• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO IV – A MATERIALIZAÇÃO DA ÉTICA

4.1 AS RAZÕES DA AÇÃO NA VOZ DOS MILITARES

4.1.1 Jango e a ameaça comunista

O movimento comunista no Brasil é analisado de forma detalhada e colocado como o grande vilão das instituições democráticas que, para chegar ao poder, seria capaz de utilizar-se dos mais diferentes meios, fossem eles legais ou não. A utilização do termo “democracia” pelos depoentes de 2003 e pelos articuladores do Projeto ORVIL, significava, nesse momento, exclusivamente, a luta contra o sistema comunista. Portanto, ser democrata, na análise desses militares, compreende ser unicamente anticomunista.

O governo de Goulart, iniciado em 1961, na visão dos militares, apesar de estar dentro da legalidade, era mais uma parte da estratégia utilizada pelos comunistas para tomar o poder e implantar um novo regime político. Segundo a análise feita pelos militares, naquele momento o Partido Comunista do Brasil (PCB) utilizava o modelo Kruschev, que consistia em uma revolução a ser feita pela via pacífica. Assim, muito embora não fosse a única maneira que o partido considerava para atingir seus objetivos, com a chegada de Jango à presidência, após a renúncia de Jânio Quadros, por ora parecia ser a fórmula mais adequada. Para os autores do Projeto ORVIL,

[...] Assumindo Jango, o PCB declarou aberta a perspectiva real de ser atingido o seu primeiro objetivo estratégico, isto é, a implantação de um

governo nacionalista e democrático (primeira etapa da revolução). Do mesmo modo, apontava sempre, de acordo com a sua linha política ‘etapista’, para o seu objetivo estratégico final, a implantação de um governo socialista, do tipo ditadura do proletariado, ante-sala do comunismo [...] (PROJETO ORVIL, 1986, p. 57).

O Governo de João Goulart, analisado pelos militares, representava uma ameaça à ordem do país, por tratar-se de um político fácil de ser manipulado por forças que não tinham nenhum compromisso com a democracia. Isso facilitava o trabalho do partido comunista, que via o momento como ideal para articular estratégias sutis rumo ao socialismo.

Entre essas atividades do PCB, os militares apontam para o perigo das ações que buscavam a mobilização das massas em torno da causa que o partido defendia. Citando um documento produzido pelo PCB,74 eles apresentam quais seriam as táticas utilizadas pelo partido, que tinha como objetivo:

[...] - defender a realização de um plebiscito sobre as modificações a serem introduzidas na Constituição; - apoiar o lançamento da Frente de Libertação Nacional, primeira tentativa de vulto para o estabelecimento de uma frente- única das esquerdas; - apoiar os movimentos grevistas; - buscar o domínio sindical [...] (PROJETO ORVIL, 1986, p. 58).

A manobra do PCB, na análise do Projeto ORVIL, não parava por aí, mas se estendia também em relação às políticas econômicas e para as relações externas do país, que não se limitavam à possibilidade de implantação do socialismo apenas pela via pacífica. Com isso, os comunistas objetivavam nessa etapa

[...] mobilizar as massas em torno de diversos eixos táticos, tais como: o restabelecimento de relações diplomáticas com a URSS, a solidariedade ao povo cubano, a suspensão da remessa de lucros para o exterior, o combate à carestia com uma política financeira livre das imposições do FMI, o congelamento dos preços dos produtos de consumo popular, a defesa das estatais, a liberdade e a autonomia sindical, a reforma agrária radical, o registro legal do Partido e o direito de voto aos analfabetos e aos soldados [...] (PROJETO ORVIL, 1986, p. 58 e 59).

É recorrente, entre os entrevistados do projeto de 2003, apontarem a ameaça comunista como fator que justificou a ação interventora. Nas respostas às perguntas a respeito do comunismo, é freqüente fazer-se menção aos acontecimentos da

74

O documento a que se referem os militares é uma Resolução baixada pelo Comitê Central do Partido Comunista, publicada na Revista Novos Rumos, n.º 143, de 3 a 9 de novembro de 1961.

década de 30 para explicar o contexto político que antecedeu a queda de Goulart. A ferida, aberta em 1935, parece que ainda não havia cicatrizado plenamente em 1964, e uma atitude enérgica é, em todo tempo, vaticinada pelos articuladores dos dois projetos como a solução que evitou uma nova “tragédia”.

O governo João Goulart, com sua simpatia às idéias socialistas, repaginava na cabeça dos chefes militares de 1964 um capítulo da história que a instituição anualmente lembrava como sendo um ato de covardia, de insubordinação dos que praticaram a violência e de tristeza pela memória dos que “inocentemente” haviam tombado. Como o que se vê na nota publicada um ano após o episódio de 1935, onde o General de Divisão João Gomes Ribeiro Filho, então Ministro da Guerra, anunciava

[...] sem ordem não pode haver progresso [...] evoquemos, pois, a memória dos que, justamente há um ano, encontraram a morte no cumprimento do dever, rememorando-os moralmente redivivos, cheios de fé e ardor militar [...] Glorifiquemos, portanto, no dia de hoje os intemeratos camaradas que, a 27 de novembro de 1935, ofereceram a vida, em holocausto à lei, à ordem e à legalidade [...].75

Em 1945, o Ministério da Guerra publicou, por meio da imprensa militar, uma carta assinada pela senhora Balbina Lopes Leila Bragança, mãe de um capitão do Exército que havia sido fuzilado por não aderir a um movimento de insurreição na Escola de Aviação, na qual comandava um corpo de instrução (CARTA, 1935). No texto de título: “Carta da Progenitora do Capitão Benedicto Lopes Bragança aos Comunistas”, a mãe chorava a morte do filho e ao mesmo tempo exaltava seu heroísmo em lutar contra o comunismo

[...] Desgraçado: Que fizeste do meu filho? Que mal te fez ele? Mataste-o impiedosamente pela tua ambição de mando e de riqueza [...] Assassino. Mataste meu filho, que àquela hora no cumprimento do seu dever velava, enquanto tu, maldito, demente idealista sacrilégio, feria tua – Grande Mãe – (Brasil) Malvado, se tanto podes juntes com tua Madrasta – Rússia- e devolva meu filho! [...] O Brasil inteiro, e muito especialmente Minas, demonstrou nas homenagens que lhe tributaram nos funerais. E tu, qual será o teu fim? Certamente na pupila do olho de Moscou. Traidor. Assassino. Maldito, mil vezes maldito (CARTA..., 1935, grifo nosso).

75

Ordem do Dia do Exército, de 27 de novembro de 1936 - transcrito do Boletim do Exército n.º 68, de 10 dez. 1936.

Com legendas, como: “Lembrai-vos de 35”, os militares passaram a, anualmente e em solenidades internas, fazer menção aos acontecimentos de 1935. Em 1956, o Ministro da Guerra Henrique Teixeira Lott escrevia:

[...] No dia em que o Exército, como toda a Nação, rende homenagem à memória dos que galhardamente defenderam com a vida a sobrevivência do Brasil, só uma atitude nos cabe: afirmar-lhes, numa oração, que o Exército não os esquece e que saberá, em qualquer tempo, seguir-lhes coeso e resoluto o exemplo viril [...].76

Mais do que a perda humana, 35 representava o ápice de onde poderia chegar-se com a quebra da hierarquia e da disciplina dentro duma instituição militar. “[...] O Brasil já havia recebido, na Intentona Comunista de 1935, um sinal muito forte, diria mesmo, o primeiro sinal de que poderia ocorrer alguma coisa muito grave [...]” (MOTTA, 2003, p. 63).77 “Na Intentona de 1935, os comunistas tomaram o poder no Nordeste, durante três ou quatro dias, não me lembro, mataram e assassinaram os nossos companheiros [...]” (MOTTA, 2003, p. 101).78

Barrar o movimento comunista, que se espalhava pelos diferentes setores da sociedade, inclusive dentro das Forças Armadas em 1964, representava curar uma “chaga”, que nos últimos trinta anos incomodava a memória militar.Significava fazer justiça aos que sacrificaram suas vidas quando se opuseram ao movimento deflagrado em 35.

O que se percebe na análise dos discursos é que a aversão dos militares pelo sistema comunista, que pode ser explicada por inúmeras razões, se dá pela forma como ele chegou aos quartéis, causando mortes, solapando a ordem e promovendo a inquietação no momento em que os chefes militares buscavam uma nova identidade para a instituição.79 Este lado do movimento se mostra muito mais relevante para os militares que falam do comunismo do que por uma possível

76

Ordem do dia, de 27 de novembro de 1956 - transcrito do Boletim do Exército nº 49, de 8 de dezembro de 1956.

77

Palavras do General de Exército Alacyr Frederico Wenerque, em 1964. Como Tenente Coronel era Adjunto do Estado Maior do Exército (MOTTA, 2003, p. 63).

78

Palavras do General de Exército Rubens Mário Brum Negreiros, que na ocasião, como Tenente Coronel, pertencia ao Estado Maior do General Augusto Cezar Muniz Aragão.

79

incompatibilidade teórica. Experiências de outros países mostram que a doutrina militar, baseada na disciplina e na hierarquia, pode ser perfeitamente ajustada à filosofia do comunismo.

Outra questão que explicaria a ferrenha oposição dos militares em relação ao comunismo reside na intensa propaganda que Vargas havia promovido contra o sistema nos anos trinta80. Os militares de 64 conviveram em seus anos de formação profissional com essa construção contrária às idéias do comunismo, que eram insistentemente anunciadas pelos meios de comunicação como inimigas da liberdade, da fé e da ordem.81