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Movimento 3. Atenção à crise e o apoio matricial na perspectiva da Atenção Psicossocial: o

3.2. Fluxo, recursos e estratégias: o cardápio de ofertas da atenção à crise, dificuldades,

3.2.5. A intervenção medicamentosa

Voltando ao fluxo de atendimento da crise...

Além do acolhimento, do horário estendido, da estratégia da avaliação de risco do usuário, do encaminhamento e da internação, a intervenção química medicamentosa é indicada como um dos recursos importantes na intervenção à crise, devendo, a depender da situação, ser administrada, “o mais rápido possível”. Em caso de inquietação psicomotora, agitação e impulso de agressividade, situações de intercorrência e/ou grande resistência do usuário ao uso da medicação oral que configure uma situação de urgência/emergência, medica-se com injetável. A esse procedimento emergencial é dado, no Serviço, o nome de “urgenciamento”. Nestas situações de intercorrência que necessitem do uso de esquema urgência, a referência é o médico. O “urgenciamento” se faz através de orientação médica.

Uma ressalva feita é a de que, contando com o vínculo, o acolhimento e a abordagem verbal, nem sempre as situações de intercorrência desembocam em intervenções medicamentosas de urgência. Outro aspecto destacado pela equipe nos momentos de intercorrência é a participação coletiva dos trabalhadores. Como diz um deles: “nessa hora, todo mundo ajuda, desde o auxiliar de limpeza até a gerente . . . A gente conta com a equipe toda: o administrativo, o vigilante, o motorista, o técnico de enfermagem, os profissionais de nível superior . . . Num momento de agitação maior todo mundo interfere em parceria . . . a gente nunca deixa um profissional só”. Vê-se, aqui, uma face da crise como força agregadora. Ou seja, crise também agrega atores, produzindo tessitura de redes horizontais de solidariedade, nesse caso, entre os cuidadores do CAPS.

Esse pensamento que dá visibilidade à face agregadora da crise como força capaz de tecer redes de solidariedade também pode ser estendida para inscrever a participação ativa dos usuários e de outros serviços além do CAPS, desenhando um tipo de cuidado marcado por uma gestão coletiva e, agora, longitudinal das crises. Isso se distancia dos modos de subjetividade conservadora dos especialismos que coloca o psiquiatra no centro da atenção à crise, tão característicos da lógica manicomial.

Experimentando momentos em que os especialismos são desfeitos e ações coletivas emergem, identificamos, assim, outra fonte instituinte no Serviço que também tenciona e rompe com um plano instituído da visão de crise como algo perigoso, que impõe riscos, medos e é pautada na lógica dos especialismos – em que só o psiquiatra tem a chave de acesso legítima e segura – operando pela abertura ou fortalecimento de um modo de cuidado psicossocial, deslocado da verticalidade, das centralizações e rigidez manicomiais. Em vez disso, aqui vê-se que a experimentação do compartilhamento de conhecimentos, experiências, saberes e práticas.

Abrindo uma discussão sobre a utilização do recurso medicamentoso, fica sinalizada pela equipe a importância da medicação na atenção à crise, especialmente nas situações de intercorrência que requisitam atendimentos de urgência. Fica revelado que, apesar de importante, o recurso de medicação não figura como estratégia exclusiva ou isolada. Nesse sentido, tal como identificou Fontenelle (2010) em pesquisa sobre a atenção à crise no interior de Pernambuco, trabalhadores sinalizam para uma compreensão de cuidado mais larga do que a exclusiva administração medicamentosa, conectando-se com o que ressaltam Dell‟Acqua e Mezzina (2005) e Costa-Rosa (2000), de que a utilização de psicofármacos deve ser considerada apenas uma, dentre tantos outros recursos terapêuticos frente à crise. Ou seja, de que o uso da intervenção medicamentosa deve fazer parte de uma estratégia mais ampla, centrada no PTS e não na simples eliminação de sintomas (Saraceno, 2001).

A partir dessa perspectiva psicossocial apresentada pelos autores, entendemos que os psicofármacos não apresentam um valor terapêutico em si. Em vez disso, devem ser utilizados cautelosamente como meio de favorecer certa redução da angústia que facilite o manejo das relações em prol de potencializar o cuidado iniciado desde os primeiros momentos de tentativas de vinculação inicial com a pessoa em crise, antes mesmo da entrada da medicação em cena. Para nós, isso indica, em ato, a tal suspenção da doença em prol do sujeito, tal como defendeu Basaglia (1985).

Além de não circunscrever a atenção à crise exclusivamente na utilização de psicofármacos, revela-se, ainda, algum nível de cuidado com o que Lima et al. (2012) chama de um “uso mandatório da medicação” (p. 431), através da aposta nas tecnologias leves do diálogo, do acolhimento, das tentativas de acordo e participação do usuário. Nesse sentido, fica sinalizada uma abertura para que o usuário possa interferir nas negociações que envolvem as prescrições e o uso das medicações. E, tomando esse vetor de análise, vê-se sintonia com o que propõe a Estratégia Atenção Psicossocial, tal como pensaram Costa-Rosa e Yasui (2008), quando identificam na participação dos usuários uma forma de saírem da condição de objeto, um meio de se reposicionarem subjetivamente.

Apesar desses pontos de sintonia com a Eaps, um aspecto conflitante destacado pela equipe diz respeito ao modo como a medicação é administrada na relação dos profissionais com os usuários, sendo conduzida tanto na forma de “enrolar para medicar”, como assinala um trabalhador, quanto, na medida do possível, um modo acolhedor e pactuado, de forma que o usuário seja informado sobre o procedimento a ser realizado e haja tentativa de negociação e acordo. Expressando o segundo posicionamento, comenta um trabalhador: “. . . nesses momentos a gente prepara o usuário, diz o que vai fazer . . .”. Na avaliação de uma trabalhadora, “. . . os usuários percebem que o acolhimento aqui é diferenciado. Não há uma imposição, tudo é entrar em acordos”.

Em um dos momentos da restituição, essa polarização conflitiva e reveladora de jogo de forças instituídas e instituintes em operação – entre “enrolar para medicar” e manejar com a medicação de forma clara e pactuada com o usuário – foi geradora de um forte incômodo na equipe, configurando um momento tenso da restituição. Ao se deparar com o “enrolar para medicar”, iniciou-se um movimento, em parte da equipe, de negar a fala enquanto representativa de uma prática do Serviço. Desse lado, a equipe se defendia dizendo não se reconhecer nessa fala, abrindo uma barganha pela troca do termo “enrolar” por algo mais suave. De outra parte da equipe, porém, aludiu-se para as situações em que, para fazer com que alguns usuários mais resistentes usem a medicação, dizia-se que se tratar de uma vitamina ou algo do gênero – conduta que se opõe e disputa com a clareza e o tipo de pactuação mencionados.

O realce da rapidez na forma de administração da medicação anteriormente indicado através da expressão “o mais rápido possível” é outro ponto que nos convida à análise. De acordo com Ferigato et al. (2007), “toda relação com o paciente em crise exigirá uma urgência de ação” (p. 36). Ao mesmo tempo, as autoras cuidam em chamar a atenção de que o requisito dessa urgência de ação na crise pode, se não devidamente e complexamente recepcionado, tornar-se gerador de uma ânsia de respostas imediatas comprometedora de uma postura de cuidado de escuta (Ferigato et al., 2007). Concordando com o pensamento das autoras, sinalizamos para a importância de “. . . desmistificar o momento da crise como uma situação ruim que deve ser bloqueada e controlada com a maior rapidez possível” (Ferigato et al., 2007, p. 43). em vez disso, pensando com as autoras, defendemos que se possa, no cuidado, investir no potencial transformador e criativo que os momentos de crise carregam.

Tomando a fala “o mais rápido possível” como um analisador, entendemos que, se por um lado ele pode expressar uma postura de prontidão para cuidar das acentuações e intensificações das crises, pode indicar, ao mesmo tempo, essa lógica de que a crise é algo

somente negativo, a ser rapidamente controlada ou suprimida. Acompanhando o pensamento de Knobloch (1998), citado pelas autoras, entendemos que quando a finalidade da ação é simplesmente, e com rapidez, tirar a pessoa da crise, silenciando as manifestações sintomáticas agudas, tira-se, ao mesmo tempo, pela imposição de um tempo cronológico, a oportunidade que a crise desencadeia, pelo seu potencial transformador e criativo, para a promoção de mudanças e novos processos de subjetivação, num tempo de acontecimento.

No princípio já anunciado de tomada de responsabilidade, poder lidar com a dimensão do tempo do sujeito no atendimento à crise é fator de muita relevância enquanto elemento distanciador das práticas asilares, cujo tempo que se faz valer é sempre o do serviço: um tempo voltado aos interesses institucionais e não aos dos usuários. Assim também reflete Goldberg (1989), quando avalia a importância para o sujeito de se “. . . aguardar o momento mais propício a intervenções . . .” (p. 37), como uma postura de cuidar para que estas intervenções “. . . façam algum sentido para o paciente, sem perder de vista que se trata de um sujeito e que o nosso trabalho pode vir a diminuir um sofrimento e dar um caminho . . .” (Goldberg, 1989, p. 37). Deve-se dar tempo para que o sujeito apareça, emerja (Elia, 2013).

Na mesma direção, entendendo o sintoma como uma tentativa aflita de dar sentido a uma experiência psíquica, Corbisier (1992) defende que ele possa ser escutado, não abolido, “. . . subvertendo a ordem estabelecida de que emergência psiquiátrica é sinônimo de pronto rápido atendimento” (Corbisier, 1992, p. 11). A perspectiva da erradicação de sintomas, tipicamente manicomial, está conectada a uma concepção da loucura como erro e desvio de um suposto estado de normalidade, como alienação mental, desenhando, assim, uma postura de reparação e não de abertura à reinvenção, à singularização.

No lugar de pronto-rápido atendimento, usualmente manejada através de medicação e contenção, a autora defende, como postura antimanicomial, que se tenha urgência em não responder rapidamente. Em vez desses operadores, que se possa “. . . mediar as crises com

perguntas que, muitas vezes, diluem a urgência de uma resposta-tampão, transformando-as em pedidos de ajuda . . .” (Corbisier, 1992, p. 12), em um tipo de pronto-escuta, pronto- disposição para os excessos, pronto-continência.

Nesse sentido, importa realçar o apontamento feito pela equipe, de que nem sempre as situações de intercorrência no Serviço desembocam em intervenções medicamentosas de urgência, especialmente quando mediadas pelo vínculo, pelo acolhimento e pela abordagem verbal – recursos que operam em linha do tempo bem particular. Esse é um dado importante que a equipe revela como força instituinte capaz de tensionar e desmantelar a visão tradicional psiquiátrica, já indicada quando discutimos o uso da internação psiquiátrica, que associa crise e risco e convoca-nos a pensar a atenção à crise como um chamado de urgência. Esse tipo de mediação configura um tipo de intervenção que, de acordo com Corbisier (1992), possibilitaria fazer emergir das situações de crise sua real urgência, desfazendo o que Paulon et al. (2012) aponta como um “foco míope” de efeitos de invisibilidade nas demandas das crises, tipicamente presentes, por exemplo, nos serviços de emergência psiquiátrica.

Desse modo, chamamos atenção para o referido “urgenciamento” naquilo que ele possa apontar para condutas de pronto-rápido atendimento, especialmente quando atentamos para o fato de que a agilidade pode, muitas vezes, ser viabilizada como um meio de manejar e conter qualquer ato que implique risco, na perspectiva de “. . . anestesiar um futuro imprevisível, de maneira a não caotizar o cuidado” (Paulon et al., 2012, p. 77). Importa relembrar aqui que o modo de lidar e manejar as situações sentidas como de riscos se revelou no Serviço como um componente determinante da forma de recepcionar os momentos de acentuação, intensificação, agudização da crise, traduzindo-se como desafio aos trabalhadores. Lidar com os riscos e com as imprevisibilidades das crises se coloca como um desafio imposto pelo próprio modelo psicossocial, quando concorre pelo cuidado em liberdade.

Com isso, não estamos negando a importância de se agir com certa brevidade em situações de crise como as acima apontadas. Como já dissemos, isto também indica prontidão, disposição, responsabilização, principalmente quando se reconhece que elas são porta vozes de sofrimentos e dores que possuem suas urgências. O que está sendo proposto é uma cautela com as demandas de agilidade de supressão de sintomas, naqueles momentos mais críticos, funcionando em favor, inclusive, da advertência feita por Nicácio (1990), qual seja: “a equipe não entrar em crise quando alguém está em crise” (p. 6). Para isso, seria preciso “. . . suportar a angústia de um paciente em sofrimento agudo sem acelerar intervenções” (Elia, 2013, p. 133).

Esse tipo de cautela não se confunde com um estado de contemplação e paralisação, como oportunamente nos lembra Costa (2007) diante das intensidades da crise. Em vez disso, proporciona uma reflexão que questiona a serviço de que, ou de quem, se opera nestas situações e tempos: se de produção de vida nos usuários, ou se de reprodução de lógicas e ideais de normalização e docilização da vida. Em acordo com Ferigato et al. (2007), reforçamos a proposição de uma nova ética para o atendimento à crise em que, para além das preocupações de agilidade com a supressão da sintomatologia expressa no momento de crise, seja oportunizado um cuidadoso investimento em seu potencial transformador e criativo.

Um questionamento balizador que estas autoras nos sinalizam, e que nos auxilia a analisar continuamente a proximidade ou o distanciamento que na práxis da atenção à crise produzimos em relação a esta ética é: “. . . a quem de fato estamos atendendo: se estamos contribuindo para que o sujeito, num estado de profundo sofrimento, possa causar um desvio em sua vida ou se estamos respondendo aos ideários sociais de ordem . . .” (Ferigato et al., 2007, p. 43), de adaptação, de equilíbrio, de docilidade e de normalidade.

Acompanhando esta ética proposta, operar pela produção de desvios nas vidas das pessoas em crise inclina-nos às relações em que o poder é passível de negociação e concessão.

Somente desta forma elas podem, no cuidado, ser geradoras de autonomia e vida. Vislumbrando alargar essa discussão, demoraremos um pouco mais na discussão do “urgenciamento”.