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2 EM BUSCA DO SERTÃO

2.2 Sertão como avesso do litoral

[...] Não se tem onde acostumar os olhos, Toda a firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. (ROSA, 1965, p. 239)

Em O enigma de Os Sertões, Abreu (1998) afirma que, no final do século XIX, a melhor definição na linguagem corrente para sertão era interior, o que equivalia a um imenso território pouco explorado, situado costa adentro. De acordo com a autora, os sertões são apresentados como o avesso do litoral, uma vez que

Os relatos da época são unânimes em apontar o total desconhecimento em que vivia a população do litoral com relação ao interior do Brasil que continuava pouco habitado, com comunicações precárias e ainda sem mapas de boa qualidade que descrevessem o curso dos rios, a geologia, o relevo, a flora, a botânica da região e muito menos as características dos agrupamentos populacionais (ABREU, 1998, p. 165, grifo da autora).

Em pesquisa que, entre outros objetivos, buscava identificar o modo como os escritores e cronistas contemporâneos a Euclides da Cunha enfocavam a temática do sertão e

do interior, a autora assegura que a oposição entre litoral e interior era basicamente caracterizada pelo fato de o primeiro ser mais densamente habitado, mais desenvolvido, concentrando as atividades econômicas de ponta, enquanto o segundo era geralmente associado a atraso e pobreza. Para Abreu,

[...] essa oposição tinha explicações de ordem histórica, relativas ao modelo de colonização implantado no país. Para um território descoberto por povos vindos de além-mar, era o mar, até pelo menos meados do século passado [referindo-se ao século XIX] a referência central (1998, p. 166).

É nesse sentido que, mais do que um espaço determinado e delimitado, o sertão se configura como uma ideia, uma construção discursiva e a “[...] sua diferença em relação ao litoral se define antes pelo contraste entre fases históricas diversas do que por diferenças geográficas significativas” (VASCONCELOS, 2002, p. 3). Por conseguinte,

[...] Lido nessa chave, importaria mais a contraposição ou superposição, em um mesmo território, de diferentes temporalidades, camadas temporais distintas, mas coetâneas do que a distância a separar interior e litoral, vistos como imagens espaciais e simbólicas de dois tipos de organização social e cultural. Daí a persistência da matriz dualista de interpretação da sociedade brasileira, calcada na dicotomia entre a civilização litorânea e a civilização

do interior (VASCONCELOS, 2002, p. 3).

Rodrigues (2001, p. 120), confirmando tal entendimento, assinala que, a despeito da literatura brasileira ser, após a campanha de Canudos e a publicação do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, fortemente marcada pela visão dual sertão versus litoral, essa visão não teve seu nascimento com essa obra, uma vez que ela já se fazia presente na literatura produzida no período colonial.

Conforme evidencia Lima (1999), o dualismo litoral/interior (sertão) comparece em nosso pensamento social como uma das mais fortes representações do processo de nation

building,62 (LIMA, 1999, p.207):

62 Por nation-building, entende-se o processo de constituição de uma ideia de nação, utilizada na consideração formulada por Anderson (1993), segundo a qual a nação pode ser vista como uma construção simbólica ou como “uma comunidade imaginada”. Este autor pôs em evidência que o nacionalismo é um artefato cultural e não um objeto natural, sendo, portanto, uma ficção constituída historicamente. É também com essa compreensão que García Canclini (1994), em O Patrimônio Cultural e a Constituição Imaginária do

Nacional, insiste em demonstrar como o imaginário discursivo contribui para a concepção e constituição de

uma identidade nacional. Também Carvalho (1990) aborda a questão da mobilização simbólica em torno da consolidação dessas “comunidades imaginadas”. O autor assevera que “[...] É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro. O imaginário social é constituído e se expressa por

Sertão e litoral representam os contrastes de uma sociedade vista como o principal problema a ser investigado, e que foi objeto de diferentes tentativas de interpretação. A idéia de um país moderno no litoral, em contraposição a um país refratário à modernização, no interior, quase sempre conviveu com concepção oposta, que acentuava a autenticidade do sertão em contraste com o parasitismo e a superficialidade litorâneos (LIMA, 1999, p.17).

Lima (1999) detém-se na análise das ambivalências dos aspectos processuais presentes nas interpretações do Brasil, evidenciadas pela ênfase nos contrastes entre um polo atrasado e um polo moderno, metaforicamente associados às ideias de litoral e sertão. Essa visão dual estabelece-se na prática e reafirma aspectos mencionados por Chauí (2000) como uma dualidade que dá origem a uma tese de longa persistência, a dos “dois Brasis”, reafirmada com intensidade pelos integralistas dos anos 1920 e 1930, quando opõem o Brasil litorâneo, formal, caricatura letrada e burguesa da Europa liberal, e o Brasil sertanejo, real, pobre, analfabeto e inculto (CHAUÍ, 2000, p. 67). Essa controvérsia sobre os “dois Brasis”, que mobiliza adeptos e críticos em diversos momentos do debate intelectual sobre o país, em determinadas análises se reduz a uma dualidade discursiva, que opõe sertão e litoral e obscurece as diversas contradições que compõem a temática.

Para Da Matta (1998, p. 17), “[...] A construção de uma identidade social [...] como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões”. É assim que a dualidade sertão/litoral, constituída paradoxalmente de afirmativas e negativas, apresenta duas faces:

ideologias e utopias, sem dúvida, mas também por símbolos, alegorias, rituais, mitos [...]. Na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem também plasmar visões de mundo e modelar condutas” (CARVALHO, 1990, p.10-11). Arruda (2000) também aborda o imaginário discursivo e o sentido do nacional e da identidade especificamente enfocando o sertão.

Numa delas, o pólo negativo é representado pelo sertão – identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação. Em muitos autores, entre os quais a posição de Euclides da Cunha é exemplar, a ambivalência consiste na principal característica da representação que constroem sobre o país e seus contrastes (LIMA, 1999, p. 60).

As afirmativas e negativas, presentes na construção do pensamento contemporâneo sobre a formação da identidade nacional, edificam as imagens dos espaços geográficos, instituem determinados horizontes espaciais coletivos, tais como mencionados por Moraes (2005a), e, nesse aspecto, a configuração de dadas superfícies discursivas constroem a tessitura de uma narrativa que realça e produz uma dizibilidade sobre o sertão com base em uma visão dicotômica da realidade social. É nesse sentido que os sistemas simbólicos, expressos por Bourdieu (2007), conferem distinção e ordem ao espaço social, arrumando-o, classificando-o.

Por mais que seja necessário evidenciar os aspectos duais que marcaram e ainda marcam os discursos acerca de sertão, torna-se necessário, mais uma vez, realçar a compreensão dessas representações, considerando a sua pluralidade de sentidos. Assim, ao abordar tais dualidades, não significa estabelecer uma concordância com elas; intenciona-se apresentá-las, já que instituem um imaginário social que também se configura na memória e nas representações dos sujeitos sociais contemplados ao longo da pesquisa.