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O “Banho da Luz”: banho da cura, da visão e da força

IV. UMA HERMENÊUTICA DA VISÃO

4.4 O “Banho da Luz”: banho da cura, da visão e da força

A cura do cego de nascença toca-nos de perto, porque de alguma forma todos nós somos cegos de nascença. O próprio mundo parece ter nascido cego, dado que, segundo o que nos diz hoje a ciência, durante milhões de anos, a vida que existia sobre a terra era uma vida em estado cego, visto não existir ainda o olho para ver, e, portanto, nem a própria visão437. O olho, na sua complexidade e perfeição, é um dos órgãos que

435 NEVES, Joaquim Carreira das – Escritos de São João. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2004, p.

190-191.

436 Cf. BEUTLER, Johannes – Comentario al evangelio de Juan, p. 250-251.

437 Cf. LAND, Michael F.; FERNALD, Russell D. – The evolution of de eyes. ARN. 15 (1992) 1-29.

Cf. HELENE, Otaviano; HELENE, André Frazão – Alguns aspectos da óptica do olho humano. RBEF. 33:3 (2011) 3312. 1-8.

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se forma mais lentamente438. Esta situação replica-se, em parte, na vida de cada um de

nós, dado que em criança, ainda que não propriamente cegos, nascemos incapazes ainda de distinguir o perfil das coisas. A visão é, pois, o sentido menos desenvolvido da criança recém-nascida439. Contudo, é um dos sentidos mais importantes, não só porque

permite a apreensão do mundo circundante, contribuindo para o desenvolvimento da criança, como também constitui uma importante componente da comunicação não verbal. O olhar “olhos nos olhos” constitui uma modalidade essencial de interação entre os pais e os bebés. Acompanhado pela fala e/ou pelo toque, o olhar é fundamental para se estabelecer e aprofundar uma relação de afeto, de confiança, de segurança e cumplicidade entre os pais e os filhos440.

Podemos então dizer que a visão é um dom, contudo, nós não lhe damos a devida atenção, porque estamos acostumados a ela, porque a damos como adquirida. Daí que Deus, por vezes, atue de forma repentina e extraordinária, a fim de nos despertar do nosso torpor e de nos tornar mais atentos. Foi o que Jesus fez na cura do cego de nascença. Ele olhou para o cego como quem olha para um filho e esse olhar desencadeou um processo de reconhecimento, forjou laços de afeto, encetou um caminho de fé.

De facto, quando nascemos, para além dos olhos físicos, existem outros olhos que também devem ser abertos: os olhos da fé, que permitem vislumbrar um outro mundo, muito além daquele que vemos com os olhos do corpo: o mundo de Deus, da Vida eterna. É desse mundo que Jesus nos quer recordar, com a cura do cego de nascença e, por isso, envia o homem cego à piscina de Siloé, para nos mostrar que os olhos da fé se começam a abrir no batismo, quando recebemos precisamente o dom da fé no ‘Enviado’. Daí que, na antiguidade, na Igreja dos primeiros tempos, o batismo em nome de Cristo e a vida cristã tomassem também a designação de “iluminação”,

φωτισμός, sendo “iluminados” todos aqueles que haviam sido batizados441.

Com efeito, desde os primeiros tempos da Igreja que o relato do cego de nascença é proposto na Quaresma e no processo catecumenal, visto que, na sua história, cada cristão pode facilmente reconhecer a sua própria vida, pois, antes de se encontrar

438 Cf. TAVARES, A. Sampaio – Olho. In MAGALHÃES, António Pereira Dias (dir.) [et al.] – VELBC.

Lisboa: Editorial Verbo, [s.d.], vol. 14, col. 551-553.

439 Cf. FAURE M.; RICHARDSON, A. – Os sentidos do bebé: compreender o mundo sesorial do bebé -

a chave para uma criança feliz. Lisboa: Livros horizonte, 2004.

440 Cf. BELINI, Aline Elise Gerbelli; FERNANDES, Fernanda Dreux Miranda – Olhar de bebes em

desenvolvimento típico: correlações longitudinais encontradas. RSBF. 12:3 (2007) 165-166.

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com Cristo, era cego e, depois, o Mestre deu-lhe a vida, iluminando-o na água da fonte batismal.

Na Igreja primitiva, o capítulo 9 servia, pois, como leitura de preparação dos conversos, sendo especialmente utilizado quando se desenvolveu a prática dos três escrutínios ou exames antes do batismo, sendo o mesmo lido no grande e derradeiro escrutínio, quando os catecúmenos superavam o seu exame e eram considerados dignos do batismo. Do que se conhece de tal cerimónia sabe-se que se liam algumas passagens do AT nas quais se falava da água purificadora. Seguia-se a abertura solene do livro dos evangelhos que culminava com a leitura do capítulo 9 de S. João e com a profissão de fé do cego442. Este diálogo de reconhecimento, em Jo 9, 35-38, também ele aponta

claramente para o sentido da liturgia batismal: «“Tu crês no Filho do Homem?” Ele respondeu: “E quem é, Senhor, para eu crer nele?” Disse-lhe Jesus: “Já o viste. É aquele que está a falar contigo”. Então, exclamou: “Eu creio, Senhor!”». Depois disto, os catecúmenos recebiam o credo.

No relato do cego de nascença são também de salientar os dois gestos de Jesus: o uso da saliva e a unção, que viriam a fazer parte das cerimónias batismais. Neste sentido, pode-se vislumbrar um simbolismo no facto de que Jesus não se limita a colocar saliva nos olhos do cego, como em Mc 8,23, mas faz barro com ela, como Deus na criação de Adão e Eva (cf. Gn 2,7.22-24), reforçando assim a ideia de que o batismo constitui uma nova criação443. Com esse barro, o Cristo-Ungido “ungiu” os olhos do

cego444.

Segundo a Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, o processo de iniciação catecumenal culminava com a noite da Vigília pascal, onde se celebravam os sacramentos do Batismo, da Confirmação e da Eucaristia. O período imediatamente antecedente à celebração sacramental, isto é, a semana santa, era marcado por vários momentos: banho, na quinta-feira santa; na sexta-feira santa, tinha início o jejum; no sábado santo o bispo impunha as mãos sobre os eleitos, exorcizando-os, soprando-lhes na fronte, nos ouvidos e nas narinas. Durante a vigília, que tinha lugar durante toda a noite do sábado, realizava-se o rito sacramental, igualmente marcado com os ritos correspondentes. Os batizandos eram despojados das suas vestes e o bispo consagrava- os com os óleos. Eles renunciavam a satanás e, em seguida, eram ungidos com o óleo do

442 Cf. BROWN, Raymond E. – El Evangelio según Juan I-XII, p. 688. 443 Cf. KONINGS, Johan – Evangelho segundo João, p. 198.

444 “Ungiu”, ἐπέχρισεν (Jo 9,6.11) tem a mesma raiz de “Ungido”, Χριστός. Cf. KONINGS, Johan –

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exorcismo. Depois, tinha lugar o batismo, realizado por meio de três imersões. Seguia- se nova unção dos neófitos, agora com o óleo de ação de graças. De seguida, estes vestiam-se com as vestes brancas e apresentavam-se à comunidade reunida, onde o bispo lhes fazia o sinal da cruz na fronte e lhes dava o beijo da paz. Os recém-batizados rezavam, então, com o povo e participavam da Eucaristia445.

Segundo Brown, a dimensão batismal, reconhecida pela Igreja na cura do cego de nascença, parecia já se encontrar presente nas intenções do evangelista. Embora João dedique apenas dois versículos ao relato do “sinal” propriamente dito, ele é veemente ao afirmar que o homem só ficou curado depois de se lavar na piscina de Siloé (cf. Jo 9,7.11). Deste modo, enfatiza-se o poder curativo da água. A especificação do nome da piscina, acompanhada da explicação de que este significa ‘o Enviado’, associa nitidamente aquela água a Jesus, o único enviado do Pai (cf. Jo 3,17.34; 5,36.38). Além disso, não podemos perder de vista que a água daquela mesma piscina de Siloé era a que se usava nas cerimónias da festa da Tendas e que Jesus havia afirmado em Jo 7,37-38 que Ele a vinha substituir como fonte de água vivificadora446.

Um outro elemento que nos aponta para a intenção do evangelista de incutir um simbolismo sacramental ao seu texto é a insistência em recordar que o homem era cego desde o seu nascimento (cf. Jo 9,1.2.13.18.19.20.24.32). Dado o notório contraste entre a cegueira física daquele homem e a cegueira espiritual (cf. Jo 9,39), na perspetiva de Brown, podemos intuir que o evangelista pretende realçar a ideia de que o homem havia nascido em pecado, o qual só poderia ser limpo pelas águas que brotam do próprio Jesus447.

Segundo Santo Agostinho, neste cego encontra-se representado todo o género humano, visto que a cegueira, que se apoderou dele, é símbolo do pecado do primeiro homem, do qual todos nós descendemos não só na morte, como também no pecado. Assim sendo, a sua cegueira representa a infidelidade, enquanto a iluminação é a fé. Deste modo, ao lavar-se na piscina do ‘Enviado’, isto é, ao mergulhar na piscina da

445 Cf. REINERT, João Fernandes – Paróquia e Iniciação Cristã: Uma Relação urgente. A

interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. [Dissertação de Doutoramento em Teologia orientada pelo Prof. Dr. Mario de França Miranda e apresentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2014], p. 91.

Cf. DUJARIER, Michel – Breve Historia del Catecumenado. Bilbao: Editorial Española Desclée de Brouwer, 1986, p. 56-62.

446 Cf. BROWN, Raymond E. – El Evangelio según Juan!-XII, p. 689. 447 Cf. Ibidem.

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salvação messiânica, nas águas que prefiguram o próprio Messias Jesus, o homem, que vivia na obscuridade, pode recuperar a luz da fé, sendo batizado em Cristo448.

Assim sendo, neste trecho, João serve-se de um episódio da vida de Jesus para desenvolver o tema central da mensagem cristã: a salvação que nos foi dada por Cristo. Naquele homem, cego de nascença, sem um nome que o identifique, estão representados todos os Homens de todos os tempos, que são “olhados”, chamados e interpelados por Jesus para serem curados, para serem iluminados. No caso do cego do nosso relato, a cegueira torna-se a condição necessária para que Jesus se possa aproximar e conduzi-lo à Luz e à visão. De facto, a fragilidade e o pecado acabam por se tornar numa oportunidade para Deus, dado que Lhe abrem a possibilidade de se manifestar ao Homem449. Como afirma José Tolentino Mendonça:

«É a nossa nudez, a nossa miséria, a nossa infelicidade, a nossa cegueira que nos colocam no caminho de Jesus. É porque aquele homem é cego, e sabe que é cego, que ouve Jesus. (…) Pensamos frequentemente que a santidade se deve procurar na direção oposta ao pecado ou à fraqueza. O que é aí então a santidade? É o contrário da minha vida. Ora, a santidade não se encontra num lugar diferente da fraqueza ou da tentação, mas no interior mesmo dessa fraqueza e dessa tentação. Ela não está apenas à nossa espera, quando nós ultrapassamos a nossa fraqueza, mas no momento mesmo em que somos fracos, continuamos perto da santidade. A santidade transforma todos os instantes, por embaciados e difíceis que sejam, em oportunidades. (…) Ainda que nos encontremos no extremo da miséria, Deus está enamorado da nossa beleza. Assim, dentro da tua noite, fixa o brilho de uma estrela»450.

Neste sentido, a salvação e a santidade só poderão ser esperadas e alcançadas se o Homem tiver uma perceção dos seus limites. Aqueles que acreditam que são ilimitados nunca esperarão nada, pois se acham completos e neles não há espaço para acolher a Luz. Porque esperar significa tender para alguma coisa, os que não esperam já estão mortos. Daí que a doença mortal do Homem seja pensar que vê. Os fariseus, porque pensavam que viam, permaneceram no pecado e na morte, pois neles não havia espaço para a Luz e para a Vida.

A cegueira do homem do capítulo 9 alerta-nos para a nossa cegueira interior que, tendo a sua origem nas nossas feridas, no mal que nos escurece, na doença mortal que

448 Cf. ZEVINI, Giorgi – Evangelio según San Juan, p. 238-239.

449 Cf. SCQUIZZATO, Paolo – O elogio da imperfeição: o caminho da fragilidade. 2º ed. Prior Velho:

Paulinas Editora, 2016, p. 61.

450 MENDONÇA, José Tolentino – A mística do instante: o tempo e a promessa. Prior Velho: Paulinas

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nos habita desde Adão, torna-nos incapazes de nos vermos a nós mesmos, de sabermos quem somos. Só colocando-nos diante de Jesus, só deixando-nos olhar por Ele, que é Luz e Vida, é que poderemos descobrir quem somos. É a nossa proximidade com Cristo que nos permite descobrir que nos encontramos nas trevas e necessitamos de ser curados por Ele. Quanto mais nos afastarmos de Cristo, mais julgaremos que nos vemos, quando na realidade, segundo Jesus, somos os verdadeiros cegos451.

A unção dos olhos do cego recorda-nos que Jesus é o Ungido, o Cristo, o Messias. Através da sua carne, da sua humanidade, a sua divindade alcança-nos e ajuda- nos a atingir a nossa verdadeira humanidade. Jesus, o Homem novo, coloca-se diante dos olhos do cego, a fim de que este os abra e reconheça aquilo poderia ter sido e aquilo que poderia vir a ser, a saber, a verdadeira imagem de Deus. A vocação do ser humano é, portanto, a de ser filho de Deus. Mas tal só se concretiza se nós crermos na Luz, se nós acolhermos a Deus na pessoa do Seu ‘Enviado’ (cf. Jo 12,36), tornando-nos como Ele e, consequentemente, convertendo-nos em nós mesmos452.

Jesus olha o cego, encontra-se com ele, fala com ele. Esta visão da Luz faz com que o cego reconheça a sua miséria e os seus limites. Então Jesus convida-o a ir lavar-se à piscina de Siloé. Depois de lhe mostrar o Homem novo, Jesus concede ao cego a liberdade de aderir ou não a Ele; não o cura imediatamente, mas dá-lhe a oportunidade de se curar; não se impõe, mas propõe-se453. Mediante tal proposta, o cego opta por

Jesus e pelo caminho da fé e, por isso, «regressou a ver» (Jo 9,7).

Acontece, porém, que o caminho do discípulo para a Luz é longo e “cansativo”. A primeira iluminação não se traduz numa fé suficiente e imediata, pelo que só gradualmente e através de um caminho de provas e sofrimento é que o cego de nascença chega a uma fé madura. Assim sendo, à imagem do cego, o caminho do batizado, do “iluminado”, do discípulo que adere a Jesus com a sua vida, começa no momento em que se encontra com Jesus. No princípio, para o cego, Jesus não era mais do que um homem: «Esse homem, que se chama Jesus, fez lama...» (Jo 9,11). A quem lhe perguntou: «Onde está Ele?», o homem que fora cego respondeu: «Não sei» (Jo 9,12). Deste modo, ele confessa a sua própria ignorância, reconhece não saber ainda nada sobre Ele. O ponto de partida do caminho espiritual do discípulo, de todo o cristão, é

451 Cf. SCQUIZZATO, Paolo – O elogio da imperfeição, p. 62-63. 452 Cf. Ibidem, p. 64-65.

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este, a saber, a tomada de consciência de não conhecer Cristo e sentir a necessidade de saber algo acerca d’Ele.

Mais tarde, à pergunta feita pelos fariseus: «E tu que dizes dele, por te ter aberto os olhos?», ele respondeu: «É um profeta» (Jo 9,17). Aqui, o que fora cego deu um passo adiante e entendeu que Jesus é um ‘Enviado’ de Deus, que fala e atua em nome d’Ele. Mais tarde, depois de o ameaçarem com a expulsão da sinagoga, reconheceu que Jesus era um homem vindo «de Deus» (Jo 9,33). Finalmente, encontrando de novo Jesus, depois de ter sido expulso da sinagoga, Este pergunta-lhe «Tu crês no Filho do Homem?» (Jo 9,35). É então que ele grita: «Eu creio, Senhor!» (Jo 9,38), e prostra-se diante d’Ele para O adorar, reconhecendo-o, assim, abertamente, como seu Senhor e seu Deus.

Sintetizando, o cego faz um percurso de fé que corresponde ao de todos os discípulos: no início Jesus é para ele um simples “homem” (Jo 9,11); depois torna-se um “profeta” (Jo 9,17); passa a ser um “homem de Deus” (Jo 9,32-33); e no fim é o “Senhor” (Jo 9,38). Este título é o mais importante; é aquele com o qual os cristãos proclamam a sua fé454 e era aquele que também os catecúmenos utilizavam para

professar a sua fé na hora do batismo. Durante a cerimónia da noite de Páscoa, antes de entrarem na água, estes diziam diante de toda a comunidade: «Creio que Jesus é o Senhor» e, a partir daquele momento, eram chamados de “iluminados” 455.

A figura de Jesus, depois de ter aparecido no início da narrativa, só volta a aparecer no fim. Ao longo do relato permanece oculta, deixando que o cego se “desembarace” sozinho no meio das dificuldades, das contrariedades e conflitos. De facto, o “iluminado”, aquele que vive de acordo com a sua condição de batizado e que segue o caminho da Luz, não necessita da presença física do Mestre, pois a força que lhe advém do “banho da Luz” é suficiente para o manter firme na fé e para o orientar por um caminho de escolhas certas e coerentes456.

Este episódio serve, portanto, para nos mostrar como se chega a uma fé madura no Filho de Deus, apresentando-nos o cego como o “modelo” a seguir por todos os discípulos de Jesus, por todos os “iluminados”. Deste modo, olhando para a sua figura e para as suas ações, é possível deduzirmos alguma das caraterísticas que deveriam acompanhar aqueles que se deixam orientar e “iluminar” pela Luz do mundo. Assim

454 Cf. BROWN, E. Brown – Para que tengáis vida: A solas con Juan Evangelista. Santander: Editorial

Sal Terrae, 2002, p. 62-63. Colección «El pozo de Siquem»; 132.

455 Cf. ARMELLINI, Fernando – O Banquete da Palavra. 7ªed. Lisboa: Paulinas Editora, 2016, p. 161. 456 Cf. Ibidem.

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sendo, primeiramente, a pessoa “iluminada” deveria ser uma pessoa livre, que se mantém firme nas suas convicções e que diz sempre o que pensa. No caso do cego, este permite-se mesmo a fazer troça das autoridades religiosas (cf. Jo 9,27). Isto conduz-nos a outra das caraterísticas dos “iluminados”, a saber, a coragem. De facto, estes não se deveriam deixar intimidar, mesmo quando aqueles que abusam do seu poder e autoridade os insultam, ameaçam ou o fazem uso da força. Daí que o cego, apesar da ameaça concretizada de expulsão da sinagoga, conteste a posição dos fariseus, afirmando a origem divina de Jesus (cf. Jo 9,30-34). O “iluminado” deveria ser também uma pessoa sincera, que nunca renúncia à verdade, mesmo quando sabe estar a desagradar àqueles que assumem uma posição de superioridade e que não estão acostumados a que se lhe coloquem objeções ou a que se critiquem as suas atitudes. As pessoas “iluminadas” deveriam ainda assumir uma permanente atitude de procura, visto terem consciência das suas incapacidades e da sua incompletude457. Mais uma vez, o

homem que fora cego se constitui como paradigma do “iluminado”, dado que é capaz de reconhecer os seus próprios limites: «Perguntaram-lhe: “Onde está Ele?” Respondeu: “Não sei”» (Jo 9,12); «Se é um pecador, não sei» (Jo 9,25); «Jesus disse-lhe: “Tu crês no Filho do Homem?” Ele respondeu: “E quem é, Senhor, para eu crer nele?”» (Jo 9,35- 36).

Ao descrever-nos com tanto detalhe todo este processo de reconhecimento de Jesus e de crescimento na fé, é como se o evangelista nos interpelasse e nos convidasse a refletir em que ponto nos encontramos deste caminho e quem é Jesus de Nazaré para nós. Que Jesus seja um homem, ninguém o nega. Que seja um profeta, um enviado de Deus, também se pode admitir com alguma facilidade. Contudo, muitos ficam por aqui, o que não é suficiente. O salto mediante o qual alguém se torna num cristão maduro acontece quando se proclama, como o cego de nascença fez, que Jesus é o “Senhor” e quando Ele é adorado como Deus, pois a fé cristã não é primeiramente crer em algo, como que Deus existe ou que há uma eternidade, mas a fé cristã é essencialmente crer em alguém. Jesus, no Evangelho, não nos dá uma lista de coisas para crer; Ele diz: «Credes em Deus; crede também em mim» (Jo 14, 1). Para os cristãos, crer é crer em Jesus Cristo. Como afirma o papa Bento XVI, no nº 1 da carta encíclica Deus caritas

est:

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«Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna» (3, 16)»458.

Hoje, muitos Homens rejeitam o encontro com Jesus e, por isso, vivem longe da Luz, na opressão e na cegueira, não sabendo o que significa a verdadeira condição humana, nem a finalidade com que Deus os há criado. Jesus é o modelo de Homem em quem resplandece, na sua plenitude, a claridade e a Luz da vida. A missão de Jesus, bem como a de todos os seus discípulos, é a de comunicar esta Luz, é a de mostrar esta possibilidade, mais do que com palavras, com a vida que vivem e com gestos que realizem a salvação. Esta é uma oferta gratuita, que espera uma aceitação livre, como foi a do homem cego de nascença.

458 IGREJA CATÓLICA. Papa, 2005-2012 (Bento XVI) – Deus caritas est: [Carta Encíclica de 25 de

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CONCLUSÃO

A Sagrada Escritura apresenta-se como rosto visível da Beleza divina, constituindo uma inexorável fonte de riqueza e de novidade, tão antiga e sempre nova459. Em cada tempo e a cada pessoa ela tem sempre algo de novo para dizer, pelo