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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: JUSTIFICAÇÕES, INSTITUCIONALIZAÇÃO

2.3 Interesses em jogo na institucionalização da prática social

Partindo do questionamento se é possível existir um ato desinteressado, Bourdieu (1996) trabalha o conceito de interesse/desinteresse. Inicialmente, revela que este seu interesse pelo (des)interesse colocou-se como instrumento de ruptura com uma visão encantada e mistificadora das condutas humanas. Isto se dá quando ele compreendeu que toda ação, mesmo nos universos que são lugar, por excelência, do desinteresse - como no campo12

12 A noção de campo social em Bourdieu é diferente, podemos dizer, mais ampla, que o campo organizacional

para a Teoria Institucional. Nesse sentido, o campo organizacional, como aqui estudado, é um recorte, uma redução de outros campos sociais. O campo organizacional poderá conter elementos de diversos campos sociais – econômico, burocrático, intelectual, por exemplo. Apesar da diferente abordagem em relação à noção de campo, a noção de interesse em Bourdieu é útil para a pesquisa principalmente pelo entendimento da relação campo-habitus. Em um campo organizacional haverá a predominância de um campo social, econômico e/ou burocrático, na maior parte dos casos.

intelectual, por exemplo, são ações interessadas, mesmo que não conscientemente e declaradamente.

Além disso, para Bourdieu (1996), os agentes sociais não agem de maneira disparatada, sem nexo – o que não implica dizer que ajam racionalmente, que suas ações sejam guiadas deliberadamente pela razão, por um motivo aparente. Então, de acordo com a sociologia, haveria uma razão para os agentes fazerem o que fazem – mesmo condutas aparentemente incoerentes, encontram um sentido, não seriam realizadas gratuitamente.

E gratuito, para Bourdieu (1996), remete a duas idéias: de um lado, a idéia de não-motivado, de arbitrário, de um ato absurdo do qual pouco ou nada pode se falar. E de outro lado, mais comum, e intrínseca à primeira idéia, de que gratuito é o que é por nada, que não custa nada, que não dá lucro. Superpondo estas duas idéias, esses dois sentidos, identifica-se a busca da razão de ser de uma conduta à explicação desta conduta pela busca de fins econômicos (BOURDIEU, 1996). A partir dessa primeira noção de interesse, ao tentar substituí-la por noções mais rigorosas, como illusio, investimento e libido, o autor aprofunda o conceito.

A palavra interesse teria, então, o mesmo significado da noção de illusio - que vem da raiz latina ludus (jogo). Assim, poderia significar estar envolvido no jogo, estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que vale a pena jogar e dar importância a um jogo social, perceber que o que aí se passa é importante para os envolvidos, para os que nele estão:

Interesse é “estar em”, participar, admitir, portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos [...] Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social (BOURDIEU, 1996, p.139).

Dessa forma, para Bourdieu (1996), o sentido do jogo só existe para aqueles que estão envolvidos nas estruturas do espaço social, sejam as mentais, o habitus, conforme conceito do autor, ou as estruturas objetivas, ou seja, que a importância do jogo é algo já incorporado nos jogadores.

Nesse sentido, o mesmo jogo pode ser indiferente, desinteressante, para pessoas que não compartilhem do mesmo universo (campo social). E quando se adentra num campo,

estabelece-se essa relação illusio, pois, mesmo que se deseje inverter as relações de força no campo, os alvos estão sendo reconhecidos, não lhes são indiferentes. Nesse ponto, o conceito de crítica apresentado por Boltanski e Chiapello (1999) vai na mesma direção, pois, na visão dos autores, a crítica reconhece os mesmos objetos que o capitalismo, estando assim, então, no mesmo jogo. O que ocorre é que o capitalismo, este sim tem a possibilidade de se deslocar, deixando a crítica com o objeto já ultrapassado. Dessa forma, querer revolucionar um campo significa também a concordância com o essencial do que é tacitamente exigido por esse campo, que ele é importante a ponto de se desejar mudá-lo, que vale a pena investir nele. Assim,

Entre pessoas que ocupam posições opostas em um campo, e que parecem radicalmente opostas em tudo, observa-se que há um acordo oculto e tácito a respeito do fato de que vale a pena lutar a respeito das coisas que estão em jogo no campo [...] eles se enfrentam, mas estão de acordo pelo menos a respeito do objeto do desacordo (BOURDIEU, 1996, p.141).

Outra forma de expressar a noção de interesse, para Bourdieu, é a libido. Para o autor, o trabalho de socialização da libido é:

o que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente construídos que apenas existem na relação com um espaço social no interior do qual certas coisas são importantes e outras são indiferentes, para os agentes socializados, constituídos de maneira a criar diferenças correspondentes às diferenças objetivas nesse espaço (BOURDIEU, 1996, p.142).

Assim, há um “preço de entrada tácito” (BOURDIEU, 1996, p.141) imposto por cada campo, que significa compartilhar, lutar pelos mesmos objetos, morrer por eles se for preciso. Então, mesmo em situações onde há um aparente desinteresse, há sempre algo em questão, um capital em disputa.

A visão utilitarista trata os agentes como se fossem (1) movidos unicamente por ações conscientes e entende que (2) tudo o que pode motivá-los é o interesse econômico, o lucro material. A teoria de Bourdieu procura elementos para refutar estas duas reduções das condutas humanas. Mas, salienta o autor, ter consciência do jogo ou se desvencilhar dele não é questão fácil, já que estas estruturas fazem parte dos jogadores: “estamos localizados, e no lugar, não onde está o lucro, mas onde ele vai ser encontrado. As reconversões através das quais somos levados a novos gêneros, a novas disciplinas, a novos objetos etc, são vividas como conversões” (BOURDIEU, 1996, p.142).

Este argumento ratifica aquele utilizado por Boltanski e Chiapello (1999), ao se referir ao deslocamento do capitalismo: quando este entende que é tempo de mudar, desloca-se para um novo objeto, e deixa a crítica para trás. Este novo objeto passa a ser categorizado, visando transformar a força do capitalismo em grandeza, criando uma nova tabela de equivalência, ou seja, produzindo uma nova forma de legitimação do processo de acumulação, evidenciando novas formas de sucesso ou fracasso.

Os argumentos dos autores também se tangenciam no tocante à não-existência de um sujeito arquitetando o deslocamento: o movimento derivaria de interesses interiorizados nos grupos. Nessa visão, a institucionalização de uma específica prática social, então, serviria às relações de poder existentes.

Em relação à primeira redução apontada por Bourdieu (1996), sobre o cálculo consciente (1), defende o autor que nem sempre os agentes sociais expressam tudo o que pensam, todos seus objetivos. Eles não têm necessidade de colocar como fins os objetivos de sua prática, uma vez que, já tendo o sentido do jogo, já têm também incorporado uma cadeia de esquemas práticos de percepção e de apreciação que funcionam, seja como instrumentos de construção da realidade, seja como princípios de visão e de divisão do universo no qual eles se movem:

[...] eles estão, como se diz, envolvidos em seus afazeres [...], eles estão presentes no por vir, no a fazer, no afazer (pragma, em grego), correlato imediato da prática (praxis) que não é posto como objeto do pensar, como possível visado em um projeto, mas inscrito no presente do jogo (BOURDIEU, 1996, p.143) (grifo do autor).

A noção de habitus explica esse sentido do jogo, significando um corpo socializado, estruturado, que incorporou as estruturas imanentes de um mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo como a ação desse mundo: “E quando as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas estão de acordo, quando a percepção é construída de acordo com as estruturas do que é percebido, tudo parece evidente, tudo parece dado” (BOURDIEU, 1996, p.144). Nesse sentido, segundo o autor, a maior parte das condutas humanas acontece dentro de espaços de jogo e os agentes sociais têm “estratégias” que só muito raramente estão assentadas em uma verdadeira intenção estratégica.

Alerta Bourdieu (1996) que, inspirados por um desejo de desmistificação, os pesquisadores tendem a agir como se os agentes tivessem sempre o fim como objetivo, uma ação consciente calculista para se obter uma finalidade, transformando o trajeto em projeto. Ainda, salienta o autor, há jogos em que se deve demonstrar o “desinteresse” – no sentido de não-busca de lucro –, para se obter êxito. Os agentes podem, então, realizar, de maneira espontaneamente desinteressada, ações que estejam de acordo com seus interesses.

Para refutar a segunda redução, de que tudo visa ao interesse econômico (2), esclarece o autor que a evolução das sociedades tende a fazer com que surjam universos (campos) com leis próprias, autônomos – um nomos independente do de outros universos, que têm princípios e critérios irredutíveis aos de outros –, por exemplo, o campo artístico, o burocrático e o econômico, sendo cada um lugar de formas específicas de interesses.

Assim, uma vez que cada campo tem um nomos característico, cada um deles, ao se produzir, produz uma forma de interesse que, do ponto de vista do outro, pode parecer desinteresse ou absurdo. E há uma forma de interesse que pode ser descrita como interesse pelo desinteresse, que se aporta na noção de capital (lucro) simbólico:

[...] qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão, os sistemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado (BOURDIEU, 1996, p.149).

Desta maneira, o capital simbólico é um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento. E a disputa por esse capital pode ser o motor de muitas condutas aparentemente desinteressadas. Então, muitas ações podem ser justificadas em termos do desinteresse (BOURDIEU, 2000).

Ainda, existem universos sociais nos quais a busca do lucro estritamente econômico pode ser desencorajada por normas explícitas ou veladas. A noção de habitus ajuda neste entendimento, pois permite compreender que existem condutas desinteressadas, cujo princípio não é o desinteresse, mas que se torna parte do comportamento, por fidelidade ao grupo ou a si mesmo:

[...] a relação habitus-campo é tal que, de maneira espontânea ou apaixonada, à maneira do “é mais forte do que eu”, realizamos atos

desinteressados [...] Quando as representações oficiais daquilo que um homem é oficialmente em um espaço social dado tornam-se habitus, elas se tornam o fundamento real das práticas. Os universos sociais nos quais o desinteresse é a norma oficial, não são, sem dúvida, inteiramente regidos pelo desinteresse: por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados [...] (BOURDIEU, 1996, p.152).

O habitus torna o agente sujeito de determinadas práticas e o obriga a agir daquela maneira. Por meio do encontro de habitus predispostos ao desinteresse e universos nos quais o desinteresse é recompensado – como no campo artístico, científico etc., microcosmos que se constituem sobre uma inversão da lei fundamental do mundo econômico –, é que se tem sua possibilidade sociológica. Assim, quando o desinteresse encontra condições objetivas de reforço constante, torna-se o fundamento de um prática permanente da virtude (BOURDIEU, 2000).

Discutindo o papel da universalização, da submissão ao universal, conclui Bourdieu que a razão tem fundamento na história, e que se a razão progride é porque há interesse na universalização e que, sobretudo em certos campos, é melhor aparecer como desinteressado do que como interesseiro.

As estratégias de universalização, que fundamentam todas as normas e todas as formas oficiais (com tudo o que elas possam ter de mistificação), e que se apóiam sobre a existência universal do lucro da universalização, fazem com que o universal tenha, universalmente, probabilidades diferentes de zero de se concretizar [...] A gênese de um universo desse tipo só é concebível se temos esse motor que é o reconhecimento universal do universal, isto é, o reconhecimento oficial da primazia do grupo e de seus interesses sobre o indivíduo e os interesses dele, que todos os grupos professam no próprio fato de se afirmarem como tais (BOURDIEU, 1996, p.155).

Logo, o autor salienta que os valores universais são, de fato, valores particulares universalizados, portanto, sujeitos à suspeição crítica, já que a cultura universal é a cultura dos dominantes. E as coisas que os dominantes valorizam preenchem a função simbólica de legitimação porque se beneficiam de um reconhecimento universal – que lhes dá uma probabilidade de existência e perpetuação. Assim, nessa visão, institucionalizar significa universalizar estes valores particulares.

Em outras palavras, e de acordo com Peci (2005), as práticas sociais que são institucionalizadas são aquelas que 'funcionam', no sentido de que são úteis aos que a elegeram, na linguagem de Boltanski e Chiapello (1999), aos grandes.

Ainda, Bourdieu (1996) assinala que caminhamos, cada vez mais, a universos (campos) nos quais serão necessárias justificativas técnicas/racionais para dominar, e nos quais os próprios dominados poderão e deverão utilizar-se da razão para defender-se contra a dominação, já que os dominantes, cada vez mais, invocarão a razão e a ciência para exercer sua dominação. Nesse sentido, a crítica utiliza-se dos mesmos meios que o capitalismo para combater determinado objeto (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999). O que ocorre é que o capitalismo tem melhores condições de deslocar-se deste objeto, deixando a crítica em bases frágeis, já que a nova justificação já está sendo desenvolvida com a recategorização do modelo – via institucionalização de práticas sociais.