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CAPÍTULO II A PERTURBAÇÃO DO ESPETRO DO AUTISMO E A QUALIDADE DE VIDA DAS FAMÍLIAS

II.2 A Qualidade de Vida

II.2.1 Sobre o conceito de qualidade de vida (QOL)

“A qualidade de vida tem sido abordada ao longo das últimas décadas como um conceito que resulta de uma perceção subjetiva dos atores. Os modelos aplicados para apreciação e aferição têm evoluído a partir do momento em que se vislumbrou que os indicadores sociais de bem-estar

deverão ter um peso igualmente substantivo para se equacionar o desenvolvimento das sociedades, para além dos clássicos indicadores económicos” (Nogueira et al. 2013:37).

Segundo Galinha & Ribeiro (2005) apesar do conceito científico de bem- estar/qualidade de vida ser relativamente recente, pode considerar-se que as raízes históricas remontam ao período Iluminista do século XVIII, a partir do qual se passou a defender o desenvolvimento da pessoa humana e a felicidade individual, valores que substituíram o exclusivo serviço a Deus e ao Rei. Ainda de acordo com os mesmos autores, a sociedade é pela primeira vez encarada como um meio de proporcionar aos indivíduos a satisfação das suas necessidades pessoais, contribuindo assim para o bem- estar de cada um. Nesta linha de pensamento, Veenhoven (1996) constata que os princípios do utilitarismo103 nos séculos XIX e XX ajudaram a cimentar a ideia de que uma boa sociedade é aquela que consegue assegurar um bom nível de vida e de felicidade aos seus cidadãos. Para Diener et al. (1999) o conceito de bem-estar, como o entendemos hoje, foi criado por Wilson (1960). Galinha & Ribeiro (2005) adiantam que ao tentar aprofundar o conceito, “Wilson (1967) propôs-se estudar duas hipóteses do bem-estar, onde relacionou os conceitos de satisfação e de felicidade numa perspetiva Base-Topo (Bottom Up) – a satisfação imediata de necessidades produz felicidade, enquanto a persistência de necessidades por satisfazer causa infelicidade – e Topo-Base (Top Down) – o grau de Satisfação necessário para produzir Felicidade depende da adaptação ou nível de aspiração, que é influenciado pelas experiências do passado, pelas comparações com outros, pelos valores pessoais e por outros fatores – como ainda, atualmente, se discute na área do Bem-Estar Subjetivo”.

Em consonância com o trabalho de Diener et al. (1999), autores como Cummins (2000), Rapley (2003) e Sousa et al. (2007) salientam a década de 60 como um marco importante no interesse pelo estudo do bem-estar e da qualidade de vida, relacionando este facto com o desenvolvimento dos indicadores sociais.104 Assim, nesta época emergiu a constatação da necessidade de, no âmbito dos estudos comparativos entre países, começar a incluir alguns indicadores de desenvolvimento social diferentes das análises com base em indicadores económicos brutos, como por exemplo o PIB ou o PIB per-

103 O utilitarismo consubstancia-se numa abordagem de natureza filosófica e ética, tendo Jeremy Bentham

e John Mill como principais defensores. Valoriza as ações como boas quando têm por objetivo a felicidade humana e más quando assumem um objetivo contrário.

104 De acordo com Evans (1994), os indicadores sociais não abrangem todas as dimensões críticas numa

avaliação sobre a qualidade de vida. Uma das componentes importantes em falta relacionava-se com a noção de “qualidade de vida subjetiva”.

capita (Sousa, et al., 2007). Neste sentido, Evans (1994) é claro ao afirmar que, porventura, a razão principal para o incremento do estudo da qualidade de vida de uma determinada população esteve correlacionada com a perceção que se foi instalando na comunidade científica sobre as limitações da utilização em exclusivo de indicadores económicos para a medição do nível de desenvolvimento de um país.

De acordo com Sousa, et al. (2007), não se deve dissociar o impulso no estudo da qualidade de vida nos anos sessenta da influência e interesse manifestado pela ONU em conhecer e medir os padrões de vida nas diversas comunidades humanas, para além dos meros indicadores económicos. Este aspeto irá contribuir para a relevância e internacionalização da temática no meio académico, político e ideológico. Tal como se evidenciou no capítulo anterior, no qual se explorou o trajeto das políticas e da representação social face à deficiência, também a este nível a ONU assume um papel determinante.

A dimensão do conceito de qualidade de vida alargou-se assim muito para além da noção de bem-estar económico/financeiro, caracterizando-se por uma abrangência mais global, na qual se encontram plasmadas outras dimensões da vida dos indivíduos e dos territórios (Novo, 2003). Veenhoven (1996) entende que o conceito de “qualidade de vida” emerge procurando vincar o primado da condição humana mais ampla sobre apenas o bem-estar material. A qualidade de vida passa assim a integrar, gradualmente, perceções do foro individual, como o nível de satisfação em relação à vida familiar, conjugal, social e ambiental, entre outros domínios (Sousa, et al., (2007). Por outro lado, Fleck et al. (1997) enfatizam que o termo “qualidade de vida” irá adquirir uma outra notoriedade mediática ao integrar um conhecido discurso proferido em 1964 pelo então presidente norte-americano Lyndon Johnson, tendo este considerado que "these goals cannot be measured by the size of our bank balances. They can only be measured in the quality of the lives that our people lead.”105

Relativamente aos primeiros estudos empíricos sobre “qualidade de vida” no seu sentido mais amplo, Galinha & Ribeiro (2005) reportam como marcos a reter o trabalho de Gurin et al. (1960), nos Estados Unidos da América, no âmbito do bem-estar mental, tendo esta investigação, pela importância que assumiu, sido replicada na década seguinte, e os estudos de Andrews & Withey (1974; 1976) e de Campbel, Converse e Rogers (1976). Estes últimos trabalhos procuraram compreender a posição dos cidadãos dos EUA

105Lyndon B. Johnson, Madison Square Garden, New York, 31 October 1964, in http://logica.ugent.be/philosophica/fulltexts/25-2.pdf, consultada a 01-06-2013.

acerca da sua qualidade de vida, tendo sido igualmente desenvolvidas escalas de medição para este fim.

Embora o constructo conceptual de “qualidade de vida” se revele relativamente recente enquanto abordagem teórica no âmbito das ciências médicas, sociais e políticas, este já se encontra muito divulgado no meio científico (Guillemin et al., 1993; Mathias et

al., 1994; Seidl & Zannon, 2004). Contudo, a definição de qualidade de vida tem sido

objeto de uma acesa discussão entre os autores, continuando ainda a não existir uma delimitação clara e uma única definição consensualizada (Fleck et al., 1997; Spilker, 1996). De acordo com Sousa et al. (2007) a perceção individual sobre a qualidade de vida tende a ser condicionada por determinados fatores como o momento histórico e a realidade cultural em que é avaliada, pelo estado de desenvolvimento económico e tecnológico da sociedade em que o sujeito está inserido, pelo tipo de normas e valores dominantes, pela classe social, entre outros fatores. A este propósito, McGall (1980:222) entende que:

“(…) quality of life studies are at present in a state of considerable confusion. Not only do we not know what QOL is; we don't even know what category of thing it is. Is QOL a state of mind or a state of society? Does its definition vary from individual to individual, from culture to culture, from geographical area to geographical area, or is it the same for all people, everywhere? Is QOL measurable, and if so why do there continue to be profound differences of opinion over which social indicators are relevant to its determination?”

Para além das questões da subjetividade e da relatividade sociocultural na apreciação da qualidade de vida já mencionadas, outro aspeto importante a salientar prende-se com a utilização e apropriação do conceito por diferentes setores da sociedade, desde a saúde até à política, passando pela filosofia, cultura, religião, entre outros. Na opinião de Ventegodt, et al. (2003) todas as grandes religiões e filosofias concretizam um ideal conceptual de vida boa, vida com dignidade, ou de vida com qualidade. Tal significa que essa conceção é impactada por um conjunto de códigos morais, culturais e práticas de conduta que não deve ser subestimado. Por outro lado, segundo CRPG (2007), no âmbito da “qualidade de vida,” caberão também ideias como as de desenvolvimento sustentável, ecologia humana, bem como os ideais das sociedades democráticas, do desenvolvimento e dos direitos humanos. Deste modo, a operacionalização do conceito de QOL tem igualmente sido abordada de forma diferente, consoante a área de estudo em causa ou mesmo no interior de cada setor (Sousa et al., 2007). Para além desta visão transcultural e funcional da qualidade de vida, torna-se ainda importante observar o

caracter transversal desta variável ao longo de toda a vida de um determinado indivíduo (Fleck et al., 1997; Spilker,1996).

Em termos de síntese, e recorrendo a Ventegodt, et al. (2003), pode dizer-se que a “qualidade de vida” é uma apropriação iminentemente subjetiva e relativa, dependendo do contexto socio-ambiental em que se insere o sujeito, sendo considerados três grandes tipos na abordagem teórica à QOL: a qualidade de vida subjetiva, a qualidade de vida existencial e a qualidade de vida objetiva. O primeiro (QOL subjetiva), relaciona-se com o posicionamento individual de cada um face à sua própria qualidade de vida. O sujeito avalia a sua qualidade de vida de acordo com a sua visão de si mesmo, do mundo e dos problemas, impregnado dos seus sentimentos, conceitos valorativos e ambições pessoais. Perceber se uma determinada pessoa se encontra satisfeita com a sua vida e de uma forma geral feliz, são aspetos que refletem a dimensão subjetiva da qualidade de vida. Um segundo tipo de abordagem (QOL existencial), posiciona-se a um nível mais profundo. São evocadas neste âmbito as questões da realização pessoal em vários domínios, bem como as que estão relacionadas com a natureza mais profunda e idiossincrática do individuo. Esta dimensão da qualidade de vida readiciona-se com o desenvolvimento pessoal, espiritual ou religioso da pessoa. Por último, a QOL objetiva prende-se com a forma como a vida de uma pessoa é avaliada pelo mundo exterior. Esta visão é influenciada pelo contexto ambiental e cultural em que o individuo se encontra inserido. A qualidade de vida objetiva pode ser medida através de indicadores sociais relevantes ao nível do bem-estar que, contudo, podem divergir de sociedade para sociedade. A qualidade de vida objetiva inclui a análise de variáveis como o rendimento, o estado civil, a condição perante o trabalho, o estado de saúde, o relacionamento interpessoal, que inclui dimensões como o número, a intensidade e a carga afetiva ou relacional dos contactos pessoais, entre outras. Muitas vezes não há concordância entre os resultados obtidos na avaliação da qualidade de vida objetiva e subjetiva. Ventegodt et al. (2003) enfatizam que, se até mesmo em termos médicos pode de facto existir uma discordância entre um diagnóstico objetivo e a apreciação subjetiva que a pessoa faz da sua doença, com muito mais propriedade, tal pode acontecer ao nível de um conceito tão complexo como é o da qualidade de vida.

Não havendo espaço neste trabalho para uma representação exaustiva de toda a panóplia de conceções teóricas no domínio da qualidade de vida, até porque o foco da presente investigação prende-se essencialmente com a relação entre as políticas públicas e a qualidade de vida das famílias com crianças e jovens com PEA, voltaremos ainda a

esta temática, mas já de forma mais direcionada para a área da deficiência, no ponto seguinte.