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CAPÍTULO II – A ÉTICA CASTRENSE E SUA CONSTRUÇÃO

2.4 O PESADELO CHAMADO CANUDOS

Quem poderia imaginar que um país que bravamente havia desfeito as pretensões de um inimigo (O Paraguai), que assombrou a América do Sul na segunda metade do século XIX, e que ameaçava a Coroa com invasões a seu território, fosse escrever seu mais triste e indesejado capítulo da história ante a um “inimigo” cuja origem não provinha de além fronteira? Quando Antônio Conselheiro e seus seguidores deram seus primeiros sinais de existência, todos pensavam que não passava de uma daquelas pequenas agitações e que seria facilmente abafada pela força militar. Mas o que sucede é um episódio que deixaria profundas marcas na trajetória da instituição militar. Em um ano de combate, cerca de cinco mil soldados são mortos no sertão baiano. O Conflito durou dois anos e Quatro Expedições foram necessárias para varrer o sonho daquela comunidade religiosa e “salvar a República”.

O Exército sai da Guerra de Canudos ferido em sua psique (MCCANN, 2007) e com a certeza de que precisava urgentemente se profissionalizar. Muitos dos oficiais, que, desde o fim da Guerra do Paraguai já apontavam esse caminho, haviam morrido sem conseguir seu intento. Cabia a essa nova geração a missão de levar à frente um longo processo de reestruturação da Força, que, em sua essência, pedia

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O Escritor Euclides da Cunha – o exemplo mais clássico dessa afirmação – em 1886 é expulso da Escola Militar de Realengo por protestar contra a presença do Ministro da Guerra. Com a Proclamação da República ele retorna à Academia, mas abandona definitivamente em 1896, para exercer a profissão de engenheiro e jornalista.

um corpo de oficiais voltado estritamente às táticas de guerra. Canudos colocou às claras algumas evidências da falta de preparo do Exército.

Entre os problemas que o Exército enfrentou em Canudos, os mais fáceis de serem apontados são: (1) ausência de um serviço de informação capaz de fornecer dados elementares do inimigo para o planejamento de um combate eficaz; (2) inexistência de um serviço de subsistência, a fim de manter a tropa devidamente alimentada para a guerra; (3) falta de continuidade nas ações quando da substituição dos comandantes que subestimavam ou ignoravam a existência dos Relatórios feitos por seus antecessores.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma intensa batalha interna, no sentido da reconstrução e estabelecimento de um papel adequado para o Exército dentro da sociedade brasileira. Tarefa que não se apresentava fácil para os chefes militares, que, a despeito das diferenças que alimentavam entre si, guardavam o consenso de que era preciso mudar.

A Criação do Estado Maior do Exército40 foi um passo importante, no sentido de planejar, articular e concentrar as diferentes idéias que surgiam. De qualquer maneira, Canudos, e mais tarde o Contestado, mostra-nos que o país continuava atribuindo ao Exército o papel de interventor nas causas internas. O sonho da República, idealizado pelos militares, foi abalado por esses acontecimentos. No entanto, o papel de poder moderador, que, para Stepan (1975), os militares herdaram do Império, continuava a dar sinais de vida no imaginário político do Brasil do século XX.

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A Ordem do Dia n.º 778, de 31 de outubro de 1896, publicou a lei que criou o Estado Maior do Exército, ao qual, inspirado no modelo do Exército Alemão, caberia a tarefa de reestruturação do Exército. A necessidade de modernização desejada pelos oficiais pode ser percebida no Relatório do Ministério da Guerra, de 1895, quando diz: “[...] Quase todas as repartições, todos os serviços complementares da administração da guerra, têm organização antiquada que não condiz com as exigências dos progressos da ciência militar e todos em completa desconexão [...]” (ESTEVES, 1996, p. 13).

A Revolta da Escola Militar41 em 1904 mostrava que medidas urgentes precisavam ser tomadas no sentido de colocar o Exército nos trilhos da disciplina e da hierarquia. O comando do Exército não esperou muito e fechou a escola imediatamente, contudo essa medida não resolvia os problemas da instituição. A disciplina era uma das principais preocupações dos chefes militares na transição do século XIX para o século XX. Em 1895, o Ministro da Guerra escreve ao Presidente para expressar sua preocupação com os rumos que a instituição seguia. Para o Ministro, a disciplina só seria alcançada se houvesse investimentos estruturais que dessem aos militares o sentimento de valorização pela profissão.

Senhor Presidente, é tempo de cuidar-se em dar ao Exército Nacional organização compatível com o atual regime democrático e de modo a difundir-se na massa da população a consciência do dever imposto a todo cidadão, de prestar à sua pátria o serviço militar [...] (ESTEVES, 1996, p. 14).

Além de reivindicar a criação do serviço militar obrigatório, o Ministro manifesta a necessidade de se reaparelhar a Força com novos equipamentos, realizar investimentos na formação e aperfeiçoamento de seus quadros e reformas em suas instalações.

Quase todas as repartições, todos os serviços complementares da administração da guerra, têm organizações antiquadas [...]. A repartição de Quartel Mestre General, a Intendência da Guerra, o corpo de transporte, as Escolas Militares e as Práticas, a própria Secretaria de Estado, estão a exigir reformas importantes [...] se torna mais urgente, à vista das transformações por que tem passado todo o armamento de guerra nos últimos anos [...] (ESTEVES, 1996, p. 14).

Os Relatórios do Ministério da Guerra continuariam a pedir investimentos para reformas materiais da instituição. No entanto, não demonstravam qualquer possibilidade de se reformar o papel do Exército ante as questões políticas do país. Dizendo-se preocupados com as mudanças que o Brasil estava passando, identificadas por eles como “convulsões sociais e políticas”, os militares insistiam em sinalizar sua atuação também nas questões externas ao quartel.

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Concomitantemente à Revolta da Vacina, que sacudiu a cidade do Rio de Janeiro, ocorreu um movimento de revolta dentro da Escola Militar de Realengo, e que foi contido pela ação do general Hermes da Fonseca. Para saber mais ver: McCann (2007, p. 136-139).

Diversas são as causas que podem auxiliar a boa marcha e o adiantamento dos povos, mas entre todas elas há uma, que se considera como indispensável para assegurar a sua existência moral e política (grifo nosso).

É a força pública, que preenche a importante função de manter a ordem e defender a soberania e os direitos nacionais (ESTEVES, 1996, p. 14, grifo nosso).

Uma análise dos documentos expedidos pelo Estado-Maior do Exército – EME – pode fornecer indício de como o recém criado órgão tinha pressa na consolidação de um Exército efetivamente organizado, eficiente e doutrinariamente definido. Em 1912, o General de Divisão, José Caetano de Faria, que chefiou o EME por quatro anos, reivindica em relatório42 para que se atribua ao órgão por ele dirigido o direito de não só pensar ações para a instituição, mas também a competência para se fazer executar seus resultados (ESTEVES, 1996, p. 45).

Nos relatórios que se seguem, o EME, mesmo com a natural sucessão de seus chefes, continuará a emitir pareceres a respeito da necessidade de medidas concretas para o novo Exército, que almejavam, entre os assuntos enviados ao Ministro da Guerra, e que merecem destaque: criação do Conselho Superior de Defesa nacional; criação de uma Aviação Militar; criação de um Programa de Mobilização para os Militares; criação do Serviço Militar Pessoal Obrigatório. O interesse desses chefes pode ser sintetizado nas palavras do Gen. José Caetano de Faria, ao dizer que a nação deve, no momento da guerra, poder contar com “[...] um Exército disciplinado, heróico, numeroso, equilibrado, bem provido e sabiamente organizado [...]” (ESTEVES, 1996, p. 46).