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Capítulo II AS QUESTÕES CLIMÁTICAS PELOS ENFOQUES

II.III. INTERESSES DIVERGENTES, MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS

endo explanado sobre a estrutura desigual dos contextos agrários no Brasil, é preciso distinguir que esta diferenciação compõe, associadamente, destoantes propostas políticas correspondentes às inserções sociais e manifestações produtivas no enfoque rural. Neste sentido, nem todas as afirmações voltadas à agropecuária vão atender igualmente os múltiplos agentes sociais que arranjam a complexidade agrária do país.

Por exemplo, as orientações sobre a produção de biocombustíveis, as dinâmicas de MDL e, atualmente, REDD, imbricadas na política climática, pautam- se em princípios muitas vezes contestados nas óticas dos movimentos sociais que se coadunam ao rural, o que será trabalhado em tópicos posteriores. O que nos interessa, aqui, é a percepção teórica do processo territorial formado pelas desigualdades estruturais sobre o ambiente, economia e vida no seio rural brasileiro.

Assim sendo, aborda-se a questão pelos seus contornos territoriais. Fabrini (2008) aponta que a investida pelo território permite referir-se à concepção de ações de resistência, em que as práticas dispostas pela agricultura familiar, somadas às suas lutas, poderão apontar os enfretamentos à ordem hegemônica. Nisto, importante se faz uma breve leitura sobre o conceito de território para determinar a verificação da funcionalidade de políticas públicas a partir de sujeitos sociais com posturas não convergentes.

Dessa maneira, Raffestin (1993) expõe que o território é a expressão concreta das possibilidades dos sujeitos sociais em exercer relações de poder enquadradas numa determinada espacialização. A partir disto, carrega consigo a multiplicidade dos agentes envolvidos no espaço e que constroem nele seus arquétipos materiais e imateriais (SAQUET, 2013; HAESBAERT; RAMOS, 2004).

Esta categoria de análise reflete as amplas caracterizações dos processos produtivos, dinâmicas locais e externas, regulações, relações de consumo e

projetos nas óticas dos atores em sociedade (MARSDEN, 1998), afirmando e transparecendo os âmbitos simbólicos e materiais da vida cotidiana e produzindo significados (HAESBAERT; RAMOS, 2004).

Gil (2004, p.7) caracteriza que:

[...] a realidade é empreendida por vários sujeitos que interagem no tempo e no espaço, não necessariamente no mesmo ritmo,

mesma direção e mesma escala. Interesses múltiplos, recursos adversos, poderes assimétricos, imprimem a pluralidade espacial e territorial que caracterizam a realidade regional58. No território materializam-se e interagem

esses elementos num determinado momento.

Por este domínio, as medidas de poder, as diferentes identidades, a cultura, o ambiente, as redes (tangíveis e intangíveis), as políticas e toda a espacialização da vida cotidiana ganham realce, compondo o quadro geral das possibilidades de concretizações das intenções dos distintos elementos formadores e estruturantes dos territórios (SAQUET, 2013).

Concorda com isto Haesbaert (2007, p.23), demonstrando que:

[...] todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois as relações de poder têm no espaço um componente indissociável tanto na realização de “funções” quanto na produção de “significados”.

Como apontado por Schneider (2004, p.108), o território “[...] é também um campo de forças onde atuam e operam as relações de poder e dominação”. Tais forças e poderes se expressam nas possibilidades de diálogos, instaurações e alcances no que corresponde à formação de laços, consórcios e estratégias conjuntas ou pressões, envolvendo múltiplos atores na conformação de interesses e planos (DELGADO et al, 2007).

Caetano (2003, p.293) expõe que, neste compasso, “[...] o território é marcado pela diversidade organizacional resultante do relacionamento de uma sociedade com o espaço e a natureza”. Milton Santos (1999) delineia a importância do território pelo seu uso, ou seja,

58 A PNMC brasileira, ao adotar os aspectos setoriais, desconsidera a complexidade da realidade

territorial do país, o que pode trazer reações sociais negativas, bem como a incapacidade de instalação e gestão das normativas federais; - Negrito do autor da tese.

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida [...] (MILTON SANTOS, 1999, p.8).

Imprime-se a ideia de que o território é uma totalidade complexa, dialética em seu funcionamento, processual e que se baseia na interação recíproca/conflitante dos sujeitos que participam e se articulam no intuito de construir e afirmar suas finalidades.

Por este caminho, ocorrem manifestações diferenciadas entre atores sociais que se identificam como agricultores familiares e, por exemplo, o agronegócio voltado às commodities para exportação (privilegiado na PNMC brasileira). Os projetos de desenvolvimento, apoiados em financiamentos e práticas agropecuárias específicas, se diferem entre os grandes interesses da produtividade em larga escala, com elevado montante em capitalização, das ações em pequena escala, com maiores dificuldades de obtenção de créditos e inserções limitadas nos mercados.

Isto se amplia quando observado pela desigualdade estrutural do campo brasileiro, onde ocorreram claros processos de espoliação e expulsão de mão de obra devido à intensificação da modernização agrícola e a concentração de terras. Por este viés, surgem especificidades em movimentos sociais que se territorializam, ou seja, criam territórios em que as bandeiras defendidas passam a figurar como o caminho para a aceitação de ações em múltiplas escalas, inclusive as que versam sobre mudanças climáticas.

Esta contextualização realça, então, o próprio conceito de território, mostrando que ao passo de se propor uma política climática é necessário compreender que existem múltiplos atores sociais e projetos que se desenrolam a partir da ideia de “rural” e que a configuração dos moldes de contenções de GEE em somente um padrão específico de ser/estar no campo pode significar a não aceitação por boa parte dos divergentes territórios que se formam nos arcabouços das desigualdades regionais e intrarregionais.

Fernandes (2014) salienta que esta dimensão traz à tona a noção de “territórios em disputa”, marcada pela ascensão de reivindicações de populações do campo que determinaram como fundamentais o respeito por seus modos de vida, de produção e vinculações com o ambiente.

Especificamente, “[...] as corporações capitalistas na conquista de novos territórios expropriam populações camponesas e indígenas. A resistência dessas populações originou o termo disputas territoriais” (FERNANDES, 2014, p.3).

Dessa maneira,

A acumulação por despossessão intensificou as disputas territoriais. Ora, este processo acontece a milhares de anos, mas o termo disputas territoriais era utilizado apenas para os territórios como espaço de governança, ou seja, o primeiro território. O que

marca a década de 1990 é que as comunidades camponesas e indígenas passaram a usar o termo em outras escalas. Passou-se a falar do território como espaço de vida, como terra, comunidade, propriedade (FERNANDES, 2014, p.3-4).

Fernandes (2014) ainda evidencia que há uma nítida diferença entre o que organismos supranacionais, como o Banco Mundial, e movimentos sociais no escopo agrário entendem sobre o território. Neste caso, para uns (ligados às organizações supranacionais) território é o espaço de governança em que as ações, pelos Estados e empresas, se desenrolam numa tomada decisória previamente construída. Já para atores sociais como a Via Campesina (representante internacional dos movimentos sociais de agricultores familiares) o território se compraz na ideia de fixação espacial de um projeto, de intenções e perspectivas vinculadas aos próprios sujeitos que o perfazem (no caso, agricultores familiares).

Com isto em vista, a noção de conflitualidade no desenvolvimento fica ainda mais pertinente, pois quando da abordagem via povos indígenas ou agricultores familiares é preciso observar que estes somente podem existir e se reproduzir como sujeitos sociais a partir da fixação territorial. Sem seus territórios e suas práticas, anseios e características se dissipam restando somente as normativas e efetivações capitalistas da economia global (FERNANDES, 2014).

E neste sentido, é pertinente demonstrar o surgimento de movimentos sociais ligados ao campo que se alocam a partir das manifestações contrárias ao processo desigual de existência e vida em seus territórios, caracterizando a territorialização de contestações às diretivas unicamente vinculadas ao

capitalismo mundial como possibilidades em lutas contra as mudanças climáticas, afirmando as nuances de poder a partir de determinadas intencionalidades.

Assim, parte-se para a formação de movimentos sociais nos contornos rurais do Brasil e, posteriormente, a estruturação transnacional da Via Campesina, para compreender como se dispõem as relações junto ao tema “mudanças climáticas” em escalas nacionais e internacionais de tais atores sociais.

II.IV. MOVIMENTOS SOCIAIS NO RECORTE AGRÁRIO DO

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