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III. ANÁLISE SEMÂNTICA

3.2 Um diálogo de escola (Jo 9,2-5)

3.2.2 A resposta do mestre (Jo 9,3-5)

3.2.2.2 Jesus, obreiro do Pai e Luz do mundo” (Jo 9,4-5)

O v. 4 inicia-se com um enigmático “nós” (ἡμᾶς), com o qual designa os autores das obras de Deus no mundo. Na sua intervenção, Jesus, ao utilizar o plural, está-se a referir não apenas a si mesmo, mas também a um grupo de pessoas. Segundo Grasso, esta formulação no plural não se trata de um plural majestático, nem muito menos de

261 Cf. WIKENHAUSER, Alfred – El evangelio según San Juan, p. 284.

262 Cf. LEON-DUFOUR, Xavier – Lectura del Evangelio de Juan II, Jn5-12, p. 264. 263 Cf. FABRIS, Rinaldo – Giovanni. Roma: Edizioni Borla, 1992, p. 552.

264 Cf. ZUMSTEIN, Jean – El Evangelio según Juan (1-12), p. 413. 265 Cf. WIKENHAUSER, Alfred – El evangelio según San Juan, p. 284.

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uma referência à figura do Pai e do Espírito Santo. Com este “nós”, Jesus adverte os seus discípulos de que se devem associar à sua atividade. Este modo de Jesus se exprimir é idêntico ao do diálogo com Nicodemos (cf. Jo 3,11), no qual Jesus associa a si tanto o grupo histórico dos discípulos que o seguiam, como também a comunidade cristã e os leitores que são chamados a transmitir ao longo da história a força messiânica de Jesus266.

Embora o plural “nós” também inclua a futura atividade dos discípulos de Jesus, que tenderá a seguir a mesma linha de libertação do seu mestre, neste caso refere-se primordialmente à ação de Jesus. A utilização da expressão «realizar as obras daquele que me enviou» (Jo 9,4) denota que a principal missão do ‘Enviado’, isto é de Jesus, é a realização da obra de Deus; é a concreção do ato da revelação enquanto tal, tanto em ações como em palavras. Deste modo, Jesus atua como representante de Deus, sendo nessa qualidade que vai curar o cego, pelo que o seu gesto tem um significado teológico. Portanto, a manifestação das obras de Deus na vida do cego consiste nesta ação sanadora do Messias. Não obstante, este “nós” é inclusivo, integrando não só a pessoa histórica de Jesus, o revelador do Pai, como também os discípulos do período pós-pascal. Seguindo os passos de Jesus, eles serão os responsáveis por continuar a realizar as obras de Deus (cf. Jo 14,12; 15,16). Deste modo, o texto, evocando a ação de Jesus, abre-se ao presente do leitor267. Cria-se, assim, uma corrente na qual as obras de

Deus não são senão as obras de Jesus, que, por sua vez, são as obras da comunidade crente.

A utilização deste plural opõe-se ao “nós” de Jo 9,40, contrapondo a comunidade dos “dadores de luz” à comunidade que cega. A visualização de situações de opressão e de injustiça é uma chamada a colaborar com a ação de Deus268.

O uso do verbo δεῖ, por sua vez, serve para estabelecer o teor da missão de Jesus, inscrevendo-a no projeto de Deus (cf. Jo 3,7.14.30; 4,4.20.24; 10,16; 12,34; 20,9). Por outro lado, o termo “dia” (ἡμέρα) aparece ligado ao verbo “ser” (ἐστίν), enquanto a palavra “noite” (νὺξ) está associada ao verbo “vir”, pelo que a ideia de “dia” nos remete para a realidade originária, ao passo que a “noite” apenas assume o controlo quando não existem condições para se fazer dia269.

266 Cf. GRASSO, Santi – Il vangelho di Giovanni, p. 412.

267 Cf. ZUMSTEIN, Jean – El Evangelio según Juan (1-12), p. 413.

268 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – El Evangelio de Juan: Analisis Lingúistico y Comentario

Exegetico, p. 435.

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Jesus, ao afirmar a necessidade e a urgência em trabalhar, utiliza um argumento que se baseia na experiência quotidiana e universal do ser humano na Antiguidade. Este apenas podia realizar o seu trabalho enquanto era dia, pois a chegada da noite, com a sua privação de luz, impedia-o de prosseguir com a sua ação. Daí que Jesus afirme a necessidade de realizar, trabalhar, as obras enquanto é de dia, isto é, enquanto há possibilidade de trabalho, pois aproxima-se a noite que impedirá toda a atividade. A noite é o período das trevas. Estas, por oposição à luz, são entendidas como o espaço ou o tempo em que falta a luz-vida270.

As palavras de Jesus, ditas pouco antes do seu primeiro encontro com o cego, são particularmente esclarecedoras da afirmação por Ele proferida em Jo 9,4: «Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz» (Jo 8,56). Portanto, o tempo para o envio do Messias é o dia; a ação de Jesus tem um limite temporal: «enquanto é dia». Este seu obrar durante o tempo diurno encontra-se em plena sintonia com a tradição bíblica, segundo a qual o âmbito da ação de Deus é apenas durante o dia (cf. Gn 1). A noite, por seu turno, é um momento de negatividade, associado a ações perversas e infrutíferas, como a saída de Judas durante a noite (cf. Jo 13,30) ou o insucesso da pesca dos discípulos271 (cf. Jo 21,3).

Isto permite-nos afirmar que, para o evangelista, existe um tempo de Luz (cf. Jo 8,12), quando Deus se manifesta e oferece a salvação (cf. Jo 7,33), e existe um período de ausência de Luz. Jesus tem o seu dia (cf. Jo 8,56), durante o qual manifesta a Luz, que é a glória do Pai. Mas chegará a noite, quando se verificar a rejeição definitiva de Jesus. Na hora fixada pelo Pai, à semelhança do que acontece com o dia, irromperá a noite, quando a luz ceder diante das trevas e chegar a “hora” de Jesus272. A noite é um

mundo sem Jesus, que é a sua Luz. Deste modo, o dia de Jesus, durante o qual Ele pode operar, estende-se desde o seu envio pelo Pai até à sua violenta morte (cf. Jo 11,9-10). Este é o seu “dia” de trabalho, durante o qual Ele tem de cumprir a missão que o Pai lhe

270 Cf. ZUMSTEIN, Jean – El Evangelio según Juan (1-12), p. 413. 271 Cf. GRASSO, Santi – Il vangelho di Giovanni, p. 413.

272 João cria uma grande tensão narrativa em torno da espera da “hora” de Jesus. Este momento consiste

na manifestação da glória do Filho do Homem (cf. Jo 12,23), que se verificará através da Sua morte (cf. Jo 12,24). Esta ligação entre a Sua “hora” e a Sua morte cria agitação em Jesus e condu-Lo à tentação de escapar dela (cf. Jo 12,27). Porém, é ela que determina a finalidade da Sua missão: manifestar a glória do Filho e, consequentemente a do Pai (cf. Jo 12,23.28; 17,1). Deste modo, a “hora” torna-se tempo teológico, constituindo o momento do Pai, que Jesus faz seu e que explica toda a Sua atividade e para o qual toda ela se dirige. Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ, p. 131-133.

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deu, sem se permitir a descansar: tem de libertar o Homem da sua impotência e da sua infidelidade para o levar até à Luz de Deus273.

O encontro com o cego de nascença proporciona a ocasião favorável para Jesus cumprir a sua missão, ainda que cause perigos e hostilidades que antecipam a “noite” da traição e da morte (cf. Jo 13,30), isto é, a hora das trevas, na qual o Filho do Homem será rejeitado inclusive pelos seus. As trevas da noite simbolizam, pois, a rejeição de Jesus-Luz274, representam o fim da possibilidade de alcançar a Vida (cf. Jo 12,35-36).

Jesus aplica esta ideia do trabalho diurno como imagem do tempo que lhe resta. Desde o primeiro “sinal”, a transformação da água em vinho, nas bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11), que se estabelece uma estreita relação entre o obrar de Jesus e a “sua hora”. Tal associação acentuar-se-á no último dos “sinais” que realiza, a ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,1-44), onde Ele alude ao fim que o espera e à sua própria ressurreição275.

Quando Jesus diz: «“Tudo está consumado” e, inclinando a cabeça, [entrega] o espírito» (Jo 19,30), o Seu “dia” chega ao fim e a Sua obra de expiação dos pecados da humanidade está cumprida. Ainda que depois da ressurreição se verifiquem aparições de Jesus, Ele já não “está no mundo” como estava antes276, estendendo-se, contudo, a Sua

obra de redenção aos Homens de todos os tempos.

Logo, é necessário oferecer a salvação enquanto há tempo dado que os dirigentes do povo fizeram uma opção definitiva, condenando Jesus e tornando a ruína inevitável. Em Jo 6,28, as pessoas tinham perguntado a Jesus o que haveriam de fazer para realizar as obras de Deus, ao que Ele respondeu que Deus exige uma única obra: que acreditem no seu ‘Enviado’, aderindo a Ele (cf. Jo 6,29). Os discípulos, que lhe oferecem a sua adesão, têm doravante o trabalho de levar a cabo as obras de quem o enviou (cf. Jo 5,36; 10,37)277. Daí que, em Jo 12,36, se afirme que os discípulos possuem a Luz, sendo os

mesmos convidados a ser filhos da Luz, visto que de noite, isto é, sem a experiência do amor de Jesus, os obstáculos tornam-se insuperáveis e fica-se paralisado pelo medo.

Jesus autodefine-se como sendo a Luz, afirmando o seguinte: «Enquanto estou no mundo, sou a Luz do mundo» (Jo 9,5). A primeira parte da frase, a oração subordinada temporal, remete-nos para o arco temporal da Sua existência humana, isto é, para a historicidade da revelação, que já se encontrava esboçada no versículo anterior. De

273 Cf. BEUTLER, Johannes – Comentario al evangelio de Juan, p. 284. 274 Cf. FABRIS, Rinaldo – Giovanni, p. 553.

275 Cf. BEUTLER, Johannes – Comentario al evangelio de Juan, p. 242-243. 276 Cf. HENDRIKSEN, William – Comentario al Nuevo Testamento, p. 341.

277 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – El Evangelio de Juan: Analisis Lingúistico y Comentario

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facto, a missão de Jesus vê-se afectada pelo jugo da finitude, encontrando-se restringida por um limite temporal, cujo horizonte último é a cruz. Portanto, este “estar no mundo” refere-se ao estar vivo, ao encontrar-se “na terra dos vivos”. Enquanto Jesus vive a sua vida humana, enquanto é dia, Ele leva a cabo a sua obra de salvação278.

Segundo a conceção grega, o “mundo” (κόσμος) com as suas leis, a sua perenidade, com o seu eterno retorno, exprime o ideal de uma ordem fechada em si mesma, que inclui tanto os Homens como os deuses, os quais se confundem com os elementos do mundo, suscitando um panteísmo virtual ou confesso. Segundo a compreensão bíblica, as representações cosmológicas e cosmogónicas são remetidas para um plano secundário que é colocado ao serviço duma verdade religiosa fundamental: o mundo, enquanto criação de Deus, apenas tem sentido em função do divino desígnio da salvação279.

No AT, o “mundo”280 apresenta uma dupla significação. Por um lado, este, como

tendo saído das mãos de Deus, continua a manifestar a sua bondade, constituindo-se como uma verdadeira e harmoniosa obra de arte (cf. Pr 8,22-31; Jb 28,25-28). Numa outra perspetiva, contudo, o “mundo” também significa a ira de Deus para com o Homem pecador. Aquele que tudo fez para o bem e felicidade do Homem também se serve do “mundo” para o castigar (cf. Gn 3,17-24). Daí as calamidades que se abatem sobre a humanidade como o Dilúvio, as pragas do Egipto ou as maldições que se encontram destinadas para o povo de Israel infiel (cf. Dt 28,15-46). De qualquer dos modos, o “mundo” encontra-se ativamente relacionado com a história da salvação,

278 Cf. BARRET, C.K. – El Evangelio según San Juan, p. 242.540.

279 Cf. LESQUIVIT, Colomban; GRELOT, Pierre – Mundo. In LÉON-DUFOUR, Xavier (dir.) [et al.] –

VTB. Petrópolis: Editora Vozes, 1972, col. 630.

280 A palavra hebraica que viria a ser traduzida como mundo (κόσμος) é א ֶרֶץ. Este termo apresenta vários

matizes de significado. Por um lado, pode aplicar-se à Terra, entendida cosmologicamente como o espaço onde habita o homem (cf. Gn 6,11), em oposição ao céu. Por outro lado, também se pode referir ao solo, ao terreno, ao espaço no qual se movem os homens e os animais (cf. Gn 1,26; cf. Sl 147,6; cf. Ez 26,16), em oposição ao mar, ao espaço das águas. Este termo pode ainda utilizar-se para designar um país, uma região, um teritório de soberania (cf. Gn 31,3; cf. Nm 15,2; cf. Jr 30,10). Pode significar também a Terra como criação de Deus (cf. Gn 1,1), como propriedade Sua (cf. Sl 24,1). Este termo viria a ser traduzido para o grego por duas palavras: κόσμος e γῆ. A primeira (κόσμος) é utilizada para exprimir todo o mundo criado por Deus, a totalidade da criação, o universo, a humanidade no seu todo. A segunda (γῆ) assume o significado de terra, de terreno, de país, de espaço habitado. João utilizará este termo para estabelecer a distinção entre o homem espiritual, que vem do Céu, e o homem terreno, que pertence à terra e que só vive para as coisas terrenas (cf. Jo 3,31-32). Na perspetiva joanina, a terra é também o espaço, o ponto de partida para a exaltação e glorificação do Filho do Homem (cf. Jo 12,32; 17,4). Cf. OTTOSSON – א ֶרֶץ – ͗aeraeṣ [tierra]. In BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer (dir.) – DTAT. Madrid: Ediciones Cristandad, 1978, vol. 1, col. 415-434. Cf. KRETZER, A. – γῆ, γῆς, ἡ. In BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (dir.) – DENT. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1996, col. 741-746, vol.1. Biblioteca de Estudios Biblicos; 90. Cf. BALZ, Horst – κόσμος, ου, ό. In BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (dir.) – DENT, vol. 1, col. 2380-2390.

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sendo o Homem responsável por o aperfeiçoar através do seu trabalho, dominando-o e imprimindo-lhe a sua marca281.

O NT utiliza com bastante frequência o termo κόσμος, sendo o seu sentido, contudo, resultado da elaboração feita no AT. Deste modo, o “mundo” continua a ser criação excelente de Deus (cf. Act 17,24), por meio da atividade do seu Verbo feito carne (cf. Jo 1,3.10). Embora o “mundo” continue a dar testemunho de Deus, o Homem o sobreleva e sobrevaloriza o seu valor verdadeiro: «que aproveita ao Homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?» (Mt 16,26). Este “mundo” encontra-se sobre o domínio do pecado, que nele entrou desde o início da história, e da morte, que o acompanha (cf. Rm 5,12), pelo que se tornou devedor da justiça divina282 (cf. Rm 3,9).

Porém, Deus amou tanto o “mundo” que lhe entregou o Seu Filho Unigénito (cf. Jo 3,16). Este é o paradoxo através do qual se dá início a uma nova história, com a vitória de Jesus sobre o “mundo” dominado pelo pecado, e com a inauguração de um “mundo renovado”, anunciado pelas promessas proféticas. Jesus, morrendo, tirou o pecado do “mundo”; oferecendo a sua carne e o seu sangue, resgatou o “mundo” da escravidão. Assim, Aquele em quem todas as coisas foram criadas (cf. Cl 1,16) tornou- se, por meio da sua ressurreição, o chefe e a cabeça da nova criação. Neste “novo mundo”, a luz e a vida existem em abundância (cf. Ap 22,4-5), sendo oferecidas a todos quantos crêem em Jesus. Todavia o “mundo presente” ainda não alcançou o seu fim, pelo que a graça da redenção age num “mundo sofredor”. A vitória de Cristo só alcançará a sua plenitude no dia em que se manifestar a sua glória283, entregando Ele

todas as coisas ao Pai (cf. 1 Cor 15,25-28).

O termo “mundo” (κόσμος), como já referimos anteriormente, trata-se de uma palavra muito frequente e importante em João. Embora em alguns casos aluda à totalidade da criação, criada muito boa por Deus (cf. Gn 1,31), ao mundo físico, ao universo (cf. Jo 11,9; 17,5.24; 21,25), na maioria das situações refere-se ao mundo dos Homens e dos afazeres humanos, à humanidade que habita o mundo284. Deste modo,

entende-se que o “mundo”, na perspectiva teológica de João, represente igualmente a violência institucionalizada.

281 Cf. LESQUIVIT, Colomban; GRELOT, Pierre – Mundo. In LÉON-DUFOUR, Xavier (dir.) [et al.] –

VTB, col. 630-631.

282 Cf. Ibidem, col. 632. 283 Cf. Ibidem, col. 633.

284 Cf. Jo 1,9.10.29; 3,16.17.19; 4,42; 6,14.33.51; 8,12: 9,5; 10,36; 11,27; 12,46.47; 16,21.28;

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O “mundo” odeia Jesus e os Seus discípulos (cf. Jo 7,7) e, por isso, os persegue até à morte (cf. Jo 15,18-25; 16,2). Deste modo, em relação com o “mundo” surgem a perseguição e o propósito de matar Jesus (cf. Jo 5,16.18), bem como as tentativas de apedreja-lo (cf. Jo 8,59; 10,31s), a decisão de lhe dar a morte sem qualquer julgamento (cf. Jo 11,53) ou, ainda, a ordem de delação e de prisão285 (cf. Jo 11,57). Este “mundo”

transporta consigo um sentido universal, ultrapassando, portanto, os limites do sistema judaico. Desta forma, o “mundo” está conotado com uma realidade de opressão, baseada no poder e no dinheiro e, portanto, inimiga do Homem. O “mundo” é, pois, paradigma de todo e qualquer sistema de injustiça286.

Este “mundo”, que rejeita e persegue Jesus, é o mesmo “mundo” que se configura como sendo o cenário da Sua missão salvífica287. O “mundo-humanidade” é objeto do

amor de Deus (cf. Jo 3,16) e destinatário da missão salvífica de Seu Filho (cf. Jo 3,17; 10,36; 16,28; 17,18; 18,20.37), que vem libertá-lo do pecado (cf. Jo 1,29). Jesus não veio para julgar a humanidade, mas para a salvar (cf. Jo 3,17; 12,47) e lhe dar a vida (cf. Jo 3,16; 6,33.51). Ele é a Luz do mundo que comunica ao Homem a luz da Vida (cf. Jo 8,12; 9,5). Antes da vinda do Verbo feito homem, a humanidade, embora se encontrasse iluminada por esta luz, não foi capaz de reconhecer o projeto criador de Deus (cf. Jo 1,10). Também depois, a maioria não foi capaz de o reconhecer: «a Luz veio ao mundo e os Homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más» (Jo 3,19). Será pelo testemunho de amor e de unidade dos Seus discípulos que começarão a crer que Ele é o enviado de Deus288.

Deste modo, se explicam as aparentes contradições no que diz respeito à relação ente Cristo e o “mundo”. Se, por um lado Jesus é o salvador do “mundo” (cf. Jo 4,42), não vindo para o julgar, por outro é também aquele que veio ajuizar o “mundo” (cf. Jo 9,39; 12,31) e vencê-lo (cf. Jo 16,33). O inimigo que é derrotado é o “dominador deste mundo” (Jo 12,31; 14,30; 16,11), sendo que aqueles que se submetem ao seu poder transformam a salvação em juízo. A intenção de Jesus era que o “mundo” chegasse ao conhecimento da fé. Todavia, o “mundo” não só não reconheceu a Deus (cf. Jo 17,25), como também odiou a Jesus (cf. Jo 7,7; 15,18) e, portanto, também ao Pai (cf. Jo

285 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 202-203. 286 Cf. Ibidem, p. 203.

287 Cf. Jo 1,9-14; 3,17.19; 6,14; 8,26; 10,36; 12,46; 16,28; 17,13.18; 18,20.37 288 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ, p. 202.

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15,23), não podendo receber o Espírito da verdade289, pois não o percebeu nem o

conheceu (cf. Jo 14,17).

A segunda parte da frase, a oração principal, «eu sou a Luz do mundo», remete- nos para a afirmação de Jo 8,12. Tal como nessa passagem, aqui esta metáfora define a missão de Jesus como Messias, por referência à missão libertadora do Servo de Deus, que aparece nas passagens de Isaías (cf. Is 42,6-7; 49,6), segundo as quais o servo é a Luz das nações, sendo sua função abrir os olhos dos cegos. Deus intervém no “mundo” por meio da Luz que irradia de seu Filho. O episódio da cura do cego de nascença aparece como sendo o cumprimento da palavra de Jesus em Jo 8,12, mostrando a eficácia da Luz, que é Jesus, sobre as trevas290.

No encontro com o cego de nascença, em Jo 9,5, a declaração de Jesus não tem a mesma ênfase do que a fórmula ἐγώ εἰμι de Jo 8,12. No entanto, no episódio da cura do cego de nascença, verifica-se mais claramente que a “luz” não se trata de uma descrição metafísica da pessoa de Jesus, mas antes constitui uma descrição dos seus efeitos no

κόσμος, sendo que Jesus é a Luz que desencadeia o seu julgamento e que o salva. Só

n’Ele é que o “mundo” tem o seu “dia”, durante o qual os Homens podem caminhar e trabalhar em segurança (cf. Jo 12,35); na sua ausência reinam as trevas291. Por outro

lado, ao contrário da afirmação de Jo 8,12, a passagem de Jo 9,5 não apresenta uma interpretação soteriológica explícita, sendo tal função exercida pelo relato do “sinal” que se segue. Deste modo, a cura do cego deve ser lida num duplo sentido: num primeiro sentido, revela-nos um Deus que se opõe a tudo o que deforma e altera a existência humana; num segundo sentido, numa conceção simbólica, mostra-nos que a revelação é o que permite dar sentido e orientação a essa mesma existência, fazendo passar o “mundo” das trevas à Luz292.

Para melhor compreendermos o alcance simbólico da imagem da luz, olharemos, em seguida para a sua conceção e utilização tanto na filosofia grega, como nas religiões, com especial relevo para o seu uso no mundo bíblico. Por fim, olharemos mais atentamente para a conceção joanina de luz.

289 Cf. BARRET, C.K. – El Evangelio según San Juan, p. 243.

290 Cf. LEON-DUFOUR, Xavier – Lectura del Evangelio de Juan II, Jn5-12, p. 265. 291 Cf. BARRET, C.K. – El Evangelio según San Juan, p. 540.

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A. Conceção da “luz” na filosofia grega

O uso do substantivo φῶς, luz, é atestado desde Homero293, ainda que na sua

língua apareça com mais frequência o substantivo τό φάος, que mais tarde se contrairá para dar origem à forma ática τό φῶς (tó phôs). O verbo procedente da mesma raiz,

φωτίζω, desde Aristóteles, aparece sobretudo com o seu significado transitivo,

significando iluminar, projectar luz, tornar visível. O substantivo da mesma raiz,

φωτισμός, designa irradiação, ou trazer à luz, manifestar. Também existe a forma φωτεινός, desde Xenofonte, que significa luminoso, brilhante, resplandecente. Φωστήρ

também deriva de “phôs” e, desde Heliodoro, significa corpo luminoso e chama, brilho,

refulgência.

A forma τό φάος, além de assumir o significado fundamental de luz, brilho,

resplendor, pode abarcar outras matizes e níveis de significância, podendo se referir à

luz do sol ou do dia, a uma tocha, ao fogo, ao resplendor do fogo ou à luz dos olhos294.

De facto, as primeiras referências ao termo “luz”, τό φάος, colocam-no em relação com a sua fonte, o sol: Homero, por exemplo, na Ilíada, afirma que o sol possui a luz mais penetrante para se ver (ὀξύτατον φάοϛ)295. Além disso, o termo τό φάος também é

especialmente utilizado para designar a luz do dia, sendo que, para exprimir a entrada de um ser na vida, os Gregos usam a expressão “aparecer/trazer ao dia/à luz”. À luz atribuem-se forças que fomentam a vida, pelo que “ver a luz” (ὁρᾶν φάοϛ) é sinónimo de viver, e “sair da luz” ou “deixar a luz” (λείπειν φάοϛ) é sinónimo de morrer296. Assim

sendo, em sentido figurado, τό φῶς significa a luz da vida, a existência, que, como luminosa, se manifesta como saúde ou salvação, felicidade e vitória297. Podemos,