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3 OS SENTIDOS DO SERTÃO: ENTRE TERRITÓRIO E LUGAR,

4.2 O que faz ser sertanejo?

Com a questão “Você se considera um sertanejo (a)?”, tomada, inicialmente, por base, busca-se apreender, com os dados da Tabela 3, as representações dos sujeitos sociais contemplados na pesquisa e a vinculação com as discussões realizadas anteriormente.

Tabela 3 - Reconhecimento dos moradores de Vitória da Conquista e municípios circunvizinhos com a condição de ser sertanejo (a), 2008.

Local de Moradia Reconhece % Não reconhece % Dúvida % Total %

Total dos entrevistados 52,7 41,8 5,5 100

Sede 50,9 41,9 7,2 100

Distritos 50,9 49,1 0 100

Municípios Circunvizinhos

73,7 21 5,3 100

Fonte: Pesquisa de campo, 2008.

Ponderando que a memória e as representações do espaço sertão não foram constituídas como unidade, antes, foram atravessadas por múltiplos fluxos discursivos, seria de esperar que as representações sobre o sertanejo também assim se mostrassem. A tabela apresentada ratifica tal assertiva, pois demonstra mais uma vez a “ambiguidade instauradora”157 que perpassa o sentido de “ser sertanejo”. Nesta direção, ao confrontar os dados da Tabela 3 com os da Tabela 2 (página 140), nota-se que a tendência de considerar-se sertanejo é maior do que a atribuição de Vitória da Conquista como lugar sertão. Foi interessante observar que a identificação com a condição de sertanejo, em termos de sua afirmação, ocorreu com o mesmo percentual entre os moradores da sede e dos demais distritos (50,9%), ficando apenas a dúvida como diferença, já que 7,2% dos moradores da sede oscilaram quanto a essa consideração ao passo que, nos demais distritos, as respostas foram sempre categóricas: afirmativas ou negativas.

Também se repete a propensão de os moradores dos municípios circunvizinhos sentirem-se mais sertanejos (73,7%) do que aqueles que têm uma vinculação com Vitória da Conquista, provavelmente pelas razões já apresentadas na análise feita no capítulo anterior, em que se demonstra o fato de os moradores dos municípios circunvizinhos ressaltarem uma relação de dependência a Vitória da Conquista, considerando-a como não mais pertencente ao sertão em razão do crescimento por que vem passando o município.

Ao analisar os dados de maneira geral, nota-se a mesma ambivalência quanto à concepção de um lugar sertão. Assim, existe aquele que se inclui em tal condição e aquele que se exclui. Por que isso ocorre? Quando as representações de sertão e de sertanejo vinculam-se a aspectos negativos, o sujeito social tende a não assumir tal identidade. Entretanto, quando tal representação vincula-se a aspectos positivos, associadas a benefícios, é interessante se autoafirmar como sertanejo.

Há ainda um aspecto importante analisado por Suárez (1998) que é o fato de o sertanejo ser considerado um personagem. Este estereótipo afasta, muitas vezes, o sujeito social da tendência de apreciar-se como tal, pois não se sente enquadrado no clichê do sertanejo que foi e continua sendo amplamente divulgado nacionalmente. Conforme constata Bhabha, o estereótipo

157

Em As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas, Galvão se detém especialmente no que define como ambiguidade instauradora na obra roseana. Segundo a autora “[...] Se o princípio organizador é a ambigüidade, a estrutura do romance é também definida por um padrão dual recorrente. A coisa dentro da outra, como o batizei, é um padrão que comporta dois elementos de natureza diversa [...]” (GALVÃO, 1986, p. 13). Portanto, para a autora, o princípio que perpassa todo o percurso desse romance é a ambiguidade. “Tudo se passa como se ora fosse ora não fosse, as coisas às vezes são e às vezes não são (GALVÃO, 1986, p. 13).

[...] não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito [...] (1998, p. 117).

Essa problemática é também abordada por Orlandi (2007, p. 40), ao diagnosticar que “Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições”. Aplicando tal assertiva, tem-se, conforme destaca a autora, que o que funciona no discurso não é o sertanejo visto empiricamente, mas este como posição discursiva produzida pelas relações imaginárias (ORLANDI, 2007, p. 40) ou como estereótipo.

Nesse sentido, encerra-se uma série de imagens e símbolos que foi mobilizada para a produção desse personagem. Assim,

[...] Sertanejo não é o portador de uma identidade ou cultura particular. Também não é um tipo de personalidade, nem o habitante de uma determinada região. Sertanejo não é pessoa, mas personagem principal de uma narrativa dramática sobre a nação. Como personagem de uma história dessa magnitude, seus feitios, caráter e maneiras servem de propósitos descritivos no cotidiano (SUÁREZ, 1998, p. 34).

Entre os diversos discursos construídos, talvez, nas expressões de Euclides da Cunha em Os Sertões, sejam encontradas algumas das referências mais persistentes da representação dominante do sertanejo. Ele refere-se ao tabaréu, ao sertanejo, ou homem do sertão e aos rudes patrícios do sertão. Entre vários, um entrevistado ratifica a associação do sertão a Euclides da Cunha ao afirmar: “[...] sertão para mim, numa visão mais poética, é esse lugar onde a vida é difícil, então, para mim, o sertão e o sertanejo seriam bem esses que Euclides da Cunha escreveu”.158

Rodrigues (2001, p. 111) refere-se a tal recorrência na pesquisa por ela realizada ao verificar que “[...] todas as pessoas, ao tentarem definir o „sertanejo‟, usaram os vocábulos: força, coragem e resistência; e a maioria citou a frase do escritor Euclides da Cunha: „O sertanejo é, antes de tudo, um forte‟”. Embora tal referência também tenha sido marcante na pesquisa desenvolvida, a multiplicidade de representações encontradas suplantou tal ênfase, conforme poderá ser observado nas análises subsequentes.

É inquestionável que, por meio de múltiplos dispositivos e práticas, foi-se fabricando uma imagem, foi-se estabelecendo um jeito para o sertanejo, que definia suas características e as nomeava. Essas nuances se tornam particularmente interessantes, ao se pensar que, na maior parte das vezes, os sertanejos são definidos e, portanto, representados, mais do que se definem. São os outros que dizem sobre eles e, por consequência, eles também terminam por definirem-se e produzirem-se em consonância com tais representações oriundas dos “de fora”.

Com a força que as imagens têm de construir sentidos, conformou-se no âmbito do simbólico, as tensões que viriam a marcar a caracterização desse tipo brasileiro.159 Vasconcelos (2007, p. 25) adverte que “É a repetibilidade e a visibilidade em excesso de algum traço/marca de um determinado povo ou sujeito colonial que dá validade à construção do estereótipo e produz um efeito de verdade em uma idéia estabelecida sobre o outro”. Entretanto,

[...] os modos de representação variam intensamente no que se refere à valorização positiva ou negativa do homem e da vida do interior, desde a afirmação de elementos como força, autenticidade e comunhão com a natureza, bastante enaltecidos na literatura romântica, até o retrato negativo e sombrio que aparece em vários textos de Saint-Hilaire a Monteiro Lobato, e, até mesmo, de Euclides da Cunha, apesar da conhecida imagem do sertanejo como um forte, cunhada pelo autor de Os sertões. [...] Para os autores românticos, são mais valorizados os elementos como autenticidade e proximidade à natureza. Já nas representações (neo)naturalista e modernista, o tema da preguiça aparece como o grande elemento distintivo, por mais que posa variar o diagnóstico sobre suas causas (LIMA, 1999, p. 134).

Há, desse modo, um contínuo deslizamento de sentidos na interpretação sobre o ser sertanejo, que não se apresenta como absoluta.

159 Não se intenciona adentrar na discussão a respeito das motivações que permearam a configuração de todas as representações sobre o sertanejo e o homem do interior. Tal aprofundamento desviaria o foco da análise pretendida e, para tal interesse, existe uma extensa literatura que trata da temática. (ABREU, 1998, LIMA, 1999, SUÁREZ, 1998, dentre outros). Interessa-se, neste capítulo, abordar os aspectos que mais fortemente compareceram nos discursos sobre a vinculação entre território/lugar/memória/representações sociais.