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Transmutando a concepção do objeto e dos meios de trabalho

Movimento 1. O campo da Atenção Psicossocial: por um Paradigma Psicossocial

1.4. Premissas do Modo Psicossocial e as práticas de Atenção Psicossocial

1.4.1. Transmutando a concepção do objeto e dos meios de trabalho

As práticas de Atenção Psicossocial partem de um questionamento21 e desconstrução da noção de doença mental, ela mesma uma instituição, tal como cunhada pela psiquiatria, em nome da (re)aparição do sujeito antes coisificado nas ideias de doença, transtorno, desordem mental, em suas determinações orgânicas (Amarante, 2007). Em seus lugares, o reconhecimento de um sujeito integral em experiência de intenso sofrimento, de uma existência-sofrimento, de um estado de não equilíbrio em relação ao corpo social, tal como pensou Rotelli (2001) na formulação da crítica ao paradigma doença-cura e na proposição do desmonte da relação problema-solução, sustentos pelo Modo Asilar.

21 Tributa-se a esse tipo de questionamento a influência da tradição basagliana no desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Essa desconstrução reflete a emblemática operação de colocar a doença entre parêntesis, suspendendo as estreitas vias do olhar da clínica e suas incrustações científicas e judiciárias, proposta por Basaglia (1985), como medida prática para desinstitucionalizá-la. Isso porque no restrito universo da clínica, os sintomas, que refletem dificuldades e desequilíbrios no âmbito mais geral das condições de vida, são reduzidos, simplificados e lidos como sinal apenas de doença, descredenciando-os do mundo social e inscrevendo-os no mundo das patologias (Rotelli, 2001), consequentemente no mundo da instituição psiquiátrica.

Assim como indicado no Paradigma da Produção Social da Saúde, no lugar das quase exclusivas determinações orgânicas, emerge, no Paradigma Psicossocial, a consideração dos fatores políticos e biopsicossocioculturais como determinantes dessa existência-sofrimento. Diante dessa consideração, a loucura passa a ser lida não como um fenômeno exclusivamente individual, mas social (Costa-Rosa, 2000).

Amplia-se e redefine-se, portanto, o contínuo saúde-doença, enquanto produto de processos sociais complexos, funcionando como expressão do sujeito se posicionar frente aos conflitos e contradições que o perpassam (Costa-Rosa, 2000). Ou seja, contextualiza-se o processo saúde/doença, desfazendo a lógica binária separatista, levando em consideração a dimensão subjetiva e sociocultural do sujeito do sofrimento, vinculando o conceito de saúde ao exercício de cidadania e a produção de saúde à produção de subjetividade. Concordamos com Costa-Rosa et al. (2001) quando defendem que essa contextualização “. . . obriga a considerar a própria luta por saúde, tanto entendida como estado das condições de saúde, quanto entendida como reinvindicação de cuidados de saúde, como componente da própria definição de saúde” (p. 17).

Um aspecto relevante no tocante a essa ampliação do conceito de saúde diz respeito à consideração da noção de crise como um componente estrutural da especificidade da saúde mental. Esse é o lugar e o estatuto da crise nessa concepção. Isso por que:

. . . dada a concepção de saúde que inclui em sua definição a participação ativa do homem na busca de melhores condições de vida e de melhor atendimento à saúde, e dada a circunstância histórica de que a sociedade liberal . . . é conjunção de interesses contraditórios, portanto um processo que envolve luta e conflito entre esses interesses, só é possível conceber a saúde mental como certo modo do posicionamento subjetivo e sociocultural dos indivíduos na conjuntura conflitiva particular que os atravessa e pela qual são atravessados . . . (Costa-Rosa et al., 2001, pp. 17-19).

Na compreensão desses autores, somente esse modo de formular o conceito de saúde leva mesmo em consideração os indivíduos como existência-sofrimento. A partir das fissuras produzidas na concepção de saúde e doença, é produzida uma torção no “objeto” das práticas da Atenção Psicossocial e nos meios de trabalho e intervenção que passa a ter uma equipe interdisciplinar como “. . . principal instrumento de intervenção, invenção e produção de cuidados” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 34). Adiante, exploraremos a especificidade do funcionamento dessa equipe de trabalho. Para o raciocínio que estamos traçando agora importa dizer que o foco de intervenção não é mais a doença e sim o sujeito, em sua existência-sofrimento. Vai além da doença para encontrar o sujeito, mas não apenas o sujeito individual, porque o conceito de existência-sofrimento implica um corpo social.

Levando-se em consideração a dimensão subjetiva e sociocultural do sujeito, para dar conta da complexidade dessa redefinição que promove a noção de um sujeito integral, os recursos terapêuticos não se circunscrevem mais exclusivamente na medicação e nem apenas no sujeito. Um amplo conjunto de dispositivos e estratégias passa a compor um rol de ações integrais, como veremos um pouco mais adiante, com alcance na família e no grupo social.

Mas, se por um lado as intervenções não se circunscrevem apenas no sujeito, por outro é decisiva a importância que se atribui a sua mobilização e participação como ator ativo em seu processo de cuidado. Aprofundaremos as razões dessas modificações um pouco adiante.

No âmbito das intervenções dirigidas ao sujeito não se tem como meta a remoção de sintomas a qualquer custo, produz-se outra torção. Não se deixa de buscar as intervenções nos sintomas, porém não como meta final. Isso porque o sofrimento e os conflitos dos quais os sintomas são porta-vozes devem ser reintegrados como parte da existência, “. . . como componentes do patrimônio inalienável do sujeito” (Costa-Rosa, 2000, p. 155).

Considerando o sujeito como existência-sofrimento, é preciso abrir mão das ações disciplinares e renunciar à perseguição da suposta solução racional tendencialmente ótima – a reparação da normalidade, a suposta cura ou a vida produtiva – para se investir em emancipação, produção de vida, em sociabilidade, no sentido de (re)inscrição das pessoas no corpo social (Rotelli, 2001).

A renúncia a tal solução possibilita o que os autores italianos chamam de uma mudança de ótica profunda, responsável por atingir o conjunto das ações e das interações institucionais. Num percurso crítico de pensar os modos de ser do próprio tratamento, entendendo que “. . . não existe mais uma saúde, mas existem mil” (Rotelli, Leonardis & Mauri, 2001, p. 30), abandona-se a perseguição da cura e investe-se no projeto de “invenção de saúde” e de reprodução social das pessoas, (re)construindo-as como atores sociais.

Mas o que seria esse projeto de invenção de saúde? Ou recolocando a nossa questão, como se inventa saúde? Qual é a relação entre a invenção da saúde e a produção de vida, a reprodução social, a sociabilidade? Para nos auxiliar na resposta a essas questões, dialogaremos outra vez com Nietzsche. Em A gaia ciência, o filósofo diz que “não há saúde em si . . . existem inumeráveis saúdes . . .” (Nietzsche, 2001, p. 144) e nos recomenda abandonar a noção de uma saúde normal. O autor nos faz refletir, ainda, que a saúde tem uma

relação com o plano da experiência de cada um. Por isso a reconhece expostas às singularidades. Nesse sentido, a saúde é fundamentalmente múltipla. Enxergando uma relação solidária e não binária ou dualista entre saúde e doença, entende a saúde como a possibilidade de superar a doença. A saúde não nega a doença, mas triunfa sobre ela, e, como nos aponta Peixoto Junior (2010), “a saúde que se desvela no afrontamento com, e depois na vitória sobre a doença, é aquilo que Nietzsche chama de „grande saúde‟, ou melhor, a verdadeira saúde” (p. 735).

De acordo com essa ótica, reforçar a si próprio, potencializar a si mesmo é a essência da saúde; ao contrário disso, se destruir ou se despotencializar é a essência da doença. Portanto, inventar saúde, nessa perspectiva, seria poder identificar formas de potencializar as pessoas para atravessarem e superarem seus adoecimentos. E, dessa vez, nos servindo do pensamento de Spinoza (2009) e entendendo que potência tem a ver com plano dos afetos, pensamos que a invenção de saúde passa ainda por um movimento de produção de alegria para superação da chamada doença, num movimento dinâmico de ultrapassagem. Produzir saúde é criar ou identificar meios de produzir e expandir a vida, potencializando-a. Sem regras e sem “a priori”, isso é da ordem da inventividade.

Seguindo esse raciocínio, a “invenção de saúde” implica, para nós, em poder: potencializar e reinventar subjetividades, desenvolver habilidades, promover reabilitação, impulsionar autonomia e poder de contratualidade ou negociações com o corpo social, ampliar territórios relacionais e trocas sociais, (re)inscrever as pessoas no corpo social, (re)desenhando itinerários desinstitucionalizantes de inserção social. Tudo isso como forma de produzir e expandir a vida. Isso fala de sociabilidade e reprodução social. Essas são metas das práticas psicossociais que não se realizam com ações interventivas e que operam apenas em nível do sintoma. Reinscrever no corpo social implica revisitar as normas do contrato social pautadas nos postulados da razão que excluíram a loucura. Nesse sentido,

concordamos com a prescrição de Venturini (Fala proferida em palestra na UFRN, dia 5 de setembro de 2013) de que “é preciso reabilitar a cidade”, desinstitucionalizá-la.

Tendo essas metas como horizonte das práticas de Atenção Psicossocial e, concordando com Costa-Rosa (2000), podemos dizer que “. . . o anterior ato de tratamento sobre a doença-objeto está, no Modo Psicossocial, transmutando-se em um verdadeiro exercício estético em que o que é visado é a experimentação de novas possibilidades de ser” (p. 156). Esse é o exercício micropolítico, já sinalizado anteriormente quando apresentamos a noção de desinstitucionalização, que se traduz numa luta por processos de subjetivação como direito à diferença, à variação, à metamorfose ou como direito à desrazão, como pensou Pelbart (1993).

O exercício estético, do qual nos fala Costa-Rosa (2000), está sustentado pelo Paradigma Ético-Estético proposto por Guattari (1992) que, partindo do pressuposto de que não há subjetividade dada como um em si, aposta em novas modalidades de subjetivação, de novos mundos, por um processo comparado ao de criação artística, em suas palavras, “. . . do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe (Guattari, 1992, p. 18)”.

Essa forma de produzir saúde ancorada num paradigma ético-estético revela um trabalho autopoiético de criação de si, de autoprodução de si ao interagir com o meio e com o(s) outro(s), no próprio viver (Maturana & Varela, 2007). Compreende-se que esse modo de se autoproduzir do qual nos falam Maturana e Varela (2007), no campo da biologia, só é possível a partir de uma visão de mundo de que ele não está pronto para ninguém, não é anterior à nossa experiência nele. Ao contrário, o mundo é construído por nós, de modo interativa e incessante, o que nos convida a uma forma de participação ativa nele. A nossa qualidade de vida no mundo, assim também de quem nos propomos a cuidar, tem muito de nossa responsabilidade, ou seja, nós que a fazemos.

Esse trabalho autopoiético, opõe-se enfaticamente ao tão comum técnico-científico, calcado no paradigma cientificista operador da medicalização das demandas sociais, do sofrimento e da vida. A produção de saúde calcada no paradigma ético-estético lida com pessoas, alcançando seus sofrimentos, (re)criando-se, (re)fazendo-se, e não com doenças autônomas ao alcance dos sintomas. Neste sentido, revela-se que a produção de saúde implica produção de subjetividade, uma vez que são indissociáveis (Yasui e Costa-Rosa, 2008).

Como forma de terapêutica, fala-se em cuidado e convoca-se a um modo de cuidar que dignifique o sofrimento: não o aprisionando; não provocando ou reforçando segregações e novas institucionalizações, cronicidades, processos de mortificação subjetivas e sociais. Cuidar, nessa perspectiva, é impulsionar a transformação dos modos de viver e sentir o sofrimento, transformando a vida cotidiana que nutre tal sofrimento. De acordo com o pensamento de Rotelli et al. (2001), o cuidado passa por um trabalho de reconstituição e enriquecimento da existência global e concreta das pessoas que sofrem. Cuida-se das demandas do sofrimento e não dos sintomas em si. Isso também é produção de vida.

Não se transforma modos de viver e sentir sem a coparticipação dos sujeitos da dor e, de alguma forma, sem o seu protagonismo. Nesse sentido, investe-se para que as pessoas “. . . mais ou menos „doentes‟, sejam sujeitos ativos e não objetos na relação com a instituição” (Rotelli et al., 2001, p. 36); que possam, em alguma medida, ter condições de administrar suas loucuras, seus sofrimentos inalienáveis (Costa-Rosa, 2000).

1.4.2. Transmutando o horizonte dos efeitos das práticas de atenção: outras implicações