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Transmutando as formas de organização institucional

Movimento 1. O campo da Atenção Psicossocial: por um Paradigma Psicossocial

1.4. Premissas do Modo Psicossocial e as práticas de Atenção Psicossocial

1.4.3. Transmutando as formas de organização institucional

Urge dizer que “. . . as possibilidades de instaurar o novo e de metamorfosear as formas de vida devem ser preocupações constantes para aqueles que tenham feito da luta pela subjetividade, além de seu modo de vida, também sua vocação e ofício” (Paulon, 2006, p.128). Porém, sabe-se que a diferença não é simples de ser produzida e, como frisou Nicácio (2001), nem de ser sustentada na rotina dos serviços. Por isso, concordamos com Costa-Rosa et al. (2001) quando defendem que, para ser alcançada, a singularização:

. . . dependerá de que a forma das relações sociais e humanas na instituição parta da horizontalização como meta e, em alguma medida, seja vivida como exercício. Sem

isso não há a menor plausibilidade em propor a implicação subjetiva e sociocultural do usuário e do trabalhador; sem estas parece-nos que não pode haver terapêutica na perspectiva da singularização (pp. 20-21).

O exercício requisitado pela meta ética da singularização e da autonomia, que concorre em favor de processos de subjetivação e cidadania singularizados, será sempre o de produzir fissuras no instituído ou, como havíamos dito, o de furar o cerco do niilismo empobrecedor, superando desta forma “. . . os modelos funcionalistas das práticas que trabalham nos eixos da adequação do indivíduo ao meio e do ego à realidade . . .” (Costa- Rosa et al., 2001, pp. 20-21).

Sob o panorama da ética da singularização, termina-se por constituir o sustento para efetivar um princípio de cidadania nas práticas dos trabalhadores de saúde mental condizente com essa ética (Costa-Rosa et al., 2001). Na avaliação desses autores, tal intento é possível na medida em que seus agentes forem capazes em seus processos de trabalho e de fazer prevalecer ações que tendam a transformar essas práticas em espaço privilegiado de interlocução para questões subjetivas e socioculturais. Para tanto, conclama-se, desde a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que os trabalhadores possam reescrever o papel de agentes de exclusão e dominação que lhes foi outorgado (Costa-Rosa et al., 2001), sendo concessionários de poder e possibilitando, como nos diz Paulon (2006), que “. . . o radicalmente novo irrompa o cerco cristalizado das velhas instituições e apresente novos costumes, exploda velhos contratos e questione a conhecida vidinha no „velho lar‟” (p. 133).

Todo esse exercício de superação ou de maleabilização do instituído, por um lado, e, por outro, de exercitar, experimentar e afirmar o novo, deve refletir uma sintonia entre aquilo que se passou a conceber em termos de saúde-doença e os meios de cuidado reinventados. Apoiados no pensamento de Guattari e Rolnik (1986), chamamos atenção, entretanto, para o fato de que estas proposições pautadas na ética da singularização contrapõem-se frontalmente

aos interesses ético-políticos globais de massificação e homogeneização, ressaltando, assim seu caráter contra hegemônico e de desafio quando se caminha para operacionalizá-las. Reconhecendo tal caráter, assinala-se que “. . . tensões, contradições e mudança começam a fazer parte do modo de trabalhar” (Rotelli et al., 2001, p. 50), sendo, ainda segundo os autores, ao mesmo tempo, elas mesmas o terreno efetivo da ação terapêutica onde as mudanças devem ser operadas.

Acenando para tensões e contradições, Rotelli (2001) notifica o ordenamento ainda rígido e pouco aliançado com as demandas dos usuários das regras de funcionamento de alguns serviços, atentando para o aspecto problemático quanto ao caráter de empobrecimento das trocas sociais e terapêuticas que esse tipo de ordenamento representa. Isso porque, na nossa compreensão, o tipo de ordenamento a que o autor se refere sugere dificuldades de produzir fissuras no instituído, nas relações de poder verticalizadas, vulnerabilizando dessa forma, os espaços de interlocução que seriam capazes de produzir intersubjetividades singularizadas.

Apresentamos agora outro ponto de corte do Modo Psicossocial em relação ao Modo Asilar: os especialismos característicos desse paradigma. A crítica aos especialismos, típicos dos modelos de produção capitalista e da perspectiva da integralidade, guia as ações embasadas no Paradigma Psicossocial requisitam um modo de organização e divisão do trabalho “. . . mais coerente com a lógica dos modos de produção de cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial, não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da produção . . .” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 32). Os autores requisitam mais: a superação do monopólio das especialidades.

Esta superação, assim como pensa Rotelli (2001), se faz, na prática, demolindo as compartimentalizações das tipologias interventivas, ligadas à instituição da doença enquanto algo separado da existência global e complexa, ao mesmo tempo, como indicam Costa-Rosa,

Luzio e Yasui (2003), lançando mão das diferentes e múltiplas potencialidades dos trabalhadores, ativando todos os recursos disponíveis, incluindo os dos usuários.

Tal superação requer ainda, além da busca pela superação da divisão fragmentada do processo de produção em especialidades, que se vislumbre meios de se chegar a um saber- fazer transdisciplinar, no sentido atribuído por Passos e Barros (2000), de efeito desestabilizador que faz promover entre as unidades das disciplinas e suas especialidades. De acordo com os autores, esse efeito desestabilizador emerge da relação de interferência e intervenção que se estabelece e se atravessa entre os domínios do conhecimento. Daí o por que se fala em trans-disciplinaridade.

A transdisciplinaridade se torna um conceito importante dentro do Paradigma Psicossocial porque, conforme ressaltam Yasui e Costa-Rosa (2008), “a superação do princípio doença-cura exige também a superação do modelo sujeito-objeto que define as especialidades e as ações no paradigma hegemônico” (p.32). Numa análise mais aprofundada, avaliamos que se produz, com o desmantelamento no terreno das especialidades, tal como já pudemos sinalizar anteriormente, um intenso diálogo entre os saberes e conhecimentos acerca do humano que compõem o campo da Atenção Psicossocial e, além desse diálogo, como nos sugerem os autores supracitados, um turvamento entre seus limites e fronteiras.

Esse turvamento faz borrar as fronteiras entre as disciplinas, produzindo, dentro de um processo de interferência mútua, algo de diferente entre elas, o que abre a possibilidade de diversas formas de pensar e fazer. Isso porque, como avaliam os autores, o saber-fazer transdisciplinar realiza, “. . . a emergência do sem contorno, que mais desorganiza do que orienta, que institui o próprio processo de instituir” (Yasui & Costa-Rosa, 2008, p. 34). Como uma proposta bastante ousada, a transdisciplinaridade representa, portanto, um grande desafio às praticas do Paradigma Psicossocial.

Um importante sustento para se fazer frente ao desafio da transdisciplinaridade é a integração dos profissionais. As críticas operadas dentro do Paradigma Psicossocial requisitam equipes interprofissionais como meio de trabalho, abordagens transdisciplinares e intervenções intersetoriais. Das equipes, já sinalizadas como principal instrumento de intervenção, invenção e produção de cuidados, espera-se o exercício de superação dos especialismos – fundados na estratificação e na hierarquização do saber típicos do modelo fragmentador da linha de montagem (Costa-Rosa, 2000) – pela horizontalização dos fluxos de saberes e poderes expresso nas relações tanto entre os trabalhadores quanto com os usuários, familiares e grupo social (Costa-Rosa, 2000). Desta forma, a superação dos especialismos e a horizontalização das relações aparecem como outra meta fundamental que orienta as práticas de Atenção Psicossocial. Ademais, o propositor do Modo Psicossocial considera a horizontalização23 como uma vocação desse paradigma.

Dar concretude a vocação desse paradigma implica, dentro dos processos de trabalho, um tipo de organização e disposição coletiva com efetiva participação de todos, incluindo os sujeitos do sofrimento, seus familiares e comunidade (Yasui & Costa-Rosa, 2008).

Horizontalizar os fluxos de saberes e poderes pressupõe a realização de uma crítica à divisão do trabalho ancorada no modelo taylorista fragmentador, separatista e reprodutor das relações de poder socialmente dominantes, facilmente identificável, por exemplo, na cisão entre o trabalho intelectual e decisório versus o trabalho de execução (Costa-Rosa et al., 2001); um modelo que cinde o processo de trabalho e despotencializa a ação terapêutica.

Logo, a horizontalização posta requisita a superação desse modelo e, sustentando-se na integração interprofissional em profundidade, torna possível que “. . . o saldo mais precioso do processo de trabalho (a implicação subjetiva e a singularização) seja apropriado

23 Costa-Rosa (2000) tributa a ideia da horizontalização às experiências da Psicoterapia Institucional e à Comunidade Terapêutica da reforma internacional.

pelos trabalhadores e pelos usuários e posto a seu serviço . . .” (Costa-Rosa et al., 2001, p. 20). Desta forma, põe-se em marcha a produção de uma intersubjetividade horizontal singularizada através da qual os sujeitos envolvidos na produção do cuidado interfiram e produzam singularmente a partir das relações que se dão entre si. Discutimos um pouco mais isso no próximo bloco.