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CAPÍTULO I O CAMPO DE ESTUDO DA DEFICIÊNCIA: OS CONCEITOS, A EVOLUÇÃO SÓCIO HISTÓRICA E AS POLÍTICAS

I.1 O debate conceptual e o enfoque diferenciado no âmbito da deficiência

“Antes de constituir um problema conceptual, a deficiência constitui um problema social envolvendo um amplo conjunto de realidades (práticas e simbólicas) delicadas quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista da identidade dos sujeitos em causa. A questão conceptual ou terminológica, tornando-se ela própria elemento do problema social, dados os efeitos das classificações que institui, ganha uma importância acrescida” (Capucha et al., 2005b:21).

A complexidade e multidimensionalidade do conceito de deficiência e as suas fronteiras nem sempre fáceis de circunscrever com exatidão, constituem um dos motivos porque tem sido objeto de diferentes definições e abordagens teórico-metodológicas. Assim, em termos conceptuais e jurídicos, a definição de “deficiência”, ou de “pessoa com deficiência”, nunca foi consensual, continuando atualmente a variar de sociedade para sociedade, inclusive sectorialmente, dentro de cada país. Uma das classificações relativamente à deficiência amplamente divulgada, a International Classification of

Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH),25 foi publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1980, no âmbito da Resolução WHA29.35 de Maio de 1976. A ICIDH veio estabelecer uma distinção operacional entre os conceitos de

Deficiência, Incapacidade e Desvantagem. Segundo a ICIDH, a “deficiência” está

relacionada com uma perda de substância ou alteração de uma estrutura ou função do corpo, a “incapacidade” resulta de uma limitação (resultante de uma deficiência),26 parcial ou total, da capacidade da pessoa para exercer uma determinada atividade e a desvantagem (handicap) remete para as perdas, limitações ou interdições de um determinado indivíduo em resultado de uma deficiência ou de uma incapacidade, facto que limita e circunscreve o seu desempenho e participação social, tendo em conta os padrões médios considerados normais do contexto em que se inscreve socialmente.

Apesar do passar dos anos, inclusivamente depois da aprovação pela OMS da Classificação Internacional de Funcionalidade Humana (CIF), a reflexão e o debate a nível internacional mantêm-se “acesos” até aos dias de hoje (Degener, 2006). Com a aprovação da CIF em 2001, o conceito de “deficiência” é desvalorizado em detrimento das novas definições de funcionalidade e de incapacidade humana que emergem com esta

25 http://whqlibdoc.who.int/publications/1980/9241541261_eng.pdf, página consultada a 07-04-2013. 26 O conceito de incapacidade no âmbito da CIF é mais abrangente, não limita a causa da incapacidade à

classificação.27 A funcionalidade e a incapacidade humanas passam a ser concebidas como uma interação dinâmica entre os estados de saúde (doenças, perturbações, lesões, traumas, etc.) e os fatores contextuais (OMS, 2004). A CIF vem assim acentuar a importância dos fatores ambientais na funcionalidade do individuo, fator este que remete, nomeadamente no caso das deficiências físicas, para uma diferenciação na avaliação do grau de funcionalidade da pessoa, i.e., este poderá ser maior ou menor dependendo dos condicionalismos contextuais que poderão constituir barreiras à sua participação. Atente- se ao seguinte exemplo: um indivíduo de mobilidade reduzida que se desloque em cadeira de rodas terá uma funcionalidade diferente consoante viva num prédio com elevador, com uma entrada acessível, numa cidade com transportes também acessíveis e sem barreiras arquitetónicas, ou habite, por exemplo, num 3º andar sem elevador, ou numa zona rural, sem transportes adaptados às suas necessidades. Assim, o grau de funcionalidade e a participação social do indivíduo com deficiência, muitas vezes, não depende tanto da sua deficiência ou incapacidade, mas sobretudo do contexto ambiental em que se insere e das ajudas técnicas de que dispõe.

Independentemente desta tentativa de uniformizar e de harmonizar conceptualmente a compreensão do fenómeno da deficiência/incapacidade à luz do paradigma da CIF, continua a não existir uma definição jurídica internacional “única” (de consenso universal) de deficiência, nem tão pouco ao nível dos países da União Europeia, continuando ainda muito em foco em determinados setores a abordagem da ICIDH (Degener, 2006). Nesta linha de pensamento, Sousa et al. (2007), vêm corroborar a ideia de que em todos os estudos recentes desenvolvidos nesta área a dificuldade de comparabilidade estatística internacional constituiu sempre um problema a considerar, independentemente do organismo produtor da informação.28 Poder-se-á então perguntar: o que é comparável e o que não é comparável quando se estuda o fenómeno da deficiência/incapacidade a nível internacional? Como poderá o investigador assegurar-se de que está a comparar “coisas que são comparáveis”? Continuando a discutir e a problematizar a questão da harmonização dos conceitos nesta área, salienta-se a disparidade encontrada nas legislações dos países da OCDE para a determinação do grau de incapacidade a partir do qual o indivíduo passa a ser considerado uma “pessoa com deficiência” e, consequentemente, objeto de medidas de proteção/compensação

27 A CIF foi criada com a intenção de substituir a International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH). Contudo, ainda hoje prevalecem em simultâneo as duas classificações.

decorrentes dessa incapacidade. No seguimento destas preocupações sobre a complexidade na uniformização da avaliação da deficiência, Marin (2004) alerta ainda para o facto da avaliação da deficiência/incapacidade ser, muitas vezes, pouco sustentada cientificamente e até subjetiva. Esta subjetividade existe para o autor, não só no momento da avaliação da gravidade e irreversibilidade do estado de saúde da pessoa, fator que determina o seu grau de incapacidade, mas também na forma como essa incapacidade afeta o desempenho do indivíduo nas tarefas quotidianas e na sua participação social.

Também no âmbito doméstico de cada país esta situação de estiramento concetual pode ser observada. Em Portugal, a atribuição do estatuto de “pessoa com deficiência/incapacidade” depende ainda hoje do critério utilizado em cada contexto e por cada instituição com capacidade para tal. Sendo certo que existe um documento transversal apelidado de “Certificado Multiusos”,29 emitido pelo Ministério da Saúde, ao qual é reconhecida a competência legal para a determinação de um determinado grau de incapacidade, o facto é que este documento não se aplica a todas as situações. No âmbito do certificado multiusos a avaliação da incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, tabela esta que não leva em conta o modelo biopsicossocial da avaliação da funcionalidade humana, emanado da CIF, baseando a classificação e a atribuição do grau de incapacidade no modelo médico, consubstanciado ainda na antiga classificação ICIDH. Por outro lado, a Certidão Multiusos apenas considera “pessoa com deficiência,” com direito a deduções de âmbito fiscal, o/a cidadão(ã) a quem foi atribuído/a uma incapacidade igual ou superior a 60%. Contudo, a conceção de pessoa com deficiência ao nível da Segurança Social, quer no que respeita ao acesso a prestações sociais, incluindo a pensão de invalidez, quer no âmbito das respostas sociais que integram a rede de serviços e equipamentos, rege-se por critérios diferentes. No caso da atribuição de prestações sociais, na maioria das situações, a condição de recursos prevalece sobre o grau de incapacidade, não sendo exigido o certificado multiusos, mas apenas um atestado médico para que o beneficiário possa receber essas prestações. No que concerne à atribuição da pensão de invalidez, o

29 O Certificado Multiusos, cujo nome oficial é Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, é uma

declaração médica que comprova a situação e grau de Incapacidade, emitida em resultado de uma Junta Médica. É apelidada de Multiuso porque poderá ser usada como comprovativo para requerer vários direitos ou benefícios sociais.

certificado multiusos também não é válido, cabendo ao requerente sujeitar-se a uma outra avaliação, neste caso, por uma junta médica no âmbito da Segurança Social.

Não obstante as diferenças apresentadas e as dificuldades consensualmente reconhecidas relativamente ao estiramento concetual do que se entende por pessoa com deficiência ou incapacidade, organizações como a OCDE, a ONU ou o Eurostat têm vindo a produzir relatórios comparativos sobre a evolução do fenómeno nos vários países, evidenciando quais as fontes da informação estatística, os conceitos e critérios utilizados para a produção e obtenção dos dados e a metodologia de apuramento dos mesmos. Com a necessária prudência, que advém das considerações anteriores, segundo o último relatório da OMS, World Report on Disability, de 2011, estima-se que existam atualmente em todo o mundo mais de um bilião de pessoas com algum tipo de deficiência ou incapacidade,30 das quais, cerca de 200 milhões têm dificuldades acrescidas de funcionalidade (OMS, 2011). Também a nível europeu a questão das estimativas da população com deficiência não é objeto de consenso, variando conforme a fonte e em função do conceito de deficiência/incapacidade utilizado. A Comunicação da Comissão Europeia “Rumo a uma Europa sem Fronteiras”, em 2000, estimou uma população de 36 milhões de pessoas com deficiência a residir no espaço comunitário. Anos mais tarde, o Fórum Europeu da Deficiência (FED) estimou que esse valor pudesse ascender aos 50 milhões, enquanto a mais recente Estratégia Europeia para a Deficiência (2010-2020), refere existir cerca de 80 milhões. Este último valor apoia-se claramente num conceito mais lato que engloba a deficiência e a incapacidade à luz do novo paradigma resultante da aplicação da CIF.

Embora a deficiência/incapacidade seja atualmente considerada uma problemática de dimensão global que atravessa todos os continentes e classes sociais, a sua prevalência não é igual em todas as latitudes, variando igualmente de acordo com o rendimento das famílias (OMS, 2011). A condição socioeconómica das sociedades e das famílias influi na incidência da deficiência/incapacidade como demonstram os dados conhecidos. Segundo o World Health Survey (2002–2004),31 também da ONU, a prevalência da deficiência/incapacidade é superior nos países mais pobres (quase que duplica), nos indivíduos do sexo feminino, no grupo etário com mais de 60 anos, nas zonas rurais e nas

30 O documento utiliza o conceito mais amplo de incapacidade com base na CIF.

31 http://www.who.int/healthinfo/survey/en/, dados sistematizados no quadro 2.1 do World Report on

pessoas com menos rendimentos. Autores como Abberley (1987), Jenkins (1991), Morris (1991), Barton (1993), Capucha (2005a), Sousa et al. (2007), Allen (2007), Portugal et

al. (2010), corroboram esta heterogeneidade geográfica e social na prevalência da

deficiência.

“As pessoas com deficiência encontram-se entre os mais pobres dos pobres nas diversas sociedades, constituindo, para a realidade ocidental, uma parte significativa daquilo que se costuma designar por terceiro mundo interior, ou seja, o mundo constituído pelos grupos populacionais socialmente excluídos e economicamente desprotegidos nos países desenvolvidos” (Portugal et al. 2010:14).

No seguimento deste ponto de vista, Oliver (1996) e Pereira (2008), conferem igualmente destaque nos seus estudos à problemática da invisibilidade social e política da deficiência.

“Continuamos a olhar para elas e não as vemos. Quando as vemos, tendemos a aceitar as narrativas hegemónicas que sobre elas se produzem: que são pessoas com um problema individual aportado no seu próprio corpo, que é uma tragédia e um infortúnio pessoal, que a sociedade e a organização social nada têm a ver com isso” (Pereira, 2008:11).

Embora, segundo a OMS, as denominadas deficiências congénitas tenham vindo a diminuir graças a um melhor e mais generalizado diagnóstico pré, peri e pós-natal, segundo alguns estudos e relatórios recentes32 o número total de pessoas com deficiência continua a aumentar a nível mundial. Na realidade, tem-se verificado o aumento significativo das deficiências adquiridas, resultantes das intituladas “doenças da civilização” como as doenças mentais, diabetes, doenças cardiovasculares, entre outras, que, por limitarem a participação social das pessoas são, à luz da nova classificação da funcionalidade - CIF, contabilizadas em conjunto com as deficiências tradicionais. Outra das preocupações dos últimos anos, passa pela possibilidade de se continuar a assistir a nível mundial a um progressivo aumento da incidência da deficiência/incapacidade em virtude do fenómeno do envelhecimento populacional, principalmente nas sociedades ocidentais. Esta situação proporcionará um risco acrescido de um aumento significativo da população com deficiência/incapacidade em idade avançada, pela via de um proporcional aumento da incidência de doenças crónicas, cancro e das doenças do foro mental ou psiquiátrico, incluindo as neurodegenerativas (OMS, 2011). Abberley (1987) refere que fatores como a poluição ambiental, determinados padrões de consumo, stress laboral, más nutrições, entre outros fenómenos típicos das sociedades modernas, podem

ocasionar doenças prolongadas e situações incapacitantes. Por outro lado, os acidentes rodoviários e as guerras em muitas zonas do globo continuam a constituir causas diárias para novas deficiências adquiridas. Nos países em vias de desenvolvimento a desinformação, o isolamento, a superstição e o medo continuam a condicionar e a retardar o desenvolvimento das pessoas com deficiência.