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Transmutando o horizonte dos efeitos das práticas de atenção: outras implicações

Movimento 1. O campo da Atenção Psicossocial: por um Paradigma Psicossocial

1.4. Premissas do Modo Psicossocial e as práticas de Atenção Psicossocial

1.4.2. Transmutando o horizonte dos efeitos das práticas de atenção: outras implicações

Partindo do pressuposto de que não se transforma modos de viver e sentir sem coparticipação, mudam-se e são ampliadas as finalidades socioculturais para que concorrem as ações dos serviços. Pode-se afirmar que o que se visa no Modo Psicossocial é um reposicionamento do sujeito a partir de um trabalho de implicação subjetiva e sociocultural,

que supõe tomar contato ou se apropriar com o desejo, e que o possibilite se situar de modo ativo frente aos conflitos e contradições que o atravessa (Costa-Rosa et al., 2003). Se aposta que o sujeito do sofrimento, “. . . em vez de apenas sofrer os efeitos desses conflitos, passe a se reconhecer, por um lado, também como um dos agentes implicados nesse sofrimento; por outro, como um agente da possibilidade de mudança” (Costa- Rosa, 2000, p.155).

Tamanha é a importância que se dá ao engajamento subjetivo e sociocultural que se considera, no Modo Psicossocial, como indissociável da própria concepção de saúde mental (Costa-Rosa et al., 2001). Assim, esses autores defendem a perspectiva de uma terapêutica cidadã, com seus efeitos de aumento de contratualidade.

O trabalho de implicação subjetiva e reposicionamento do sujeito são considerados por Costa-Rosa (2000) como um elemento essencial de inversão nas formas de cuidado do Modo Psicossocial, em relação às formas do Modo Asilar, na medida em que, supondo a apropriação das relações sujeito-desejo do eixo carecimento-ideais, contrapõe-se ao elemento da objetificação e ao binômio carência-suprimento, típicos da gramática asilar. Isso porque, apoiados em Costa-Rosa et al. (2003), entende-se que o carecimento abarca a dimensão do desejo, devindo abertura para o campo dos ideais, indo além, portanto, apenas do preenchimento das necessidades, da relação carência-suprimento (Costa-Rosa et al., 2003). Assim pensado, o carecimento pode ser fonte potente de busca por deslocamento e mudança, liberdade, escolha, enquanto a carência, operando no plano da falta, da necessidade, pode produzir subserviência e não potência.

O trabalho de implicação subjetiva e reposicionamento do sujeito é uma inversão fundamental das práticas de Atenção Psicossocial, afinal, concordando com os autores já citados, entendemos que “ninguém trabalhará na subjetividade à revelia do sujeito, a não ser para a produção de efeitos de destituição subjetiva” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 20). Importa ressaltar, entretanto que, conforme ressaltam os autores: “sair da posição de objeto exigirá um

exercício rotineiro nos vários aspectos da práxis concernente ao novo paradigma” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 33). Nesse sentido, importa dizer que esse trabalho de implicação não é dirigido apenas aos usuários, mas à família, ao grupo social e aos trabalhadores, na busca de que “. . . tanto uns quanto outros possam assumir a parte do seu compromisso na atenção e no apoio” (Costa-Rosa, 2000, p. 155). Isso como meio de fomentar novas formas de sociabilidade, como forma de multiplicar as relações e como alternativa de operar desinstitucionalização.

Desse modo, usuário, família e comunidade, além dos próprios trabalhadores, são agentes fundamentais das mudanças almejadas, já que a transformação dos sujeitos e do seu entorno, possibilitadoras de enriquecimento da existência global e concreta das pessoas, só podem ser viabilizadas de forma conjunta. Pensando nessa direção, a presença de pessoas não profissionais nos espaços de cuidado é lembrada por Rotelli (2001) como um elemento que impulsiona o trabalho de desinstitucionalização e a construção de novas formas de sociabilidade. Assim, vemos surgir outra característica das práticas de Atenção Psicossocial: a sua abertura e diálogo com a comunidade, ou a sua não interioridade em relação a ela. Mais à frente do texto, aprofundaremos essa característica.

As formas de participação da família e do grupo social, entretanto, devem ser superadas das condutas assistencialistas, caraterísticas das formas de Atenção Asilar (Costa- Rosa, 2000). As associações de usuários e familiares, suas participações em conselhos gestores dos serviços e em outros espaços de protagonismo social - como o Movimento da Luta Antimanicomial e as Conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde - exemplificam alguns dos tipos de participação que se busca conquistar nas práticas de Atenção Psicossocial, como via de garantir o exercício do controle social, da contratualidade e a ampliação dos espaços de circulação social, dos territórios relacionais, das trocas sociais, das sociabilidades, da reprodução social, expandindo, assim, vidas e promovendo saúde.

Promover ativamente essas possibilidades, pondo em prática o exercício das formas de participação, é uma missão dessas práticas.

Já dissemos que a remoção de sintomas, a recuperação e a cura não são os horizontes das práticas de Atenção Psicossocial. Em seus lugares, a reinserção22social e a reabilitação psicossocial funcionam como um de seus horizontes, por isso é dado ênfase às formas de resgate da cidadania outrora roubada pelo sequestro asilar e por meio, além dos espaços indicados no parágrafo anterior, das cooperativas de trabalho, das empresas sociais, dos Centros de Convivência, das Residências Terapêuticas, do trabalho no imaginário social negativado da loucura. As práticas de Atenção Psicossocial se expressam em ações de cuidado que primam pela (re)invenções de biografias, com forte investimento nos processos de singularização, no exercício da autonomia, da contratualidade, em ações de suporte social. São esses, alguns veículos possibilitadores da tessitura da reinserção social e da reabilitação psicossocial – metas fundamentais do projeto de Reforma.

Sobre a reinserção social já tivemos oportunidade de nos colocar. Agora abrimos um parêntese para situar o que estamos concebendo por reabilitação psicossocial. Sabe-se que muitos sentidos e usos do termo se têm feito e encontrado, porém aqui não nos cabe a tarefa de tentar esgotá-los. Para deixar marcado a nossa compreensão, entretanto, importa dizer primeiro que, embora não desconsideremos a sua relevância, tomamos como referência uma compreensão que vai além de um de seus sentidos mais instrumental, que se refere a um conjunto de meios e técnicas que se desenvolve a fim de maximizar formas de recuperação de pessoas com problemas severos e persistentes de saúde ou que sofreram efeitos desabilitantes

22 Semanticamente, apesar de o termo reinserção guardar um sentido de retorno e repetição de algo, quando nos referimos a ele não tomamos o prefixo re- como indicador de uma inserção reparadora ou nostálgica de retornar para o mesmo lugar ou posição. Antes, pelo contrário, compreendemos que a ideia de reinserção implica em transformação, em produção de diferença, em ampliação de vida. Repetição não necessariamente é reprodução, ensinou-nos Deleuze em Repetição e Diferença (2006). Nesse sentido, utilizamo-lo conectado ao princípio de desinstitucionalização. Ainda assim, em algumas vezes, optamos pela utilização do termo inserção, intencionando alargar o sentido almejado, referenciando situações que não dizem respeito a inserir outra vez, mas, pela primeira vez, inaugurar uma ação.

da cronificação, por efeito de tratamentos tradicionais, minimizando seus efeitos através do desenvolvimento de insumos individuais, familiares e comunitários.

Esta é a conceituação da Organização Mundial da Saúde (como citado em Pitta, 2001), que margeia um sentido quase ortopédico, de conserto de disfunções, de recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade, buscando retorno ao funcionamento “normal”. Por esse motivo dissemos que fomos além.

Sem desconsiderarmos a utilidade pragmática que essa compreensão facilita, buscamos nos aproximar de autores que pensam a reabilitação psicossocial não tanto como técnica, mas fundamentalmente como ética (Saraceno, 2001), no sentido de fazer disparar um processo complexo de reconstruir os valores negativados associados aos pacientes psiquiátricos – enquanto figuras irracionais, perigosas, incompreensíveis, suspeitas – que lhes furtaram a possibilidade de serem sujeitos-cidadãos, para, desta forma, fazer restituir ou aumentar o poder contratual dessas pessoas, assim como seus gradientes de autonomia, criando condições e meios para que possam participar das trocas e dos intercâmbios sociais (Kinoshita, 2001). Essa é uma visão também compartilhada por Goldberg (2001) quando defende a reabilitação psicossocial como um processo que busca interferir e melhorar a autonomia das pessoas.

Aqui, a fim de aprofundar o debate sobre a reabilitação psicossocial e sua íntima relação com a autonomia, faz-se relevante retomar o diálogo com Kinoshita (2001), em continuidade de concordância com seu pensamento, valendo ressaltar que autonomia não tem a ver com autossuficiência, nem com independência. Portanto, usamos as palavras do autor para dizer que:

Dependentes somos todos; a questão dos usuários é antes uma questão quantitativa: dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situação de dependência restrita/restritiva é que diminui a sua autonomia. Somos autônomos

quanto mais dependentes de tantas coisas pudermos ser [grifo nosso], pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida (Kinoshita, 2001, p.57).

Com o sentido de reabilitação psicossocial de que tratamos em acordo com as ideias desses autores, quando se pensa em algum tipo de “desabilidade” é, como analisa Saraceno (2001), “. . . por falta de poder contratual, habilidade de alguém efetuar trocas” (p.14). É aí que entra a reabilitação, portanto. Não exatamente como uma técnica, mas uma exigência ética. Tal como nos fazer perceber e concordar, a reabilitação nessa perspectiva, “. . . é uma estratégia que implica muito mais do que simplesmente passar um usuário, um paciente, de um estado de „desabilidade‟ a um estado de „habilidade‟, de um estado de incapacidade a um estado de capacidade” (Saraceno, 2001, p. 14). Vai além disso. Por meio de um exercício de reconstrução de contratualidade e cidadania nos cenários da vida doméstica, habitat ou casa, rede social e trabalho, com valor social, “Tudo que está contra isso, está contra a reabilitação. Tudo que está a favor disso, é uma variável que coopera para a reabilitação” (Saraceno, 2001, p. 18). Nesse sentido, observa-se a estreita relação da reabilitação psicossocial com a cidadania.

Referindo-se à invenção de um novo modo de cuidar do sofrimento humano, a Atenção Psicossocial se faz de modo ousado, “. . . por meio da criação de espaços de produção de relações sociais pautadas por princípios e valores que buscam reinventar a sociedade . . .” (Yasui, 2009, p.3 ) e, como já anunciado, propondo-se a construir um novo lugar para o louco. Reinventar a sociedade e construir um novo lugar social para o louco implica revisar as cláusulas do contrato social que tirou do louco a condição de sujeito- cidadão; reinventar a sociedade implica, portanto, como já sinalizamos, em “reabilitar a cidade”. Reinventar a sociedade, nesse caso, “. . . implica transformar as mentalidades, os hábitos e costumes cotidianos intolerantes ao diferente . . .” (Yasui, 2009, p. 3). Essa

reinvenção se faz na busca pela constituição de uma ética de respeito à diferença, já apontada como sustento ético-político do Paradigma Psicossocial.

Nesse sentido, urge dizer que a chamada Atenção Psicossocial é apresentada como um projeto civilizatório que se coloca contra a barbárie da impossibilidade de reconhecer o outro, a diferença, o múltiplo, o estrangeiro (Yasui, 2009). Um movimento que age, na contra tendência e de forma contra hegemônica, pela construção de uma sociedade mestiça, “. . . marcada pelo diálogo, pela convivência e por um profundo respeito às diferenças” (Yasui, 2009, p. 3), respeito que vai além da tolerância, para uma atitude de permissividade de poder ser desestabilizado, deslocado e, quiçá, transformado pelo estrangeiro. Esse é um movimento que acontece através de “. . . pequenas revoluções cotidianas que ousam sonhar com uma sociedade diferente” (Yasui, 2009, p. 8).

Identifica-se nesse movimento um elemento de resistência que se associa ao que Paulon (2006), inspirada em Nietzsche, chama de transmutação cultural ou reviravoltas contratuais que “. . . requerem não apenas uma mudança no princípio de avaliação dos valores; mas, fundamentalmente, na própria maneira de ser de quem os avalia” (Paulon, 2006, p. 133). Ou seja, está se falando em novos modos de subjetivação e, a partir disso, na imersão “. . . do problema da constituição de nossos valores morais” (Paulon, 2006, p. 133). Exercício de superação de si, como uma tarefa des-re-construtiva.

Estamos na seara dos valores, da conclamação e luta micropolítica pela sua transformação radical, operando outra vez na meta da transvaloração nietzschiana e buscando desembarcar de uma plataforma de solo bárbaro, de fechamento à diferença e produtora de desigualdades, injustiças, violência – elementos contrários à saúde e à expansão da vida – para embarcar em direção a outra: de igualdade, justiça social e liberdade, princípios para uma coletivização e potencialização da vida. Como ressalta Yasui (2009), tais valores ganham consistência em atos e gestos no cotidiano – de generosidade, hospitalidade, respeito

à diferença – e podem fazer a diferença na vida das pessoas que tomamos o ofício e responsabilidade de cuidar.

Tais atos e gestos são possibilitados pelo posicionamento na vida de uma ética da fraternidade e da solidariedade, promotoras de bons encontros e que se nutram da esperança, do otimismo e da utopia, da coragem e do saber transformador (Yasui, 2009). Nas palavras desse autor: “A Atenção Psicossocial é assim, feita de sonhos, utopia e esperança” (Yasui, 2009, p. 8), porém adverte que tais componentes não sejam confundidos com aspirações românticas, alienadas das condições materiais e históricas concretas (Yasui, 2009), uma vez também que os riscos imbricados nessa nova gramática existencial foram apontados e debatidos. Porém, como nos diz Paulon (2006), de forma sábia:

Como seres de instituições não temos outra saída diferente a de avançar nesse arriscado caminho. Como sujeitos do desejo não nos resta outra alternativa, senão a desinstitucionalização que nos leva à criação. „Como flechas do desejo estendidas para a outra margem‟, tal como profetizou Zaratustra, não temos outra escolha, já que viver é arriscar-se a cada passo. Arrisquemo-nos, pois, ainda que isso nos custe algumas incinerações (Paulon, 2006, p. 134).

Todas essas modificações propostas convocam a um reposicionamento de todos os atores envolvidos. Tal reposicionamento só pode ser sustentado através de uma ética que se abra para a singularização. Na singularização, tem-se um novo estatuto ético das práticas em saúde mental dentro da perspectiva da Atenção Psicossocial, pois, distanciando-se dos ideais da “saúde normal” discutida anteriormente com o apoio no pensamento de Nietzsche, traduz um movimento ousado de buscar o novo (Yasui & Costa-Rosa, 2008), contínuo e incessante. O novo nos sujeitos do sofrimento, nas práticas, nos agentes do ofício do cuidado e nas formas de inter-relação.

Em favor da ética da singularização, o Modo Psicossocial “. . . preconiza a superação da ética da adaptação, que tem seu suporte nas ações de tratamento como reversibilidade dos problemas e na adequação do indivíduo ao meio e do ego à realidade” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 14), deixando firmada a meta da produção de subjetividade singularizada, a partir do alinhamento das ações com os interesses e demandas dos usuários.

Operando alinhada com os interesses e demandas dos usuários, a ética da singularização é capaz de romper, a um só passo, com “. . . o conjunto de mecanismos institucionais e técnicos em Saúde, que tem produzido, nos últimos séculos, subjetividades proscritas e prescritas” (Brasil, 1992, pp. 11-12) e com a subordinação dos interesses e demandas dos usuários aos de conservação e reprodução institucional.

Desta forma, enquanto produção de saúde, defende-se uma terapêutica da singularização (Costa-Rosa, 2000) que, impulsionando metamorfoses, seja capaz de transformar as modalidades de relações de objetivação em relações que produzam subjetividade. Tem-se na busca pela singularização, portanto, outra meta cara ao Modo Psicossocial.