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Transmutando as formas de relacionamento com os usuários e a população

Movimento 1. O campo da Atenção Psicossocial: por um Paradigma Psicossocial

1.4. Premissas do Modo Psicossocial e as práticas de Atenção Psicossocial

1.4.4. Transmutando as formas de relacionamento com os usuários e a população

Sabemos que há relações entre as formas de organização intrainstitucional e o modo como os trabalhadores se dirigem e lidam com os usuários e a população. A horizontalização das relações entre os profissionais é apontada como condição para a realização da horizontalização com os usuários e a comunidade. Mais do que isso, entendemos que a construção de autonomia dos usuários está intimamente associada à autonomia dos trabalhadores (Costa-Rosa et al., 2001).

Um trabalho em equipe inspirado no Paradigma Psicossocial é aquele em que “. . . os profissionais adotam uma posição humilde frente ao sofrimento psíquico . . . uma atitude solidária e despojada atitude de diálogo” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 35). No nosso entendimento, tal atitude representa a realização prática da superação do paradigma sujeito- objeto pela condição que comporta de potencializar o exercício da implicação subjetiva e sociocultural de usuários e trabalhadores.

As práticas de atenção do Paradigma Psicossocial, sustentadas outra vez pela ética da singularização, viabilizam a produção de um cuidado que, inspirando-nos no pensamento de Merhy (2006), dá-se no encontro relacional entre o sujeito do sofrimento, com sua demanda, e o trabalhador, com suas “valises”. Segundo o autor, essas valises utilizadas pelos trabalhadores produtores do cuidado representam “caixas de ferramentas tecnológicas” que, a

depender de suas composições, desde os saberes profissionais até seus desdobramentos materiais e não-materiais, configuram-se como “duras”, “leve-duras” ou “leves”.

Na proposição do autor, a valise que representa as tecnologias duras são instrumentos materiais e estão vinculadas às mãos dos trabalhadores (uma caneta, um papel, um estetoscópio, as medicações exemplificam esse tipo de tecnologia). A valise que representa as tecnologias leve-duras está na cabeça dos trabalhadores, a partir dos saberes profissionais estruturados, como a clínica, por exemplo. E aquela que representa as tecnologias leves está presente no espaço relacional trabalhador-usuário e só tem existência em ato (Merhy, 2006). O arranjo entre essas valises é que define o tipo de modelo de atenção à saúde que está sendo viabilizado, no caso em questão, se manicomial, asilar ou psicossocial.

Apoiando-nos na noção de intercessão de Deleuze (1992), pontuamos que esse encontro relacional produz no entre trabalhadores e usuários um espaço intercessor, um espaço de interferências recíprocas, sendo nele que se processa um campo de intervenção, em que um ator intercede e altera o outro mutuamente. Entendemos que esse campo de intervenções oportuniza as desestabilizações identitárias que vêm a produzir efeitos terapêuticos de deslocamento e mudança nos processos de subjetivação e na condição de vida das pessoas. A intercessão, portanto, é um campo potente, já que, em constante movimento, e atuando como que por contágio, abre múltiplas possibilidades de interferências, de fazer diferir.

Isso nos conecta outra vez com o pensamento de Merhy (2006) quando ele defende que o cuidado é um acontecimento e não um simples ato, muito embora se dê em ato; em ato micropolítico, diríamos, nas finas teias das práticas sociais e dentro dos jogos de forças e das relações de disputa pelo poder, assim como no plano dos afetos. Tal como refere o autor, o cuidado é produzido como “. . . trabalho vivo em ato, que é essencialmente um tipo de força que opera permanentemente em processo e em relações” (Merhy, 2006, p. 3). E por se tratar

de um trabalho vivo em ato, em contínuo movimento, o cuidado “. . . tem a força de representar o movimento da vida que produz vida” (Merhy, 2006, p. 4). Nesse sentido, ele é também autopoiético (Merhy, 2006).

Caracterizando-se como prática de Atenção Psicossocial que visa impulsionar processos de subjetivação singulares, autonomia e expansão de vida, esse encontro relacional deve, como nos sinaliza Yasui & Costa-Rosa (2008), se dispor a produzir vínculos de negociação de interesses divergentes, pactuações para a composição de um projeto de cuidado. Isso se inscreve, por exemplo, no âmbito da atenção à crise, quando se recomenda operar com o usuário não no horizonte da contenção, mas da continência, “. . . sem alijá-lo dos elementos essenciais dela . . .” (Costa-Rosa, 2000, p. 155), reconhecendo seu lugar estrutural, “. . . depois de extirpadas de sua porção indesejável e evitável” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 18).

Nessa economia terapêutica, que é também ético-política e que se articula entre a materialidade dos serviços e a potencialidade dos recursos subjetivos dos atores envolvidos, a solidariedade e a afetividade são dois elementos centrais (Rotelli et al., 2001). Se atenção e cuidado se fazem a partir das relações que emergem no espaço intercessor do encontro entre o sujeito e as demandas de seu sofrimento e os trabalhadores e as ofertas de suas caixas de ferramentas, entendemos, em parceria com Yasui e Costa-Rosa (2008), que a capacidade de continência da equipe se configura como um elemento indispensável àquela caixa de ferramentas. Mais que isso, entendemos que a possibilidade de realização de uma continência potente é um elemento de sustentação essencial para garantir nos serviços sua capacidade de funcionar, tal como propôs Rotelli (2001), inteiramente substitutivos à internação psiquiátrica, ou em suas palavras, “. . . sem a possibilidade de descarregar em outros os problemas, necessidades, comportamentos que são incoerentes, problemáticos e também ativamente conflitivos nos seus confrontos” (Rotelli et al., 2001. p. 50).

Conforme nos sinaliza Yasui e Costa-Rosa (2008), a capacidade de continência diz também, em última instância, da plasticidade da subjetividade da equipe, assim como da desenvoltura complexa de sua caixa de ferramentas, afinal, como adverte Merhy (2006), nos encontros do cuidado “. . .faz diferença quem está se encontrando” (p. 2).

A aposta é mesmo nos bons encontros. Pela leitura que fazemos das paixões alegres na Ética em Spinoza (2009) como afecções que aumentam a potência de agir, podemos fazer uma conexão e traduzir o que aqui apostamos como bons encontros, enquanto encontros afetivos24 capazes de potencializar seus participantes, aumentando sua potência de vida, expandindo-a alegremente, no sentido spinozano do termo.

Para nos auxiliar na explicitação dessa noção de alegria através da filosofia de Spinoza, trazemos um pensamento de Deleuze (2002) quando analisa que “. . . sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa e com ela se compõe . . .” (p. 25). Nesse sentido, concordamos com a compreensão de que o bom existe, conclui o autor, “. . . quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou parte de sua potência, aumenta a nossa” (Deleuze, 2002, p. 28).

Compreendendo a relevância dos bons encontros na produção do cuidado, destacamos um pensamento igualmente relevante de Yasui e Costa-Rosa (2008):

É necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores de uma prática social, que tem a potencialidade, por meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa práxis, de produzir novos processos de subjetivação... modos mais autônomos de viver e de fazer a diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes formas de saída da subjetividade serializada que, mormente, vem associada ao sofrimento e aos

24 Por afeto, (Spinoza, 2009, p. 98) entende “. . . as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada . . .”.

sintomas, para outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico . . . (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 35).

Com a clareza da potencialidade dessa prática social, dos bons encontros, importa realçar a relevância das tecnologias leves na produção de um tipo de cuidado que busca, por meio da constituição da intersubjetividade horizontal entre os encontros afetivos das movimentações micropolíticas dos atores envolvidos, em ato, no cuidado, na singularização, na potencialização, na autonomia e na expansão da vida. Assim, concordamos com Merhy (2006) quando assinala que o encontro que se dá entre trabalhador e usuário carrega a marca da singularidade e, portanto, de singularizar também.

Agora, se por um lado estamos defendendo a relevância das tecnologias leves para a produção de um cuidado potencializador, não significa que as tecnologias leves, por si, atuam favorecendo esse tipo de efeito. Não é porque é chamada de leve que, necessariamente, é boa ou potencializadora. Em nossa compreensão, leve é relacional e não depende nem dos instrumentos materiais, nem dos saberes estruturados para ser produzida. Nesse sentido, compreendemos que o efeito de produção que essa tecnologia pode produzir vai depender daquilo que se passa no entre dos espaços intercessores, de quais interesses estão em jogo na cena do cuidado, de que forças contracenam nas disputas e do que elas interditam ou deixam passar. A depender desse tipo de agenciamento, pode-se, ou não, produzir acolhimento, vinculações autonomizadoras ou tutelantes, responsabilizações ou desresponsabilizações.

Importa dizer, ainda, que a produção de intersubjetividade horizontal se realiza na medida em que, através de processos afetivos, cooperativos e contratualizados, operando como espaços de interlocução autênticos, os serviços possam funcionar como “. . . pontos de fala e de escuta da população” (Costa-Rosa, 2000, p.162). Isto implica capacidade de discriminar demandas que chegam aos serviços, podendo “. . . referi-las, quando for o caso, a outras instâncias de encomenda social, que não as de saúde” (Costa-Rosa, 2000, p. 162).

Esse é um exercício de oposição enfática ao tão comum método técnico-científico de medicalização das demandas sociais, do sofrimento e da vida no qual todo tipo de demanda é automaticamente traduzida em problema psiquiátrico e, conseguinte, em pedido de intervenção-internação. Com a força do ditado popular: “caiu na rede é peixe”! Aliás, a esse respeito, Costa-Rosa (2000) diz que do Modo Psicossocial se espera, em vez disso, um estreitamento da faixa do tratável, a partir de uma torção no olhar clínico patologizante que produz demandas de tratamento de aspectos sociais e conflitos existenciais.

Dissemos que a horizontalização se faz a partir de espaços cooperativos, contratualizados, em espaços de interlocução. Para tanto, faz-se necessária a participação da população para além da clientela efetiva na cogestão e na autogestão. No Modo Psicossocial, dá-se ênfase ao livre trânsito da população e dos usuários no serviço, conferindo-lhes poder decisório (Costa-Rosa, 2000). Nesse sentido, concordamos que: “se nas práticas da Atenção Psicossocial a exigência de superação do paradigma sujeito-objeto é um objetivo fundamental parece mais do que justificado que a participação popular nas instituições seja elevada à categoria de dispositivo necessário, não apenas contingente” (Costa-Rosa et al. 2001, p. 14). Preconiza-se, portanto, o livre trânsito dos usuários e sua participação direta nos serviços.

A esse respeito, na avaliação de Costa-Rosa (2000), a constituição atual das equipes tem superado em muitos aspectos aquele modelo de grupo de especialistas do Modo Asilar, fundado na estratificação do saber e na verticalização do poder. Ainda assim, os reconhece como um dos grandes desafios das praticas de Atenção Psicossocial a serem enfrentados todos os dias, demandando dos cuidadores mais concessão de poder e, portanto, mais horizontalidade nas relações com os usuários, familiares e a população.

Esse modo de funcionamento que pede livre trânsito e participação direta de usuários, familiares e população nos serviços, caracteriza outro aspecto das práticas de Atenção Psicossocial: a não interioridade dos serviços em relação ao território, como vimos ocorrer na

Atenção Asilar, a partir do isolamento. Daí decorre que se defina a instituição típica do Paradigma Psicossocial como Dispositivos Integrais Territorializados de Atenção Psicossocial (Costa-Rosa, 2000). Com isso, situa-se a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva (Yasui & Costa-Rosa, 2008).

Vejamos isso: ações integrais solicitam serviços integrais. A integralidade é considerada tanto em relação ao que se busca enquanto ato terapêutico, quanto em relação à atuação no território (Costa-Rosa, 2000). Quando falamos em território nos referenciamos não apenas ao espaço físico e geográfico onde se exerce a atuação, mas, de acordo com a perspectiva de Milton Santos (2001), ao território que “. . . é o chão e mais a população . . . fato e o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence . . . é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi” (p. 96). Nesse sentido, quando se fala em território, está se falando de um espaço usado, que tem vida, um território, portanto, também existencial, político, afetivo em constate movimento. Algo dotado de forças vivas que agem sobre as pessoas que o compõem, assim como elas agem sobre ele, modificando-o. O território é, portanto, um espaço humano (Oliveira, 2004).

Quando se define a integralidade como norteadora das ações, requisita-se uma série de transformações na organização e na micropolítica do trabalho. Nesse sentido, preconiza-se que os serviços possam funcionar como “. . . um espaço de absoluta e intensa porosidade em relação ao território” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 14), um espaço que absorva e se confunda com o território de vida das pessoas que usam os serviços. De acordo com o pensamento de Rotelli et al. (2001), afirmamos que “. . . aberto ao bairro e „atravessado‟ pelas pessoas . . . a relação de desinstitucionalização requer a relação com um território” (p. 47).

O sofrimento convém ser cuidado dentro do seu contexto de vida, no seio das relações, seja qual for seu grau: em crise, fora da crise, em níveis mais intensos, em momentos de necessidade de suporte social, sustentação e manutenção de suas condições e

projetos de vida. Só dentro de uma lógica de cuidado territorial é possível mudar o endereço de destino dessas pessoas da instituição típica do paradigma asilar para a vida. Só assim é possível reinseri-las e reintegrá-las e assim desenhar um novo lugar social de cidadania singularizada e inclusão, engendrando mudanças psicossociais nas existências-sofrimento. Isso porque, “. . . um território dá às pessoas que nele habitam a consciência de sua participação, provocando o sentimento de territorialidade . . .” (Andrade, 2002, p. 214), de pertencimento, de inclusão. Ademais, pensando com Oliveira (2004), esta aproximação do serviço da rede de relações sociais do usuário, seu território, é geradora de relações de confiança, ampliando os recursos do serviço em situações mais complexas, como as crises.

A defesa da porosidade relacional dos serviços em relação ao território tem potencial para subverter a própria natureza do serviço enquanto estabelecimento, já que o local de execução de suas práticas se descola e se desloca do tradicional interior da unidade de saúde para tomar o território como referência (Costa-Rosa et al., 2001). O estabelecimento de saúde, um intermediário necessário, é agora pensado enquanto um equipamento que se posicione “. . . num foco em que se cruzam as diferentes linhas de ação no território e para onde podem remeter-se as primeiras pulsações da demanda” (Costa- Rosa et al., 2001, p. 14). Como tal, “. . . perpassa e transcende as instituições enquanto estabelecimentos, tornando-os dispositivos referenciados na ação sobre a demanda social do território . . .” (Yasui & Costa- Rosa, 2008, p. 36). Reforçando tal pensamento, os autores ressaltam que a perspectiva da integralidade, além de supor o conceito de território, concorre pela superação da atenção estratificada por níveis (primário, secundário e terciário).

Fazer essa leitura distancia a lógica da Atenção Psicossocial de um sistema organizado e hierarquizado rigidamente em níveis de complexidade. Nessa lógica “. . . não interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa complexidade . . . tudo é considerado de alta complexidade, o que pode diferir é a especificidade do saber e da ação” (Yasui &

Costa-Rosa, 2008, p. 36). O mais importante não é organizar os novos dispositivos institucionais num sistema de referência e contra referência, vez que “. . . o sujeito será sempre compreendido como aquele que está inserido no território e, mesmo quando for alvo de ações específicas de CAPS ou ambulatórios, não deixará de estar adscrito a Estratégia Saúde da Família (ESF), nem participar das ações simultaneamente realizadas por ela . . .” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 36). Com esse raciocínio, a ESF será posicionada como a referência para o campo da Atenção Psicossocial (Yasui & Costa-Rosa, 2008). Concretizar esse projeto implica, portanto:

. . . considerar e ativar os dispositivos existentes no território; na responsabilização da demanda, especialmente nos momentos de crise; na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado aumentando a responsabilidade de cada profissional... (p. 28). Tomar o território como referência pressupõe assumir o princípio da tomada de responsabilidade25 assinalado por Dell‟Acqua e Mezzina (2005) como norteador das ações. Esse princípio se refere a um posicionamento que traduz a disposição para compreender e se responsabilizar com as diversas formas e momentos da existência que sofre, a partir da construção de relações de cumplicidade e confiança (Dell‟Acqua e Mezzina, 2005). A propósito, os conceitos de território e de responsabilidade são valorizados como dispositivos que operam na direção da ruptura com o modelo hospitalocêntrico (Costa-Rosa et al., 2001).

Analisando a valência da perspectiva da integralidade nas práticas de Atenção Psicossocial, esses autores entendem que apesar de sua importância “. . . não se pode perder de vista, por outro lado, o conjunto de passos concretos que ainda precisam ser dados para estar no exercício efetivo das ações integrais em Saúde e de cidadania singularizada” (Costa- Rosa et al., 2001, p. 17).

25 Esse termo é a tradução para o português do conceito italiano Assunzione di responsabilità. Importa destacar que o sentido a ele atribuído não é o de, na relação de cuidado, tomar encargo de especialista, mas de apreender as diversas formas e os momentos da existência que sofre, não se eximindo deles.

Reconhecendo os serviços de saúde como intermediários necessários entre a demanda e a oferta de cuidado, entre o sofrimento e o trabalhador, há que refletirmos sobre que tipo de intermédio vem sendo realizado, que agenciamento vem sendo produzido frente às demandas, o que anda circulando no entre dos encontros, nos espaços intercessores. Pensando com Freire (2012), convém “. . . refletir se estamos produzindo micropoliticamente nos processos de trabalho e de cuidado redes afetivas produtoras de lógicas antimanicomiais . . .” (p. 150).

Na avaliação dos autores, como um desvencilhamento da anatomia institucional (Costa-Rosa et al., 2001), essa opração é um passo decisivo para que esse intermediário trabalhe em favor da ética preconizada pelas práticas da Atenção Psicossocial.

Através dessa operação de desvencilhamento, esses autores nos ofertam pistas através das quais podemos nos autoavaliar na direção do modelo das práticas de Atenção Psicossocial. A reflexão em torno das estratégias de fortalecimento do movimento de usuários e familiares é uma delas. A discussão da transinstitucionalização enquanto “. . . criação de outras instituições menores de segregação em que são abandonadas as estruturas asilares, mas não a possiblidade da cronicidade e da medicalização da demanda” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 22), é outra. Dentre outros, dois termômetros do nível de realização das práticas de Atenção Psicossocial.

Em síntese do que explicitamos das práticas de Atenção Psicossocial, apresentamos, abaixo, um quadro que expressa o que compreendemos como suas principais características.

Tabela 1

Caracterização das Práticas de Atenção Psicossocial

Características das práticas de Atenção Psicossocial

 Desenvolvem ações de cuidado integrais voltadas às existências em sofrimento;  Compõem o rol de cuidados com um conjunto amplo além do recurso

medicamentoso, com ações de suporte social;  Alcançam a família e o grupo social;

 Buscam a corresponsabilização e a mobilização da participação do sujeito;  Tem como meta a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial;

 Investem no exercício da singularização, da autonomia, da contratualidade, na produção de saúde e expansão de territórios relacionais e de vida;

 Enfatizam formas de resgate de cidadania;

 Constituem-se em relações de interlocução horizontais;

 Tem na equipe interprofissional seu meio de trabalho característico;  Distanciam-se dos especialismos e da medicalização do sofrimento;  Buscam a construção da intersetorialidade;

 Assumem a „tomada de responsabilidade‟ e exteriorizam-se em ações territoriais.

O conjunto de transformações práticas, proposições teóricas e éticas, incorporadas na formulação da Política Nacional de Saúde Mental, é denominado Estratégia Atenção Psicossocial, guardando, o mesmo sentido reorientador dos modelos de atenção à saúde (Yasui & Costa-Rosa, 2008). Nesse sentido, entendemos a Eaps como uma ferramenta ético- política pela qual se tenta realizar, no plano do exercício prático da operacionalização da Política Nacional de Saúde Mental, as transformações das práticas de cuidado, desenhando e expressando o novo modelo de Atenção Psicossocial.

A proposta da Eaps implica, portanto, dentro do campo da Atenção Psicossocial, a superação prática e cotidiana do paradigma asilar; uma metamorfose operada no interior de um processo complexo e concreto “. . . que se constrói em um movimento contínuo de fazer e desfazer, desconstruir e construir. Desconstruir conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares para tornar novas as produções” (Yasui & Costa- Rosa, 2008, p. 35). Toma-se a Eaps como uma lógica de ação, como um dispositivo que