tomar? Eu me acidentei, se tem isso aí, tenho que fazer. E a minha saúde. ”(T6)

Dando seguimento, apresentam-se reflexões acerca do esquema de quimioprofilaxia, bem como do que representou para os trabalhadores vivenciarem o acidente e, logo após, vivenciarem outra situação que os reporta, diariamente, ou melhor, a cada ingestão dos medicamentos, ao momento do acidente vivido.

O Center for Disease Control (CDC) recomenda um protocolo para os casos de acidentes envolvendo sangue e/ou fluidos corporais (Anexo 4), cujo objetivo é evitar a soroconversão do HIV. Na instituição estudada, este

protocolo inclui, além do tratamento medicamentoso, a análise de fatores, tais como tipo de acidente, carga viral do paciente, quantidade de sangue envolvida. Conforme resultado dessa análise, os medicamentos são prescritos pelo médico do Hospital Dia, para onde o trabalhador acidentado é encaminhado, ou deveria ser, em primeira instância.

Todos os trabalhadores entrevistados foram submetidos a essa quimioprofilaxia, com variações apenas no tempo de duração da mesma. O Tl e o T6, fizeram tratamento por 30 dias, devido ao paciente provocador do caso ser HIV positivo. O T2 e o T4, por 5 dias, tempo suficiente para que fossem feitos exames laboratoriais no paciente fonte, investigativos para HIV e vírus da hepatite B . E o T 3 e o T 5 também por 30 dias, por impossibilidade de precisar a origem do instrumento de trabalho causador do acidente.

É um tratamento que inclui 1 a 3 medicamentos, que apresentam uma série de efeitos colaterais indesejáveis. Em se tratando destes efeitos colaterais, alguns trabalhadores tiveram o desprazer de senti-los, em maior ou menor intensidade.

O Tl relata:

“Horrível! Terrível, terrível! Incomodava o estômago, é uma coisa péssima. (...) Eu sou extremamente resistente a estas coisas

( referindo-se a ingestão de medicamentos). Isso aí era uma das

coisas que eu queria fugir. Eu acho que o pessoal também foge. Essas medicações são terríveis! (...) Mandam fazer jejum, mas não dá para respeitar o jejum, de jeito nenhum. Eu comia um monte de coisas junto, não tinha condições de agüentar. ” (Tl)

Da mesma forma, o T5 e o T6 referem-se ao tratamento:

“A medicação é horrível (...). Enjoa muito, são remédios muito fortes. Por mais que tomasse com suco ou leite, aquele remédio é

“O médico me disse: tu toma com coca-cola. No começo, até aceitei, porque tinha um equilibrio de ions que a coca-cola dá. Depois, aquilo me fe z um mal... Eu podia tomar coca-cola a qualquer hora, menos com a medicação. Eu tomava e botava tudo para fora, rejeitava tudo. Foi um horror, a cabeça doía...Tomei os 30 dias, mas contando em contagem regressiva: faltam 26 dias, faltam 20 dias...Aquilo foi para mim...A reação

adversa do meu organismo fo i um horror. ”(T6)

Essas manifestações dos trabalhadores estão argumentadas no contexto científico farmacológico, fisiológico e patológico, que referem realmente ocorrer alterações importantes no organismo humano. Essas alterações exigem um tempo de adaptação ao uso. Como no caso da quimioprofilaxia o tempo de uso é “curto”, é necessário que a adaptação ocorra em um tempo “menor”. No entanto, o ser humano nessa situação “luta” para que a adaptação não exista, pois ela significará um processo de adoecimento, ou seja, o uso continuado dessas medicações, poderá ser sinônimo da soroconversão.

O fato de tomar essas medicações e sentir os efeitos colaterais, principalmente com relação a distúrbios gástricos, predominante no discurso dos trabalhadores, pode e deve ser evitado com medidas de prevenção de acidentes, uma vez que o desgaste emocional a eles relacionados, que reduz em muito a produção do trabalhador e sua qualidade de vida, não tem preço.

Como os investimentos em políticas preventivas só trazem benefícios e vantagens a médio e longo prazos (Costa, 1981), parecendo desnecessários pois não são imediatos, toma-se mais fácil assistir o corpo individual acidentado, reproduzindo o modelo clínico dominante.

Além dos efeitos indesejáveis, o tratamento é acompanhado do mesmo estigma que acompanha a doença AIDS. É como se quem estivesse recebendo a medicação já fosse portador do HIV. Surgem questionamentos em tomo deste fato: Será que foi mesmo acidente de trabalho? Será que ele está com AIDS? Está tomando AZT, só pode ser... Isso faz com que alguns trabalhadores sintam-

se desmotivados a continuar o tratamento.

“O hospital inteiro vai dizer que tenho AIDS. ”(T1)

Apesar de existir certa resistência por parte de alguns trabalhadores, em seguir a quimioprofilaxia pelo prazo determinado* é necessário que isso seja estimulado até o seu ténnino, pois sabe-se, pelos dados já apresentados, que as possibilidades de soroconversão são reduzidas com a quimioprofilaxia (Pinto,1999).

Esta abordagem da quimioprofilaxia ^não pretende, de forma alguma, centrá-la nos efeitos colaterais, mas, partindo de sua necessidade, evidenciar, metaforicamente, a mudança que ocorreu na vida dos trabalhadores que, além de experienciarem o acidente, experienciaram a ingestão química do acidente. Cada comprimido ingerido desencadeia uma série de questionamentos, que não só trazem à lembrança o momento vivido do acidente, mas é acompanhado de uma nova situação de risco, a qual contém o potencial de um novo acidente: a soroconversão. E também cria, momentaneamente, uma nova maneira de “enxergar” a vida, com olhar de incertezas, preocupações e medos.

Esta medida máxima de prevenção poderia ser evitada, se medidas outras fossem adotadas na organização tecnológica da qual se compõe o trabalho.

As ações de prevenção devem concentrar-se nos momentos que antecedem os acidentes, para que seja possível atingir um estágio em que a ocorrência de acidentes seja a mínima possível ou até não exista. Do ponto de vista do capitalismo, este alcance mantém a força de trabalho produtiva. Já do ponto de vista da saúde do trabalhador, mantém a qualidade de vida e de trabalho.

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