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4 RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL (RSE)

4.1 Produção acadêmica sobre o tema

O conceito de responsabilidade social não é novo (ASHLEY, 2005; BOWEN, 1953;). Porém, não se chegou a um consenso sobre seu significado e limites, uma vez que é amplo (VENTURA, 1999) e ainda objeto de disputa (CHEIBUB e LOCKE, 2002). E se é algo disputado, indica que deve ser valioso para os atores envolvidos. Assim, dentro da visão de que a institucionalização de uma prática social se dá na medida em que serve às relações de poder, ou seja, tem um sentido prático, útil (PECI, 2005), a RSE é uma prática social que visivelmente tem sua configuração disputada por diferentes atores.

Observa-se que nesta discussão predomina a linha que explica o movimento como algo intrinsecamente positivo para as organizações e para a sociedade, apontando as motivações e os benefícios auferidos com sua adoção e aprofundando-se na operacionalização do conceito. A literatura tem exaltado a RSE como um bom caminho para as organizações modernas e também para a resolução de problemas sociais. Nesse sentido, os textos voltados à formação de executivos, à gestão empresarial, de forma geral, têm apresentado o tema recorrentemente.

Menos dominante é a linha que procura analisar criticamente o movimento pela RSE, mostrando que, embora positivo sob muitos aspectos, não é uma panacéia para as empresas e muito menos para a sociedade.

Assim, tanto na literatura, como no que Cheibub e Locke (2002) denominam “movimento pela responsabilidade social das empresas”, coexistem definições e explicações. Na mesma linha, o estudo desenvolvido por Cappellin et al. (2002) conclui que,

se por um lado, a problemática da responsabilidade social das empresas está assumindo uma importância crescente, envolvendo em importantes discussões diversos setores da sociedade, por outro, aparece como criadora de conceitos, metodologias, estratégias de ação, cujo conteúdo ainda é claramente “disputado” (CAPPELLIN et al., 2002, p.273).

E nesta disputa pela configuração do conceito, um grande volume de publicações, cursos, e consultorias especializadas vão surgindo para tratar do tema, indicando a cada dia maiores

interesses envolvidos, formando-se uma “indústria da RSE” e implicando sua crescente institucionalização. E, apesar desta proliferação de publicações, segundo Jones (1996), a abordagem crítica entende que o conceito e o discurso da RSE carecem de coerência teórica, validade empírica e viabilidade normativa. Todavia, estes discursos oferecem implicações para o poder e o conhecimento dos agentes sociais.

As atividades relacionadas ao movimento pela RSE, principalmente aquelas ligadas à ação social, abrem um novo mercado. Os atores envolvidos nessa propagação oferecem diferentes tipos de serviços, asseverando a necessidade de especialização para tratar do assunto. Universidades abrem cursos específicos sobre administração e gestão do terceiro setor e da ação social empresarial, principalmente, centradas nas escolas de administração e de economia (PAOLI, 2002). Este processo passa também a estimular o crescimento da bibliografia informativa especializada e sobre as práticas de sucesso, alimentando o movimento. Desta forma, para a autora:

Em um duplo movimento para fora de si mesma, a “empresa-cidadã” realiza eficientemente sua beneficência localizada e produz, para o espaço público da opinião e para o espaço privado de seus pares, a perspectiva de uma presença ampliada, legítima, do próprio poder social do capital (PAOLI, 2002, p.407).

Sob essa argumentação, e para melhor entendimento do fenômeno, é importante conhecer os fundamentos da produção acadêmica sobre o tema, uma vez que há diversas correntes teóricas dedicadas ao questionamento ético e social das empresas, todas visando justificar o fenômeno de RSE. É preciso, então, distingui-las, uma vez que se baseiam em diferentes visões de mundo, e para, também, compreender qual o tipo de discurso está sendo internalizado/incorporado nas organizações.

Ao elaborar esta discussão, Kreitlon (2004) divide a produção acadêmica sobre o tema em três tipos de abordagens. Segundo a autora, foi sobretudo a partir do final dos anos sessenta que o questionamento ético e social das empresas ganhou força – justamente numa época em que o sistema capitalista sofria fortes críticas: “a temática suscitou uma grande variedade de discussões teóricas, tendo acabado por institucionalizar-se durante os anos 80 sob a forma de três correntes: a Business Ethics, a Business & Society, e a Social Issues Management” (KREITLON, 2004, p.1). Há, então, uma coincidência temporal, não gratuita, com a fase anteriormente identificada por Boltanski e Chiapello (1999) de formação do chamado terceiro

espírito do capitalismo, onde um novo arcabouço de valores e uma nova tabela de equivalência vão sendo formados, também no meio empresarial. Não por acaso, devido ao alto nível de desenvolvimento capitalista – lugar de conflito, portanto, entre empresas e sociedade –, a maior parte dos estudos sobre o tema nasceu nos Estados Unidos (KREITLON, 2004). A crítica alerta o capitalismo dos perigos que corre, “obrigando-o” a operar um deslocamento, ou seja, a mudar sua forma de atuação, passando a incorporar as reivindicações críticas. Nesse processo é que o capitalismo cria dispositivos/provas de modo a contribuir para uma tabela de equivalência que lhe seja benéfica.

Segundo Kreitlon (2004), a corrente da “Ética Empresarial” (Business Ethics) propõe um tratamento de cunho filosófico, normativo, centrado em valores e em julgamentos morais. Dessa forma, na qualidade de agentes conscientes, as empresas devem se sujeitar às mesmas regras morais que os indivíduos. A segunda corrente, “Mercado e Sociedade” (Business & Society), adota uma perspectiva sócio-política, sugerindo uma abordagem contratual aos problemas entre empresas e sociedade, uma vez que há uma relação de interdependência. Assim, a empresa, como instituição social, deve estar a serviço da sociedade que a legitima. A terceira corrente, “Gestão de Questões Sociais” (Social Issues Management), é de natureza utilitária, pragmática, tratando as questões sociais como variáveis a serem consideradas na gestão estratégica das empresas. As três correntes, em nossa visão, foram e são importantes para o processo de formação do novo espírito do capitalismo, cada uma se apoiando em uma base justificativa diferente.

Segundo Kreitlon (2002), as justificativas apresentadas para o conceito e prática da RSE vão variar conforme sua aproximação com uma das correntes. Porém, todas são, em alguma medida, um discurso de normatividade do capitalismo, indicando como as empresas devem agir. O Quadro 4 resume as idéias apresentadas por Kreitlon em relação à produção acadêmica sobre o tema:

Quadro 4. Diferentes abordagens sobre questões éticas e RSE

ABORDAGEM VISÃO COMPORTAMENTO

ÉTICA NORMATIVA

A responsabilidade social da empresa decorre diretamente de sua responsabilidade moral. É seu dever moral agir de modo socialmente responsável.

O comportamento X é intrinsecamente bom, desejável, conducente ao bem comum, e, portanto, imperativo, do ponto de vista moral, independente de suas conseqüências.

SOCIAL CONTRATUAL

Empresa e sociedade como uma rede inextrincável de interesses e relações, permeada por disputas de poder, por acordos contratuais explícitos ou implícitos, e pela busca de legitimidade.

O comportamento X é presentemente legítimo, e decorre de acordos e contratos sociais, explícitos, fundados nas noções de justiça e igualdade.

GERENCIAL ESTRATÉGICA

Visa a atender à demanda por instrumentos para a gestão sistemática dos problemas éticos e sociais enfrentados (ou antecipados) pelas companhias, como uma vantagem competitiva.

O comportamento X é instrumental para consecução dos objetivos últimos do sujeito, e, portanto, útil apenas enquanto cumprir esta função.

Fonte: elaborado com base em Kreitlon (2004).

Kreitlon (2004) conclui que, embora partam de princípios diferentes, em última instância, as três abordagens se reforçam e promovem a mesma ideologia, a apropriação de questões de interesse público e político pela iniciativa privada. Além disso, em nossa visão, as três abordagens podem ser entendidas como voltadas à normatividade do capitalismo, pois em todas há o “interesse” em encontrar e disseminar o melhor caminho para as organizações, sendo mais explícito na abordagem gerencial.

O que se observa é que as definições de RSE vão variar de acordo com o contexto histórico e social em que são formuladas e, sobretudo, em função dos interesses e da posição ocupada no espaço social pelo grupo que as formula. Porém, segundo Kreitlon (2004), muitas definições buscam estabelecer-se como gerais e consensuais, embora sejam a expressão de interesses particulares e específicos – quando uma definição prevalece no espaço social, indica que outras foram derrotadas. Apesar disto, de acordo com a autora, existe um “consenso mínimo” quanto ao fato de que uma empresa socialmente responsável deve: reconhecer o impacto que suas atividades causam sobre a sociedade na qual está inserida; gerenciar os impactos econômicos, sociais e ambientais de suas operações, tanto ao nível local como global; e, realizar esses propósitos por meio do diálogo permanente com suas partes interessadas, às vezes em parcerias com outros grupos e organizações (KREITLON, 2004).

Cheibub e Locke31 (2002) argumentam que não existe base moral ou política que possa obrigar empresas a assumirem responsabilidades sociais – no sentido de algo além de suas obrigações legais –, o que deixa sua assunção em bases frágeis. Alertam, ainda, que há um risco social e político envolvido na disseminação da RSE, principalmente quando é entendida como ações filantrópicas e/ou financiamentos a programas sociais, pois pode conduzir a uma redução da esfera pública e fragilização da própria noção de direitos de cidadania, enquanto direito público garantido pela sociedade e coletivamente assegurado pelo Estado. Assim, mesmo que estas ações sejam bem intencionadas, não necessariamente têm as melhores conseqüências. E, segundo os autores, o que se verifica nas análises produzidas é que muitos destes aspectos da RSE são negligenciados.

No Quadro 5 estão sintetizados os modelos existentes na literatura sobre as diferentes formas com que as empresas podem se inserir em seu meio social:

Quadro 5. Modelos de Responsabilidade Social Empresarial

Chamando a atenção de quem escreve sobre o tema, segundo os autores, há uma tendência na literatura de se privilegiar a dimensão valorativa da RSE – Filantropia e Idealismo ético –, num discurso eminentemente normativo, o que vai ao encontro da análise efetuada por Boltanski e Chiapello (1999) em relação à normatividade da literatura de gestão. Para Cheibub e Locke (2002), o principal problema com esses modelos e com os argumentos que os sustentam é que eles concentram-se na determinação das razões, dos motivos, das conseqüências e dos benefícios da RSE e, assim, assumem que todos os outros atores sociais ganham com sua adoção. Assim, não se considera no debate a dimensão pública/política dessas ações. Dever-se-ia indagar, por exemplo, se e como a responsabilidade social contribui

31 Na visão de Cheibub e Locke (2002), RSE implica em ações que vão além da “letra da lei” e em ações não

resultantes de negociações políticas com sindicatos ou organizações de trabalhadores. Motivação da ação

Alvo da ação

Instrumental Moral

Acionistas/donos Produtivismo Filantropia

Stakeholders Progressista Idealismo ético

para a garantia dos direitos dos cidadãos estabelecidos na organização da sociedade. O Estado estaria garantindo estes direitos, ou se eximindo, quando permite, ou incentiva, que outros atores sociais também executem ações sociais?

Desta forma, o principal ponto para Cheibub e Locke (2002) é que as ações de RSE não têm conseqüências somente para a própria empresa ou para seus beneficiários diretos, mas para a sociedade como um todo, pois pode influir na distribuição de poder político na própria sociedade. Assim, a questão do poder das empresas também não deve ser negligenciada nas análises produzidas em relação a processos de institucionalização. O Quadro 5, então, sinaliza as diferentes formas com que as empresas justificam sua inserção no movimento pela RSE, o que vai também implicar uma específica forma de atuação.

Para Cheibub e Locke (2002), RSE não seria uma questão moral, mas sim de interesse econômico das empresas. Cheibub e Locke (2002) consideram bom, todavia, que as empresas assumam posicionamentos socialmente responsáveis, desde que a sociedade esteja atenta para os riscos políticos que podem advir desse movimento. Na visão dos autores, a RSE é uma questão de auto-interesse das empresas, pois, mesmo que não seja de seu interesse exclusivo e imediato, é do seu interesse esclarecido e de longo prazo, na medida em que suas ações podem contribuir para o fortalecimento da sociedade civil, tornando-a mais densa e articulada – o que favorece, em última instância, a condução de seus negócios.

A discussão sobre a RSE encontra-se inscrita na agenda de debates contemporânea, tendo os discursos e iniciativas relativas ao tema já chegado a lugar-comum no mundo dos negócios, principalmente entre as empresas transnacionais (KREITLON, 2004). Nessa linha, o processo de incorporação e transformação de temas da agenda social e política em tecnologias gerenciais faz das empresas transnacionais agentes importantes do processo de globalização, fornecendo universos compartilhados, porém não consensuais, de comunicação negocial, de transferência tecnológica e de mudança cultural (BARBOSA, 2002). Estes argumentos vão ao encontro dos conceitos apresentados de Bourdieu, para quem os esquemas práticos de percepção estão incorporados aos indivíduos de um universo específico, podendo ser ainda mais reforçados por outros agentes (BOURDIEU, 1996; 2000). Nesse sentido, Barbosa (2002) identifica agentes e mecanismos envolvidos na produção e disseminação desta cultura de

negócios32, ressaltando o papel desempenhado pela Academia de Administração norte- americana, alguns centros europeus de pesquisa, a bibliografia de negócios – que tem um tom normativo, indicando esquematicamente qual a melhor forma de fazer negócio –, o jornalismo de negócios, os “gurus” e as empresas de consultoria.