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CAPÍTULO I O CAMPO DE ESTUDO DA DEFICIÊNCIA: OS CONCEITOS, A EVOLUÇÃO SÓCIO HISTÓRICA E AS POLÍTICAS

I.3 O século XIX e a emergência do “modelo médico” no campo da deficiência

No séc. XIX intensificou-se o modelo económico baseado no capitalismo industrial iniciado em meados do século anterior. No campo político os estados-nação tornavam-se o modelo político dominante, a urbe impunha-se ao mundo rural e, no campo da filosofia, a teoria positivista de Augusto Comte42 traduzia a prevalência do saber científico como modelo adequado à procura da verdade e do progresso. As pessoas com deficiência passaram também a ser entendidas como objeto de estudo para ciências como a medicina. É neste quadro que, pela primeira vez, a deficiência passa a ser levada em conta enquanto

41 A este nível, Winzer (1997), não tem dúvidas de que os princípios básicos que orientam a educação

especial foram elaborados durante o período do Renascimento.

42 Corrente de pensamento formulada em França por Augusto Comte. Para o autor, o conhecimento só pode

objeto científico (Crespo, 2011). Os avanços na medicina e os princípios iluministas e racionais que caracterizaram o século XIX permitiram desenvolver respostas no âmbito da saúde, proteção social e educação, o que contribuiu para reforçar os direitos civis e políticos das pessoas com deficiência, embora ainda através de um modus segregador que não privilegia a autonomia e a inclusão (Sousa et al. 2007). Nesta linha, Veiga (2006) refere que estes primeiros esquemas de proteção social destinados a pessoas com deficiência partiam de uma filosofia de base caritativa/protecionista, sem contemplarem uma visão reabilitadora que permitisse às pessoas com deficiência aspirar a desempenhar um papel ativo e útil na sociedade.43

Estas políticas embrionárias de proteção social do final do Século XIX inspiraram- se no ideário de construção do “Estado Providência Bismarkiano”.44 Pressionado não só pela influência cada vez mais vincada do movimento socialista internacional, bem como pelo Partido Social-Democrata alemão, Bismarck veio a promulgar um conjunto de medidas legislativas de proteção social (Pequito, 2009) de que se destaca a Lei do Seguro de Saúde (1883), a Lei do Seguro de Acidentes de Trabalho (1884) e a Lei da Reforma/velhice e da Incapacidade de 1889. Contudo, estas iniciativas não configuravam a proteção social como um direito de cidadania, mas como um seguro social, sujeito a uma determinada condição socioprofissional. Seguindo o exemplo alemão, essencialmente a partir dos finais do século XIX, outros países como a França, Noruega, Suécia, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia e também Portugal implementam igualmente algumas medidas de proteção social do mesmo tipo. Por esta altura (finais do século XIX), começa a desenhar-se e a desenvolver-se um conjunto de ajudas técnicas para apoio à locomoção, como cadeiras de rodas, bengalas, muletas, próteses e veículos adaptados. É ainda disseminado o uso da língua gestual para surdos e criado o sistema Braille. Por seu lado, a deficiência mental era entendida como um problema estritamente médico, passando a solução pela edificação de hospícios e hospitais públicos que, na realidade, não seriam mais do que grandes depósitos, pois não havia esperança de reabilitação daqueles que eram internados (Silva, 1986). Pessotti (1984) salienta a maior discriminação então existente em relação aos deficientes e doentes

43 Para Veiga (2006) no Século XIX não se considerava adequada a participação das pessoas com

deficiência no mercado de trabalho.

44 O termo Welfare State derivou do conceito alemão wohlfahrsstaat, que emergiu durante as reformas

levadas a efeito por Bismarck em 1883. Esta nova conceção do papel do Estado pretendia alargar as funções do Estado moderno, para além da garantia da lei, das fronteiras e da ordem, no sentido de serem assumidas também responsabilidades no âmbito do bem-estar dos cidadãos.

mentais, afirmando perentoriamente que a sociedade considerava-os seres perigosos, sendo por isso legitimada a vigilância contínua e apertada, bem como a reclusão em asilos ou hospícios. Bautista (1997) e Silva (1986)45 vão mais longe, ao afirmar que no século XIX predominava a convicção de que seria necessário proteger a pessoa considerada “normal” da não normal, mas também o contrário, i.e., preservar a pessoa com deficiência do contacto com a sociedade. O resultado de qualquer uma destas duas abordagens é o mesmo, ou seja, a segregação, a discriminação e a exclusão.

Uma situação comum no século XIX seria a exploração das pessoas com deficiência institucionalizadas. Doermer (1981) refere que algumas instituições exibiam publicamente as pessoas com deficiência com o fim de angariação de fundos ou simplesmente para satisfazer a curiosidade ou divertimento popular, tendo estas práticas ocorrido com alguma regularidade em toda a Europa até finais do século.

Veiga (2006) é claro ao afirmar que a institucionalização no campo da deficiência é sinónimo de segregação e preconceito. Para o autor a exclusão não se confinava apenas aos hospícios ou hospitais especializados. Também o modelo de ensino vigente optava pela separação das crianças com deficiência em escolas/institutos de educação especial. Ainda assim, independentemente deste desenho discriminatório do sistema educativo, alguns cientistas sociais descrevem esta fase como um passo muito positivo para um ideário inovador de estender a componente educativa às crianças com deficiência. Esta prática veio a consolidar o sistema de educação especial. Nesta conjuntura, algumas pessoas com deficiência, embora tenham ganho o acesso ao ensino, ainda teriam de se manter fora do setor regular, dependendo em boa parte das iniciativas do setor privado.

Dias (2008) apresenta como exemplo paradigmático do tipo de preconceito com que se deparava a pessoa com deficiência no século XIX a obra literária do escritor Victor Hugo “O Corcunda de Notre Dame”, publicada em 1831. Nela, a vida do “ser esteticamente diferente” é apresentada como uma vivência solitária e desumana, objeto de rejeição pela sociedade. No mesmo sentido apontam os trabalhos de Horta (2002) e Pereira (2008), ao descreverem a inferiorização do “outro diferente”, na cultura das sociedades ocidentais a partir do século XVIII. Este “Outro”, quer se tratasse de um negro das colónias ou de uma pessoa com deficiência, é reduzido à condição de sub-humano, servindo esta visão discricionária da diferença e da inferioridade como pretexto para legitimar os impérios coloniais.

45 Para Silva (1986) as pessoas com deficiência eram aprisionadas, pois o contacto social era tido como

Para Sousa et al. (2007) a deficiência ou incapacidade durante o século XIX e início/meados do século XX é encarada como uma fatalidade de ordem pessoal, um problema individual. Neste sentido, Foucault (1975) e Barnes (1998) apontam este período histórico como o da emergência do conceito de individualização e medicalização do corpo e da mente da pessoa com deficiência. Esta abordagem remete para o “modelo biomédico” que irá vigorar como predominante nas representações teóricas e sociopolíticas sobre a deficiência no Século XIX e até meados do século XX (Oliver, 1990; Barnes, 1999; Veiga, 2006; Sousa et al. 2007; Thomas, 2007; Salvado, 2008; Fontes, 2009; Sá, 2012). Nesta linha de pensamento, Rioux, (1997) e Veiga (2006) adiantam que, com base nesta conceção teórica, a deficiência é unicamente determinada por fatores de ordem mental ou física, os quais podem ser prevenidos e tratados com recurso à intervenção da medicina, da genética ou da biologia, nomeadamente por parte de profissionais de saúde qualificados. Uma segunda perspetiva em relação à análise do modelo médico prende-se com a abordagem funcional. As incapacidades funcionais devem ser tratadas através de serviços de reabilitação que capacitem ao máximo as pessoas com deficiência.

Nesta acessão, a reabilitação está relacionada com a capacidade de potenciar as competências das pessoas com deficiência, tornando-as mais autónomas de modo a converterem-se em membros ativos e produtivos de uma determinada sociedade (Veiga, 2006). Entende-se que as limitações decorrentes da deficiência ou incapacidade devem ser eliminadas, sendo tratadas através de métodos de reabilitação funcional, tentando assim aproximar as pessoas com deficiência de uma condição próxima das “pessoas normais”. Pretende-se então criar programas terapêuticos que visem a “normalização” das pessoas com deficiência segundo os padrões convencionados do que é socialmente aceite como “normal”, mesmo que para isso, por serem considerados inadequados à luz deste entendimento coletivo de normalidade, se tenha que investir na alteração e correção de comportamentos e atitudes genuínas destas pessoas (Thomas, 2007).

O significado e o papel representado pelas pessoas com deficiência ou doença crónica numa determinada sociedade, são explicados pela teoria do desvio social, na medida em que a incapacidade resultante dessa condição origina uma perda de valor produtivo para a sociedade (Veiga, 2006; Salvado, 2008). Desta forma, depois de esgotadas todas as possibilidades de normalização da pessoa, a solução a adotar deveria passar pela institucionalização. Neste contexto, o papel do médico torna-se preponderante no processo de reabilitação (Salvado, 2008). A atividade dos profissionais de saúde

consiste, portanto, em percecionar e diagnosticar as limitações, problemas e handicaps das pessoas, providenciando os meios e as respostas de reabilitação adequadas às necessidades de cada caso (Slee, 1998). A atenção centraliza-se em cada tipo específico de deficiência e em cada caso individual, tendo, no entanto, por base o objetivo geral de diminuir a prevalência das incapacidades na sociedade. Os métodos utilizados são essencialmente biológicos, como intervenções cirúrgicas, terapias, abordagens medicamentosas, exames pré-natais ou intervenções genéticas (Veiga, 2006). O interesse dos especialistas permaneceu confinado ao problema da pessoa, ignorando praticamente as causas sociais que poderiam estar associadas, bem como os fatores ambientais.

Do ponto de vista da proteção social, este paradigma médico influenciou significativamente a organização dos mecanismos de acesso às prestações e outros benefícios sociais, por os condicionar à atribuição de um determinado grau de incapacidade (Barnes, 1999), situação que persiste no século XXI, em Portugal e em grande parte dos países da Europa e fora da Europa, ao nível da avaliação e certificação médica do estatuto de pessoa com deficiência. Assim, os sistemas públicos e privados de proteção social continuam ainda hoje, maioritariamente, a recorrer às avaliações estritamente médicas para atestar o direito das pessoas às prestações sociais previstas no âmbito da deficiência, às pensões de reforma por invalidez, às indemnizações por acidentes de trabalho, aos benefícios fiscais, entre outras medidas de apoio social existentes em cada país.

No âmbito do paradigma médico que se tem vindo a descrever, não existe uma conceção sociopolítica da deficiência. Tudo se resume a uma questão de reabilitação individual da pessoa. Assim, no século XIX, as pessoas com deficiência/doença mental, por não gerarem grandes espectativas de cura ou reabilitação, seriam maioritariamente internadas em grandes instituições, os hospícios que seriam pouco mais do que meros depósitos de seres humanos. Terão sido o destino provável de muitas pessoas com PEA. Nesta altura já se começa, porém, a falar de esquizofrenia e de esquizofrenia infantil, perturbação esta que, anos mais tarde, já no século XX, passará em muitos dos casos a ser descrita como autismo infantil.

I.4 A evolução da abordagem à deficiência no século XX: do modelo médico ao