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III. ANÁLISE SEMÂNTICA

3.2 Um diálogo de escola (Jo 9,2-5)

3.2.2 A resposta do mestre (Jo 9,3-5)

3.2.2.1 Uma dupla negação e uma finalidade (Jo 9,3)

Os discípulos parecem curiosos para conhecer a origem da enfermidade daquele homem. Jesus, porém, vê diante de si uma pessoa concreta, numa situação concreta e está unicamente interessado em mostrar que a doença tem um significado no plano de Deus, por isso nega as duas hipóteses levantadas pelos discípulos: “Nem ele pecou nem seus pais”. Nem um nem outros são o motivo da cegueira daquele homem. Nem o pecado dele nem o pecado de seus pais estão na origem da sua cegueira. Jesus descarta imediatamente os pecados pessoais do homem e os pecados de seus pais como sendo a causa da sua incapacidade em ver. Se necessário fosse mencionar uma causa, seria o pecado de Adão. Contudo, Jesus nega-se a entrar nesta dinâmica: prefere olhar para a frente, em vez de olhar retrospectivamente; prefere dar uma resposta para o futuro, em vez de procurar razões no passado. Enquanto os Homens se preocupam e atarefam na busca de razões, na realização de autópsias, na procura de culpados, Jesus preocupa-se unicamente em curar e dar a vida. Ele não veio à procura de culpados, porque não veio para julgar ou condenar, mas veio para salvar (cf. Jo 3,17; 12,47), veio para manifestar as obras de Deus256.

O verbo “manifestar” (φανερόω) e a expressão “as obras de Deus” (τὰ ἔργα τοῦ Θεοῦ) apresentam uma clara valência messiânica. Quanto ao verbo, ainda que neste caso seja utilizado na voz passiva para indicar a ação de Deus, aponta-nos sempre para a revelação cristológica (cf. Jo 1,31; 2,11; 3,21; 7,4; 17,6; 21,1.14). O termo “obras”, ao qual se recorre frequentemente no quarto evangelho, ainda que

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seguido do genitivo “de Deus”, refere-se à missão realizada pelo Messias de Nazaré. A utilização do plural procura realçar o caráter poliédrico da sua intervenção messiânica. Esta resposta de Jesus desperta a esperança de que a sua ação poderá transformar aquela vida, marcada pelo drama do sofrimento, numa existência tocada pela ação reveladora de Deus257.

Embora os rabinos admitissem que Deus administrava aos Homens “castigos de amor”, isto é, que lhes enviava penas que, suportadas com bom ânimo, lhes poderiam proporcionar várias recompensas e uma vida longa, a verdade é que neste caso do cego de nascença, bem como no caso da doença de Lázaro (cf. Jo 11,4), não parece ser esta a ideia de Jesus. Em ambos os casos o que se pretende realçar é a intervenção de Deus na história para glória do Seu nome. Um bom exemplo desta glorificação do nome de Deus é a passagem de Ex 9,16, onde Deus diz ao faraó: «Por causa disto te conservei de pé: para te fazer ver a minha força a fim de que o meu nome seja proclamado em toda a terra». Deste modo, as obras, os “sinais” realizados por Jesus são obras de Deus, são manifestações da sua obra salvífica (cf. Jo 5,36, 10,32.37; 11,4; 14,10). Esta associação das obras de Jesus às obras de Deus, isto é, a constatação de que as obras realizadas por Jesus são obras de Deus, está também presente, por exemplo, em Mt 12,28 e em Mc 2,7 onde se realça este facto258.

Assim sendo, Jesus, contrariamente à conceção amplamente difundida entre os judeus, não vê nenhuma relação de causalidade entre culpa e enfermidade, mas antes coloca em relação a cura, que se espera, com as suas obras, enquanto obras de Deus259.

A cegueira física do pobre mendigo não é consequência de pecado algum, nem pode ser entendida como um castigo divino. É um acidente da natureza que nada tem a ver com o pecado (cf. Lc 13,2). A oração subordinada final, que surge no seguimento das palavras de Jesus (ἵνα), marca uma completa mudança de sentido e de perspetiva: as obras de Deus não se manifestam na destruição da pessoa, mas na sua cura, como sugere o “sinal” que se segue. O que importa não é o porquê, mas o para quê da enfermidade. Ela vai servir para mostrar Deus em acção: “as obras do Pai”, que se manifestam na atuação do Filho260. E porque estas obras são manifestações que o Pai deu ao Filho

realizar, é fácil descortinar nas palavras de Jesus o anúncio da cura do cego que Ele se dispõe a concretizar. Neste sentido, os “sinais” são chamados de “obras de Deus”,

257 Cf. GRASSO, Santi – Il vangelho di Giovanni, p. 412.

258 Cf. BROWN, Raymond E. – El Evangelio según Juan!-XII, p. 676. 259 Cf. BEUTLER, Johannes – Comentario al evangelio de Juan, p. 242. 260 Cf. KONINGS, Johan – Evangelho segundo João, p. 198.

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porque são manifestação da obra da salvação, que Jesus leva a cabo por encargo do Pai261.

Deste modo, Jesus encontra na cegueira uma ocasião para se manifestarem no homem as obras de Deus, afirmando que a falta de visão não é um castigo e que Deus não é indiferente ao mal; ele quer que o homem saia da sua miséria e ajuda-o a isso. Quando Jesus declara que «é para nele se manifestem as obras de Deus» (Jo 9,3), Ele não quer afirmar que este homem fora cego para que Deus pudesse mostrar o seu poder, mas antes se quer referir à situação do cego que está ali e a quem vai devolver a vista, manifestando, deste modo, a acção de Deus no mundo262. Não se pode dizer que Deus

tenha feito o homem nascer cego para se poder manifestar como “aquele que dá a vista aos cegos”, ainda que algumas expressões bíblicas, nas quais se realça a radical liberdade e eficácia da ação de Deus, se possam prestar a estas interpretações escandalosas (cf. Esd 9,15-16; cf. Rm 9,17). A perspectiva que o evangelho defende é outra: os “sinais” realizados por Jesus são uma resposta a situações humanas de radical impotência, revelando-se através deles o poder libertador de Deus (cf. Jo 2,11; 5,17.36; 11,4.40; 16,6)263.

A cegueira do cego torna-se, assim, lugar da intervenção libertadora de Deus. Na pessoa do cego, Deus revela-se, não como um Deus castigador e vingativo, mas como um Deus que salva. Daí que a cura do cego se anuncie e se apresente como uma “obra de Deus”264, com a qual Ele o liberta da infelicidade e o leva a gozar da Luz sem ocaso.

Assim, a cura daquele homem constitui-se como um momento de revelação de Jesus enquanto Luz do mundo, enquanto portador da Luz da revelação, que se manifesta no seu sentido mais profundo quando o cego adquire também a visão espiritual (cf. Jo 9,35-39)265.