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CAPÍTULO III – AS POLÍTICAS PÚBLICAS, A INTERVENÇÃO PRECOCE NA INFÂNCIA E O PAPEL DA FAMÍLIA

III. 3 A intervenção precoce em Portugal

Em linha com o que ia acontecendo um pouco por toda a Europa e sob influência destas experiências internacionais, o movimento para a implementação da Intervenção Precoce em Portugal, embora tivesse início, de forma ainda embrionária, durante a década de 80, consolidou-se sobretudo na década seguinte, com a proliferação de novas equipas de IPI. Estas funcionavam de forma ad-hoc e autónoma, tendo-se desta forma disseminado rapidamente por várias zonas do país (Gronita, 2008).

Perante este contexto em que as ideias e os ambientes cognitivos/científicos impelem a sociedade civil para respostas concretas ainda antes destas entrarem na agenda política, importa, pois, valorizar a importância dos processos coletivos de interpretação da realidade e a legitimação das soluções para a criação e desenvolvimento de instituições com o fim de responder aos problemas identificados. É o conjunto diversificado de atores como médicos, académicos, terapeutas, famílias e organizações da sociedade civil, que começa a promover e disseminar intervenções e projetos “avulso” de intervenção precoce em Portugal, ainda que de forma experimental (Idem).

Como experiência embrionária de intervenção precoce integrada em Portugal podemos identificar o denominado “Projeto de Águeda”. Este projeto-piloto inovador para a época envolveu pela primeira vez e em trabalho de parceria organismos pertencentes aos ministérios da Saúde, Educação e Segurança Social, incluindo ainda outras instituições de natureza jurídica pública e privada. Foi assim testado um modelo conjunto de intervenção precoce dirigido a crianças em risco ou com alterações nas estruturas e funções do corpo e/ou com atraso no desenvolvimento. Esta iniciativa veio posteriormente a inspirar a criação do “Projeto Integrado de Intervenção Precoce”, vulgarmente apelidado de “PIIP de Coimbra” (Gronita, 2008).

A consciência do Estado sobre a necessidade de assegurar uma resposta pública integrada e multidimensional de apoio às crianças com deficiência ou em risco grave de

desenvolvimento em idade precoce, emergiu em Portugal de forma atípica, sendo um caso paradigmático de um agendamento (Despacho Conjunto nº 891/99) por pressão bottom

up.

Compreender como este tema se transforma em problema e como esse problema entrou na agenda política, passa necessariamente também por um aprofundamento dos antecedentes desta medida. Como foi anteriormente descrito, em Portugal a Intervenção Precoce não surgiu por iniciativa governativa, mas como corolário de um historial de experiências proactivas da sociedade civil que, embora tenham tido no início um caráter pontual, rapidamente se disseminaram pelo território nacional, originando a necessidade de regulamentação do ponto de vista jurídico. Paralelamente acresce a pressão continuada e progressiva da comunidade médica e/ou científica que, com base quer no benchmarking internacional, quer nas experiências realizadas até então em território nacional, forçam o agendamento desta medida. Esta situação intensificou-se também devido ao facto de a partir da década de 90 terem começado a surgir equipas de IP enquadradas juridicamente por diferentes diplomas, o que originava também diferenças ao nível dos modelos de intervenção.

Com o intuito de proceder à harmonização e regulamentação dos vários enquadramentos jurídicos ao nível da Intervenção precoce que, entretanto, foram sendo criados,144 em 1994 foi instituído um grupo de trabalho interdepartamental que incluía representantes do Ministério da Educação, do Ministério da Segurança Social e do Ministério da Saúde e ainda outros peritos externos e representantes das organizações das pessoas com deficiência. Depois de um longo período de incerteza e de tensões entre os atores institucionais relativamente ao modelo mais adequado de implementação da IP, ou seja, cinco anos após da criação do primeiro grupo de trabalho,145 o projeto-lei foi finalmente aprovado a 19 de outubro de 1999,146 tendo sido designado por Despacho

144 Em 1995 é aprovado o Despacho 26/95, de 28 de Dezembro, que regulamenta o programa "Ser Criança",

que resulta da ação conjunta entre os Ministérios da Saúde e Solidariedade e Segurança Social, concebido para enquadrar a intervenção junto das crianças em desvantagem ou risco e das suas famílias. Começam também a ser celebrados acordos de cooperação com a Segurança Social no âmbito da rede de serviços e equipamentos sociais. No Ministério da Educação, em 1997 é aprovado o Decreto-Lei 105/97, que enquadra a educação especial enquanto carreira educativa, surgindo em consequência as portarias n.º 52/97 e n.º 1102/97, de 3 de Novembro (DL Nº 254 I-B). Através desta última portaria, o Ministério da Educação começou também a realizar intervenção precoce.

145 O grupo de trabalho interdepartamental passou por duas fases distintas, o que na prática originou que

tivessem existido dois grupos de trabalho.

146 Entretanto, durante o período de 5 anos no qual os dois grupos de trabalho sobre intervenção precoce

tentaram chegar a acordo para a aprovação do Despacho Conjunto, surgiu o Despacho 26/95, de 28 de Dezembro, que veio regulamentar o programa "Ser Criança". Este programa resultou de uma parceria entre

Conjunto 891/99 (Ministérios da Saúde, Educação e Trabalho e Solidariedade). Este normativo, segundo Gameiro (2012), preencheu um vazio legal existente até à data no âmbito da regulamentação da IPI em Portugal. Estava assim finalmente instituído o primeiro sistema integrado de Intervenção Precoce em Portugal.

“No domínio da intervenção precoce, para crianças com deficiência ou em risco de atraso grave de desenvolvimento, têm vindo a desenvolver-se ações específicas, através de programas de apoio a crianças com necessidades educativas especiais e suas famílias, no âmbito da educação, da saúde e da ação social e em cooperação, designadamente, com as instituições de solidariedade social e cooperativas de solidariedade social […] Nesta perspetiva, reconheceu-se a necessidade de definir conceptualmente a natureza e objetivos da intervenção precoce e delinear um modelo organizativo integrado e de partilha de responsabilidades intersectoriais” (Preambulo do Despacho Conjunto 891/99).

Segundo Brandão (2007), no plano teórico, o Despacho Conjunto assume a concetualização de um modelo ecológico/sistémico de IPI, no qual a equipa e a família interagem como um todo na implementação do modelo. O documento concebeu intervenção precoce como “uma medida de apoio integrado, centrado na criança e na família, mediante ações de natureza preventiva e habilitativa, designadamente do âmbito da educação, da saúde e da ação social, com vista a (…) assegurar condições facilitadoras do desenvolvimento da criança com deficiência ou em risco de atraso grave de desenvolvimento (…), potenciar a melhoria das interações familiares (…), reforçar as competências familiares como suporte da sua progressiva capacitação e autonomia face à problemática da deficiência” (Artigo 2.º). Como se pode constatar, a componente familiar na IPI já se encontrava plasmada no Despacho Conjunto de 1999. Na conceção do normativo assenta também já uma abordagem integrada e articulada entre os ministérios da Saúde, Segurança Social, Educação e instituições privadas de solidariedade social, numa clara aposta na multidisciplinaridade, inter-setorialidade e complementaridade na intervenção. As parcerias e os serviços de proximidade são bastante valorizados no âmbito do Despacho Conjunto.

Este Despacho será posteriormente revogado pelo Decreto-Lei nº 281/2009, de 6 de outubro, resultante também das conclusões de um grupo de trabalho criado para o efeito. Como se referiu na Introdução, o Decreto-Lei nº 281/2009, de 6 de outubro instituiu o Serviço Nacional de Intervenção Precoce (SNIPI), medida de política, objeto da presente tese. Recorda-se que o SNIPI “(…) consiste num conjunto organizado de

os Ministérios da Saúde e da Solidariedade e Segurança Social. Por outro lado, começam a ser celebrados acordos de cooperação com a Segurança Social para a resposta social de “intervenção precoce”.

entidades institucionais e de natureza familiar, com vista a garantir condições de desenvolvimento das crianças com funções ou estruturas do corpo que limitam o crescimento pessoal, social, e a sua participação nas atividades típicas para a idade, bem como das crianças com risco grave de atraso no desenvolvimento” (Artigo1.º, nº1). Tal como acontecia no âmbito do Despacho Conjunto, o SNIPI centra a intervenção precoce na criança e na família. “Intervenção precoce na infância (IPI) é o conjunto de medidas de apoio integrado centrado na criança e na família, incluindo ações de natureza preventiva e reabilitativa, designadamente no âmbito da educação, da saúde e da ação social” (Artigo 3º, a). Recorde-se que o SNIPI tem como objetivos específicos a deteção, sinalização e Intervenção precoce com todas as crianças entre os 0 e os 6 anos, com risco ou alterações nas funções e estruturas do corpo, ou risco grave de atraso de desenvolvimento. A intervenção, após a fase da deteção e sinalização, é definida em função das necessidades da família. O apoio à família surge contemplado no Artigo 4º, d) do diploma, nomeadamente quando se refere a “apoiar as famílias no acesso a serviços e recursos dos sistemas da segurança social, da saúde e da educação”.

Este normativo emerge então como resultado do feedback político da implementação do Despacho Conjunto 891/99, de 19 de outubro e da necessidade de melhoria e consolidação organizacional do modelo de intervenção precoce anterior. O Despacho Conjunto não tinha previsto uma estrutura de comando que facilitasse a operacionalização uniforme da medida, razão pela qual coexistiam abordagens e entendimentos diferenciados sobre a implementação da mesma. Por outro lado, a entrada em vigor do Despacho Conjunto não tinha conseguido assegurar a universalidade no acesso à IPI.

“A experiência de implementação de um sistema criado ao abrigo do despacho Conjunto n.º 891/99, […], revelou a importância deste modelo de intervenção, mas constatou também uma distribuição territorial das respostas não uniforme, conforme as assimetrias geodemografias […] Com efeito, a necessidade do cumprimento daqueles princípios, nomeadamente o da universalidade do acesso aos serviços de intervenção precoce, implica assegurar um sistema de interação entre as famílias e as instituições e, na primeira linha, as da saúde, para que todos os casos sejam devidamente identificados e sinalizados tão rapidamente quanto possível.” (Preâmbulo DL 281/2009).

Uma outra área que o SNIPI se irá propor aprofundar por comparação com o Despacho Conjunto, prende-se com a melhoria da clarificação das competências e atribuições de cada um dos ministérios envolvidos na medida.

Quadro 9 – Distribuição das atribuições no âmbito do SNIPI

Fonte: Decreto–Lei nº 281/2009, de 6 de outubro.

O Plano individual da Intervenção Precoce (PIIP) não surge em 2009 como uma inovação do SNIPI. Esta figura já se encontrava no articulado do Despacho Conjunto n.º 891/99, de 19 de outubro. Contudo o DL 281/2009 vem conferir uma importância acrescida a este documento de atualização contínua tão estruturante e no âmbito da IP. As especificações do PIIP são assim revistas e aprofundadas no âmbito do SNIPI.

Com o intuito de coordenar o SNIPI, incluindo a implementação no terreno da medida, harmonizando práticas de sinalização e de intervenção, foi instituída uma estrutura de comando (Comissão de Coordenação) prevista no diploma e que não existia até então. Esta estrutura autónoma subdivide-se em cinco subcomissões de coordenação regionais, de acordo com a classificação geográfica de NUTS II. A intervenção junto das famílias é assegurada, na prática, pelas Equipas Locais de Intervenção (ELI). Estas equipas podem adquirir uma abrangência concelhia (NUTS III), supraconcelhia, agregando vários municípios, ou, no caso de municípios muito grandes e/ou com muito casos a apoiar, a intervenção da ELI poderá circunscrever-se apenas à freguesia.

Em jeito de síntese, a ANIP (2016) elenca as principais diferenças entre o período inicial de implementação da IPI em Portugal, anterior aos dois referidos normativos, e período pós organização da intervenção precoce:

Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social Ministério da Saúde Ministério da Educação i) Promover a cooperação ativa com as IPSS e equiparadas, de modo a celebrar acordos de cooperação para efeitos de contratação de profissionais de serviço social, terapeutas e psicólogos; i) Assegurar a deteção, sinalização e acionamento do processo de IPI; i) Organizar uma rede de agrupamentos de escolas de referência para IP, que integre docentes dessa área de intervenção, pertencentes aos quadros ou contratados pelo Ministério da Educação; ii) Promover a acessibilidade a serviços de creche ou de ama, ou outros apoios prestados no domicílio por entidades institucionais, através de equipas multidisciplinares, assegurando em conformidade o Plano Individual de Intervenção Precoce (PIIP) aplicável; ii) Encaminhar as crianças para consultas ou centros de desenvolvimento, para efeitos de diagnóstico e orientação especializada, assegurando a exequibilidade do PIIP aplicável; ii) Assegurar, através da rede de agrupamentos de escolas de referência, a articulação com os serviços de saúde e de segurança social; iii) Designar profissionais dos centros distritais do Instituto da Segurança Social, para as equipas de coordenação regional. iii) Designar profissionais para as equipas de coordenação regional; iii) Garantir que as medidas educativas previstas no PIIP sejam desenvolvidas através dos docentes da rede de agrupamentos de escolas que integram as equipas locais do SNIPI; iv) Assegurar a contratação de profissionais para a constituição de equipas de IP, na rede de cuidados de saúde primários e nos hospitais, integrando profissionais de saúde com qualificação adequada às necessidades de cada criança. iv) Assegurar através dos docentes da rede de agrupamentos de escola de referência, a transição das medidas previstas no PIIP para o Programa Educativo Individual (PEI), de acordo com o determinado no artigo 8.º; v) Designar profissionais para as equipas de coordenação regional

Quadro 10 – Comparação entre a abordagem inicial e atual de implementação da IPI