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O território Sertão da Ressaca e sua geografia fundadora: onde é esse

3 OS SENTIDOS DO SERTÃO: ENTRE TERRITÓRIO E LUGAR,

3.2 O território Sertão da Ressaca e sua geografia fundadora: onde é esse

Apesar de a denominação Sertão da Ressaca estar em proeminência em trabalhos acadêmicos e diferentes meios discursivos que tratam da história do município e região, a exemplo do site da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC), diversas publicações locais,89 matérias em jornais em que se comemora o aniversário do município, constatou-se que tal denominação praticamente não circula no senso comum. Entretanto, continuar-se-á fazendo menção a ela, considerando a importância da nomeação de um território. O ato de nomear o território vincula-se a acontecimentos fundadores que estão, quase sempre, relacionados à apropriação de um território ou à independência obtida pelo enfrentamento de estrangeiros (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. 129).

De fato, sempre que o Sertão da Ressaca é mencionado e há seu reconhecimento, a memória coletiva evoca desbravamento, genocídio, batalhas, isolamento, dificuldades etc.90

Ainda García Canclini (2006, p.129) adverte que “[...] Vão se somando as façanhas em que os habitantes defendem esse território, ordenam seus conflitos e estabelecem os modos legítimos de convivência, a fim de se diferenciarem dos outros. [...]”. Para o autor, “[...] Os livros escolares e os museus, assim como os rituais cívicos e os discursos políticos, foram durante muito tempo os dispositivos com que se formulou a identidade de cada nação e se consagrou sua retórica narrativa” (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. 117). Atribui-se a categoria território ao Sertão da Ressaca e, nessa atribuição, entende-se, conforme Del Río que:

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Exemplos de publicações locais que apresentam a denominação Sertão da Ressaca e que servem de referência para os estudos acerca da história de Vitória da Conquista e região: Revista Histórica de Conquista (VIANA, 1982); História de Conquista: crônica de uma cidade (TANAJURA, 1992); O Município da Vitória (TORRES, 1996); A conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia (SOUSA, 2001);

Um presente especial. Vitória da Conquista: quero te conhecer (FERRAZ, 2007). Tais publicações são bastante procuradas no Museu Regional de Vitória da Conquista (MRVC) como referência para os estudos mencionados.

90 O site da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista introduz no link História, o seguinte trecho: “O território onde hoje está localizado o Município de Vitória da Conquista foi habitado pelos povos indígenas Mongoyó, Ymboré e Pataxó. Os aldeamentos se espalhavam por uma extensa faixa, conhecida como Sertão da Ressaca, que vai das margens do Rio Pardo até o Rio das Contas [...] A vinda dos colonizadores portugueses e mestiços à região de Vitória da Conquista está ligada à exploração de metais preciosos, principalmente ouro, e à política de ocupação do território. Um dos responsáveis pelo desbravamento do Sertão da Ressaca foi o bandeirante João Gonçalves da Costa, português nascido na cidade de Chaves, provavelmente em 1720. Ele ficou conhecido como um conquistador violento e dizimador de aldeias indígenas. João Gonçalves da Costa chegou ao território onde hoje está Vitória da Conquista depois do esgotamento das minas de ouro de Rio de Contas e das Gerais. Ele procurava novos pontos de exploração mineral. Embora não tenha encontrado ouro por aqui, ele acabou ocupando a região e fundando o Arraial da Conquista”. Disponível em: <http://www.pmvc.com.br/>.

[...] el territorio se construye a partir de unos intereses concretos, más o menos racionalizados, pero también a través de una lógica relacionada con otros aspectos que en ocasiones son relegados a un segundo nivel, pero que tienen una importancia fundamental: los aspectos emocionales, los afectivos, e incluso si se quiere los aspectos “irracionales”. La vinculación persona-grupo-territorio a través de los procesos de identificación es una

buena muestra de ello (DEL RÍO, 1998, p. 135).

É assim que a busca da superação da dicotomia material/ideal na discussão da categoria território91 – e demais categorias geográficas – tem sido empreendida por alguns geógrafos. Conforme destaca Saquet (2007), durante a década de 1980 e, sobretudo, a partir dos anos 1990, as abordagens sobre território sofrem alterações significativas, pautadas especialmente no reconhecimento e explicação de aspectos simbólico-culturais vinculados às bases territoriais.

Sobre tal questão, Haesbaert (2004, p. 42) esclarece: “Para muitos, pode parecer um contra-senso falar em „concepção idealista de território‟, tamanha a carga de materialidade que parece estar „naturalmente‟ incorporada ao termo”. Todavia, não se trata de discutir a primazia de uma ou outra dimensão na análise do território, mas considerá-lo em sua totalidade, o que certamente suscita o reconhecimento e a importância de levar em conta tanto as dinâmicas materiais quanto as imateriais. Endossa-se a postura de Haesbaert (2004, p. 79) quando pondera que “[...] o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural”.

Del Río, nessa perspectiva, enfatiza:

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As discussões que envolvem a categoria território têm resultado em uma produção significativa. Não se intenciona o aprofundamento em todo o processo pelo qual passou o conceito de território no âmbito da geografia. Tal objetivo foi cumprido por alguns autores que, a exemplo de Haesbaert (1997, 2001, 2002, 2004), Souza (1995, 2001) e Saquet (2007), apresentam um amplo panorama de análise acerca da emergência desse conceito nas análises geográficas. Interessa-nos, mais especificamente, identificar concepções de território que permitam aproximações com memória e representações sociais.

Y es que en ocasiones tendemos a relegar a un segundo plano los lazos afectivos, emocionales... ante la dificultad de ser traducidos a una lógica racionalista. Pero razón e irracionalidad son inherentes al ser humano, y también forman parte de su actuación e identificación, en y como grupo en un espacio y tiempo concretos. Espacios y tiempos configurados en buena medida desde la interacción diaria de los individuos que conviven cotidianamente, pero que sin embargo se estructuran en marcos territoriales delimitados en gran parte desde la lógica del poder político-institucional, que organiza el espacio en estructuras más amplias (1998, p. 136).

Mais uma vez, em acordo com o entendimento deste autor (1998), ressalta-se a necessidade de considerar a intensa relação entre os elementos materiais e imateriais que compõem o processo de produção socioespacial. Reconhecendo a riqueza que o entrecruzamento de proposições teóricas possibilita, a problemática apresentada direciona ainda para mais uma concordância com o pensamento de Haesbaert:

[...] o território, enquanto relação de dominação e apropriação sociedade- espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais “concreta” e “funcional” à apropriação mais subjetiva e/ou cultural-simbólica. Embora seja completamente equivocado separar estas esferas, cada grupo social, classe ou instituição pode “territorializar-se” através de processos de caráter mais funcional (econômico-político) ou mais simbólico (político-cultural) na relação que desenvolvem com “seus” espaços, dependendo da dinâmica de poder e das

estratégias que estão em jogo (2004, p. 95).

Reiterando tal argumentação, Almeida afirma:

Como organização do espaço, pode-se dizer que o território responde em sua primeira instância, a necessidades econômicas, sociais e políticas de cada sociedade e, por isso, sua produção está sustentada pelas relações sociais que o atravessam. Sua função, porém não se reduz a essa dimensão instrumental; ele é também objeto de operações simbólicas e é nele que os atores projetam suas concepções de mundo (2005, p. 108).

Levando em conta tais aspectos, território desdobra-se em territorialidade, conceito que tem sido utilizado para enfatizar as questões de ordem simbólico-cultural e o sentimento de pertencimento que Almeida (2005, p. 109) destaca como, “[...] resultado de uma apropriação simbólico-expressiva do espaço, sendo portador de significados e relações simbólicas”. Diante de tal constatação, pode-se afirmar que a identidade cultural também dá sentido ao território. É, pois, mister, reconhecer que a intensa articulação entre todas as

dimensões é que vai possibilitar uma compreensão da totalidade dos fenômenos que se manifestam tanto no território quanto no lugar.

Compreende-se que as denominações dos territórios e o seu mapeamento atuam como um porto-seguro para a memória. De acordo com Claval (2001, p. 202), a toponímia é um dos traços mais acentuados da herança cultural: “[...] É, freqüentemente, marcada por um grande conservadorismo: guarda-se através da história os nomes antigos”. Alterar a denominação de um território, um lugar, implica, muitas vezes, demover a história ali vivida. Retirar uma dada denominação do mapa ou não reconhecer a sua configuração corresponderia a apagá-la da memória. Em se retirando uma denominação do mapa e transformando-a em um lugar de memória, está-se contribuindo para o fortalecimento dessa denominação? Acredita-se que, em parte, sim, pois, mesmo o Sertão da Ressaca não estando presente nos mapeamentos contemporâneos, continua a produzir sentidos, ainda que numa esfera mais restrita.

Na busca de respostas também a esse questionamento, foi necessário construir mecanismos de distanciamento/aproximação, na perspectiva de um viés que permitisse vislumbrar com mais clareza as interseções entre território/lugar/memória/representações sociais. Optou-se, então, por tratar territorialmente o Sertão da Ressaca como um lugar de memória. De acordo com Nora (1993), tais lugares têm o papel de estabelecer laços de continuidade entre o passado e o presente, portanto equivalem à necessidade da preservação das memórias coletivas, sem as quais a vida estancaria num eterno presente. Os lugares de memória configuram-se como tentativas de compensar o que foi ou poderá ser destruído. Esses seriam, de acordo com o autor, tanto lugares materiais quanto lugares pouco palpáveis ou imateriais. Arruda já havia associado a categoria sertão a esta definição de Nora, destacando:

Devido ao seu caráter ambíguo que, ao mesmo tempo, remete a realidades físicas concretas e a elementos simbólicos e culturais, podemos considerá-lo como um dos lugares de memória mencionado por Pierre Nora. Nesse sentido, as descrições e memórias de viagens realizadas por quem percorreu um espaço denominado sertão, podem ser tomadas como elementos de construção dos lugares de memória (2000, p. 166).

No que diz respeito à ideia original de Sertão da Ressaca, constata-se que, se, por um lado, ela não tem repercussões na memória social conquistense, o que se coaduna e justifica, em grande medida, no pressuposto de que o “[...] sertão/espaço não existe em si mesmo, mas unicamente através de um conjunto de efeitos ou de interações que ele engendra”

(ALMEIDA, 2003, p. 74), por outro, com a retomada de tal denominação, no âmbito acadêmico, ela se impõe na perspectiva de um discurso fundador, que reivindica e assegura uma identidade territorial, o pertencimento a um dado território com uma história e um espaço definidos. Tal ponderação encontra respaldo na ideia de Espindola de que o sertão também se configura como “[...] um discurso sobre espaços e pessoas, uma construção simbólica com fins determinados” (2001, p. 03).

Entendendo o caráter paradoxal que marca todo movimento de sentidos e significações, fica claro que a sua compreensão só será possível se forem consideradas as dimensões do espaço apontadas por Lefèbvre (1991[1974]), uma vez que cada uma delas não exclui a outra, mas cada uma converge para a configuração da totalidade do espaço geográfico.