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Tecendo o mapa de constituição do Modo Psicossocial

Movimento 1. O campo da Atenção Psicossocial: por um Paradigma Psicossocial

1.3. O Modo Psicossocial: traindo o Modo Asilar e se constituindo como um Paradigma

1.3.1. Tecendo o mapa de constituição do Modo Psicossocial

Como se pode identificar, o que aqui denominamos de Modo Psicossocial, em referência a um paradigma, se ancora na experiência de desinstitucionalização italiana, colocando-se como uma proposta efetiva para desinstitucionalizar o paradigma psiquiátrico (Costa-Rosa et al., 2003). Segundo seu propositor, este paradigma veio surgindo de diferenciações operadas nas práticas do paradigma Asilar, “. . . primeiro simplesmente por meio das críticas, tanto a sua dimensão ideológica quanto teórico-técnica; depois por meio do exercício de outras possibilidades práticas . . .” (Costa-Rosa, 2000, p. 150). Trata-se, portanto, de um paradigma que veio se colocando, de forma afirmativa, através de outras possibilidades práticas (Yasui & Costa-Rosa, 2008).

As diferenciações produzidas nas práticas foram sendo compostas, em princípio, sob forte inspiração das experiências de Reforma de outros países16. Tributa-se a elaboração das práticas do Modo Psicossocial a diferentes movimentos sociais e científicos, assim como a vários campos teóricos, ainda que, como assinala Costa-Rosa (2000, pp. 142-151), muitas vezes essas contribuições passem sem a devida advertência para os trabalhadores, que “. . . as obtêm, pela via indireta, já incorporadas nos modelos importados . . .”. São contribuições advindas de diversas experiências históricas de reformas internacionais, tais como: a Psiquiatria de Setor francesa, a Psiquiatria Comunitária americana, a Antipsiquiatria, a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria Democrática italiana. Esta última, como discutimos anteriormente, oferta uma das principais contribuições norteadora para o campo da Atenção Psicossocial com o movimento da desinstitucionalização (Costa-Rosa et al., 2003).

Segundo seu propositor, a compreensão mais ampla da complexidade do Modo Psicossocial convida a incursões: pela grade conceitual da Análise Institucional; por modelos

16 Não é propósito deste texto fazer uma incursão histórica sobre as experiências internacionais de Reforma, mas utilizaremos noções de algumas dessas experiências que nos parecem fundamentais para o pensamento aqui traçado. Para um maior aprofundamento desse percurso, sugerimos ver Amarante (1995) e Yasui (2010).

teóricos da constituição subjetiva (Costa-Rosa, 2000); pelas experiências locais dos serviços substitutivos e seus elementos teórico-práticos subjacentes – embasados em ideias sociológicas e psicológicas, na Psicanálise, no Materialismo Histórico, na Filosofia da Diferença; pelas contribuições das políticas públicas (Costa-Rosa et al., 2003). A complexidade do Modo Psicossocial reflete, portanto, um campo multidisciplinar e de interinfluência interdisciplinar em que esse paradigma está mergulhado.

Pelas nossas influências filosóficas, teóricas e epistemológicas, evidencia-se nesta tese que, desse campo de interinfluência, nos aproximamos e dialogamos especialmente com os conceitos da Análise Institucional17 e com alguns dos pensamentos18 inscritos pelos filósofos da diferença, dentro de suas conexões com outros autores. Tal aproximação se deve à nossa identificação de uma oferta teórico-prática bastante fértil e oportuna desses campos de saberes ao Paradigma Psicossocial, do qual estamos nos ocupando.

Como exemplo dessa oferta, basta recordarmos e destacarmos como o conceito de instituição - distanciado de seu sentido mais comum de organização - nos abriu uma perspectiva de compreensão e análise da lógica asilar, especialmente atravessada na organização hospitalar psiquiátrica mas, que, como lógica de saberes invisíveis, transpassa e se faz presente em nossa intimidade psíquico-existencial. Podemos aprofundar essa análise recorrendo outra vez à importância da ideia da transvaloração nietzschiana apresentada por Paulon (2006), em conexão direta com o princípio da desinstitucionalização, tão cara ao Paradigma Psicossocial e, mais que isso, o convite à inventividade que emerge frente à trilha desconstrutiva do Paradigma Psicossocial em cena, que tem como horizonte a defesa da afirmação da diferença enquanto direito à desrazão, como vimos.

17 O conceito de instituição já discutido, o de instituído e instituinte, o de institucionalização e o de análise de implicação, que serão tratados mais à frente de modo que apontem para essa aproximação e diálogo estabelecidos com a perspectiva da Análise Institucional.

18 Destacamos, desses pensamentos, a noção de transvaloração, de traição e a do niilismo, explicitados, a afirmação da diferença, a indicação de um paradigma ético-estético e a ética da singularização, que serão abordados na próxima seção.

Costa-Rosa (2000) nos faz lembrar, ainda, que as formulações acerca da constituição subjetiva têm tido contribuições da psicanálise e da esquizoanálise em suas formulações em prol de novas formas de subjetivação pelos processos de singularização. No seguimento da próxima seção, na medida em que formos introduzindo algumas premissas do Paradigma Psicossocial, outras explicitações do conjunto de ofertas desses campos a este paradigma serão sinalizadas.

Partindo agora para uma breve recorrência histórica, vemos que o termo psicossocial carrega a herança da Psiquiatria Comunitária americana, que, por sua vez, já o transpõe das discussões da Medicina Comunitária19 para o campo da Reforma Psiquiátrica. Naquele momento, entretanto, que coincide com o pós II guerra mundial, esse termo, dentro da Psiquiatria Comunitária, tinha como pretensão apenas “. . . incorporar aspectos psíquicos e sociais aos aspectos biológicos do paradigma e do objeto da psiquiatria” (Costa-Rosa et al., 2003, p. 18). Segundo analisam os autores, dentro da experiência da Psiquiatria Comunitária e de outras, como a Comunidade Terapêutica e a Psiquiatria de Setor, o termo Psicossocial ainda não lograva a busca por uma transição paradigmática (Amarante, 1995; Costa-Rosa et al., 2003) que, posteriormente, pela influência de outras experiências de Reforma de crítica mais radical, a exemplo da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrática, veio a lograr, recebendo estatuto de um novo paradigma (Costa-Rosa et al., 2003).

De toda forma, o fato de que tais experiências vão imprimindo bifurcações no Movimento de Reforma Psiquiátrica internacional e engendrando transformações e que deixam marcas tenazes no objeto da psiquiatria. Isso tem correspondências20 no contexto da Reforma brasileira, que vai incorporando suas inovações principais e recebendo elementos “.

19 Os Projetos da Medicina Comunitária, assim como da Medicina Integral, Preventiva contrapunham o caráter fragmentário das ações médicas e propunham a integração da dimensão social presentes na produção das enfermidades (Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2008).

20 A partir da década de 1980, o termo psicossocial passou a ser utilizado no Brasil para designar novos dispositivos institucionais – CAPS e NAPS – que aspiravam outra lógica de funcionamento, outro arcabouço teórico-técnico e outra ética, todos distintos dos que pautavam o paradigma asilar (Costa-Rosa et al., 2003).

. . tanto em termos teóricos e técnicos, quanto ideológicos e éticos, aptos a constituírem um novo paradigma para as práticas em Saúde Mental . . .” (Costa-Rosa et al., 2003, p. 14). Ou seja, daquelas marcas e desses elementos, vão sendo configuradas as bases para a construção do novo paradigma das práticas em Saúde Mental, o chamado Modo Psicossocial, que, recebendo estatuto de paradigma, aspira transpassar o paradigma psiquiátrico (Costa-Rosa et al., 2003).

Mas não só dessas referências se compõe o Paradigma Psicossocial. Sabe-se haver uma estreita vinculação entre o Movimento de Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Reforma Sanitário brasileiro, na medida em que “Ambos tratam a saúde como uma questão revolucionária, no eixo da luta pela transformação da sociedade” (Costa- Rosa et al., 2001, p. 13) e são pensados como um processo civilizatório que implica transformação de valores. Nesse sentido, convém lembrar que a mudança de paradigma almejada nas práticas em saúde mental não faz parte de uma agenda específica deste setor. Analisa-se que “. . . ela se inclui no conjunto de transformações práticas que têm como prioridade a construção do SUS no contexto da Reforma Sanitária” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 30).

Pela estreita vinculação dos dois movimentos, princípios de sustentação da reforma sanitária – universalidade, acessibilidade, igualdade, equidade, integralidade, descentralização, municipalização, intersetorialidade e controle social – são compartilhados pela Atenção Psicossocial (Yasui, 2009). E, pela sintonia das concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária Yasui e Costa-Rosa (2008) entendem que o Paradigma Psicossocial se associa ao Paradigma da Produção Social da Saúde, elaborado por Mendes (2006), em que a noção de saúde é tomada como um estado que se constitui a partir e como produto de uma maneira de se conduzir a vida em seus diversos aspectos físicos, psíquicos, sociais, econômicos, culturais e ambientais (Yasui e Costa-Rosa, 2008).

Indo além das especificidades da saúde mental, a partir de uma crise mais ampla na saúde brasileira, o que estava em questão era o modelo médico hegemônico, epistemologicamente ancorado no paradigma flexneriano que sustentava um modelo de atenção médico que prescrevia “. . . um modo de organização das práticas de saúde, caracterizadas por atividades curativas, individuais, assistencialistas e organizadas em especialidades” (Yasui e Costa-Rosa, 2008, p. 30). Sair dessa crise implicava superar a racionalidade desse paradigma, operando um deslocamento desse modelo médico para o modelo de atenção à saúde, expressão do Paradigma da Produção Social da Saúde (Mendes, 2006).

Atendendo àquela compreensão da noção de saúde, o paradigma da produção social da saúde vai pressupor, em vez de práticas individuais e organizadas em especialidades, “. . . o planejamento das ações de Atenção de modo integral, baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas de saúde . . .” (Yasui e Costa-Rosa, 2008, p. 30).

Assim, a partir do exposto, vê-se que o Paradigma Psicossocial se configura a partir de um corpo amplo de conhecimentos e campos do saber acerca do humano em intenso diálogo. Após termos indicado os elementos constitutivos desse corpo, passaremos a explicitar suas principais premissas e, a partir delas, como se desenham as práticas de atenção em saúde mental ancoradas no Paradigma Psicossocial.