• Nenhum resultado encontrado

3 OS SENTIDOS DO SERTÃO: ENTRE TERRITÓRIO E LUGAR,

3.5 Perscrutando memórias e descerrando representações: Vitória da

3.5.3 Interstícios do sertão

Além das negativas e afirmativas discutidas, respostas, como “depende”, “mais ou menos”, “sim e não” ou “tenho dúvidas”, também ocorreram, conforme se constata no Quadro 3:

Unidade de análise Representações decorrentes % Zona de transição

É uma zona de transição. 77,8

Metade da cidade é sertão, a outra é mata de cipó. Desenvolvimento e

prosperidade

Se comparada com outras cidades da região, sim, mas com outras mais próximas do litoral e mais prósperas, não. Tem relação com desenvolvimento, prosperidade.

11,1

Escassez No sertão, não se tem acesso a nada; por isso muitos vêm de lá para buscar os recursos aqui.

11,1

Quadro 3: Unidades de análise presentes nos discursos dos sujeitos sociais que apresentaram dúvidas quanto ao fato de considerarem Vitória da Conquista como sertão, 2008.

Fonte: Pesquisa de campo, 2008. Org.: MENDES. G, F.

Mais uma vez, unidades de análise que também aparecem nos Quadros 1 e 2, respectivamente para negar ou afirmar o sertão, se instauram também na condição de dúvida, incerteza. Nesses casos, o aspecto relacional é sempre enfatizado. E a dúvida se estabelece mediante comparações com outros lugares considerados ou não como sertão e que se diferenciam de Vitória da Conquista de alguma maneira.

As unidades de análise encontradas nos discursos e as representações delas decorrentes proporcionam a compreensão de aspectos importantes na configuração de representações acerca do espaço. Diante do quadro, pode-se ratificar a existência da multiplicidade de significações atribuídas a sertão, indo de encontro e questionando a aparente unificação de sentidos muitas vezes divulgados por determinados grupos sociais que fundam uma pseudocoesão social como se nas representações desses lugares e territórios também não se manifestassem tensões e lutas internas. Inevitavelmente, os sentidos atribuídos aos espaços são constantemente inventados e reinventados, significados e ressignificados.

Na perspectiva ainda da multiplicidade, Massey (2000) analisa a relação entre identidade e lugar, exemplificando, com base em Kilburn155 – Londres, que, embora esse lugar possa ter uma característica própria, “[...] não se trata absolutamente de uma identidade coesa, coerente, de um sentido particular do lugar, partilhado por todos. Nada poderia ser

155

Massey (2000), ao discutir os múltiplos “sentidos do lugar”, apresenta exemplos para dar mais ênfase à sua argumentação. Assim, analisa alguns lugares, a exemplo da cidade de Kilburn – Londres, destacando-a como a cidade em que mora e pela qual tem muita afeição, mas que, como outra cidade qualquer, é permeada por relações heterogêneas, não coesas o que gera múltiplos “sentidos do lugar”. Nesta perspectiva, os lugares não podem ser identificados como portadores de identidades únicas ou singulares: eles estão plenos de conflitos internos.

mais diferente disso”, pois “o lugar é absolutamente não estático. Se os lugares podem ser conceituados em termos das interações que os agrupam, então essas interações em si mesmas não são coisas inertes, congeladas no tempo: elas são processos” (MASSEY, 2000, p. 183).

As conceituações dos lugares apresentam-se permeadas por relações heterogêneas, não coesas, o que gera múltiplos sentidos. Nesse prisma, os lugares não podem ser identificados como portadores de identidades únicas ou singulares: eles e as suas representações estão plenos de relações conflituosas que, na acepção de Carlos (1996, p.11), “[...] geram, contraditoriamente, estranhamento e identidade, como decorrência da destruição dos referenciais individuais e coletivos que produzem a fragmentação do espaço [...]”. Esse movimento de afastamento e aproximação ou de afastamento e identidade, a que se refere a autora, vincula-se às perdas e aos acréscimos das referências espaciais que sustentam a memória social e que constituem as representações, uma vez que os elementos conhecidos e reconhecidos, impressos na paisagem, se mesclam no processo de construção incessante de novas formas espaciais (CARLOS, 1996, p.11).

Ainda para esta autora, o lugar se produz e se reproduz na relação dialética entre o global e o particular. Assim, o local não se desvincula do global, pois “[...] lugar é sempre um espaço presente dado como um todo atual com suas ligações e conexões cambiantes” (CARLOS, 1996, p. 31). Essa relação entre o local e o global instiga a autora a empreender uma análise do significado do lugar na era das redes, uma vez que se tornam visíveis as mudanças nas relações com os lugares num período marcado pelo que Harvey (1992) denominou de compressão tempo/espaço. Assim, o lugar na era das redes produz a sensação de que as bases territoriais estão sendo perdidas. Apesar dessa aparência, Carlos (1996, p. 30) destaca: “[...] o lugar guarda em si e não fora dele o seu significado e as dimensões do movimento da vida, possível de ser apreendido pela memória, através dos sentidos”. Na expressão de Da Matta, é o “[...] espaço embebido socialmente [...]” (1985, p. 36), que dá sentido à vida.

No artigo intitulado Um sentido global do lugar, Massey (2000) também empreende uma análise acerca do sentido do lugar nessa época de constante aceleração. Ao longo da análise de diversos aspectos pertinentes à compressão tempo/espaço, ela constata que “[...] um dos resultados dessa situação é a crescente incerteza sobre o que queremos dizer com lugares e como nos relacionamos com eles” (MASSEY, 2000, p. 177).

A análise de Massey (2000) converge em alguns pontos com a de Carlos (1996). Todavia, a primeira extrapola alguns argumentos desenvolvidos pela segunda, pois, para Massey, não existe uma identidade coesa com o lugar, mas identidades múltiplas. Portanto, se

é possível pensar em identidades múltiplas, pode-se dizer a mesma coisa dos lugares. Assim, os sentidos atribuídos ao lugar são também múltiplos, diversos. Para essa autora, em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-los como momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, assim “[...] cada lugar pode ser visto como um ponto particular, único, dessa interseção. Trata-se na verdade de um lugar de encontro” (MASSEY, 2000, p. 184). Nesta concepção, “[...] o lugar é absolutamente não estático. Se os lugares podem ser conceituados em termos das interações que o agrupam, então, essas interações em si mesmas não são coisas inertes, congeladas no tempo: elas são processos” (MASSEY, 2000, p. 184).

Na apresentação à edição brasileira do livro de Massey Pelo espaço: uma nova

política da espacialidade, Haesbaert indica que talvez a hegemonia do lugar revelada nos

trabalhos de Massey, assim como da geografia inglesa, se deva, em parte, à força da dimensão cultural-identitária no contexto geográfico inglês, assim como

[...] a do “território” no nosso meio talvez se deva à força das disputas territoriais num ambiente em que a “terra-território” ainda é um recurso (e um abrigo, diria Milton Santos) a ser apropriado e usufruído por uma parcela cada vez mais ampla da sociedade. Aliás, o usufruto comum ou partilhado, uma efetiva “multiterritorialidade”, tem muito a ver com o “lugar múltiplo”

e “de encontro” a que Doreen se refere (HAESBAERT, 2008, p. 13).

Seja com ênfase em território e em lugar, é importante considerar que a apreensão dos vínculos entre estes e as redes de memória e as representações sociais que os constituem se configuram de extrema importância para o olhar geográfico.

É imprescindível reconhecer que as abordagens que têm como foco as relações identitárias com o território e com o lugar possuem diferentes vertentes e compreensões, sendo, portanto, alvo de muito mais divergências do que consensos. Diante disso, fica claro que as proposições em torno dessas relações não são de maneira nenhuma unívocas: há uma multiplicidade de olhares, ênfases e práticas desenhando e fermentando o debate em torno dessa temática. No entanto, tendo como ponto de partida as abordagens apresentadas, demarca-se que as acepções adotadas nesta tese tanto de território quanto de lugar evidenciam também a sua carga simbólica, uma vez que, nesse entendimento, pode-se concluir que as duas categorias analisadas desempenham papel fundamental na consolidação de memórias e representações sociais, e vice-versa, o que envolve a compreensão de que os símbolos, os discursos, as práticas sociais configuram determinadas territorialidades, interferem nas configurações socioespaciais.

As representações do espaço ou a configuração de horizontes espaciais coletivos, inquestionavelmente, pressupõem história e, empiricamente, uma multiplicidade de elementos que interagem e contrapõe-se no movimento de sentidos. No que tange especificamente às representações do sertão, Maldi anuncia bem essa condição ao afirmar:

O sertão reflete essa consciência de grandeza sem se prender a qualquer

lócus específico e ganhando diferentes significados históricos sem perder seu

sentido arquetípico. Não sendo constituído nem tendo sido estabelecido por uma imagem acabada, pode ser inteligível através de um “fluxo de produção de imagens” – que vai desde a paisagem até o modo de vida típico (1993, p. 62).

Esse fluxo de produção de significados e imagens foi observado ao longo da pesquisa empírica e se expressa nas unidades de análise apresentadas, uma vez que as representações do espaço e o espaço das representações, configurados na memória social, são plurais, exigem um diálogo entre a teoria e a realidade, pois esta põe em tela, insistentemente,novos desafios para a sua compreensão e possível interpretação.

Ferguson e Gupta (2000) advertem que as associações entre lugar e memória em vez de sólidas, criteriosas e pacíficas são, na verdade, contestadas, incertas e fluidas, o que significa ir além da consideração da diferença cultural, “significa passar a vê-la (a cultura) como produto de um processo histórico compartilhado que diferencia o mundo ao mesmo tempo em que o conecta” (FERGUSON e GUPTA, 2000, p. 43). Por fim, os autores concluem que espaço e lugar nunca podem ser dados a priori e ressaltam a necessidade de considerar o modo como “[...] espaços e lugares são construídos, imaginados, contestados e impostos” (FERGUSON e GUPTA, 2000, p. 44).

As construções relacionais que envolvem contínuas negociações configuram representações sociais diversas, que são fruto também do que García Canclini (2007, p. 43) denominou de repertórios culturais diferentes, que, por sua vez, vão gerar configurações transversais de sentidos, conferindo complexidade a cada sistema simbólico. Tais construções, esclarece-nos o autor, não derivam unicamente da relação com um território no qual nos apropriamos dos bens ou do sentido da vida nesse lugar. Com eles, no entanto, apropriamo- nos de outros repertórios disponíveis no mundo, que nos chegam das mais diversas formas e que confirmam que “[...] Os significados são reinventados continuamente em vez de serem continuamente copiados” (MARTINS, 2008, p. 55). Enfim, como Moscovici (1984) insistentemente salienta – e as unidades de sentido apresentadas nos quadros ao longo desse

capítulo demonstram –, as representações sociais são móveis, versáteis e estão continuamente se (re)configurando.