• Nenhum resultado encontrado

IV. UMA HERMENÊUTICA DA VISÃO

4.2 A visão da Fé na perspetiva joanina

Como já tivemos ocasião de mencionar, uma das principais finalidades do quarto evangelho é orientar e sustentar o caminho do Homem até à fé e, por ela, até à Vida. Logo, não há ensinamento de Jesus que não exija ou que não pressuponha a presença da fé como condição necessária e essencial. De acordo com a conceção joanina, a fé é

141

resultado da vinda de Jesus e da sua aceitação, ao passo que a recusa da fé se constitui, simultaneamente, como raiz e como manifestação do mal presente no Homem, que não se abre a Deus e que rejeita a salvação396. A fé é, portanto, o assentimento do Homem à

revelação, que assim se vê liberto da desesperança e entra em contato com o “totalmente Outro”, o único que o pode salvar. Para João, este “Outro” é Deus, que se revelou historicamente na pessoa de Jesus Cristo397.

Uma das caraterísticas da fé, segundo a perspetiva joanina, é a grande quantidade de termos que a indicam ou que se referem a atividades por ela coordenadas e com ela relacionadas. Nesta linha de entendimento, inserem-se ações como o “conhecer”, o “acolher”, o “ver”, o “escutar”. Todas elas descrevem a atividade daquele que entra em contato com uma realidade misteriosa, mostrando-se capaz de ultrapassar a sua aparência e superficialidade para penetrar na sua natureza mais profunda. Ao fazê-lo, o Homem, em certa medida, toma essa realidade como sua, já que a aceita com a mente e com o coração, trilhando um caminho de salvação, tal como este é enunciado no quarto evangelho: com a encarnação do Verbo e com o caminho da experiência humana, para alcançar a glória do Verbo diante de Deus398.

Daí que João considere que crer é “assentir”, “aceitar”, “conhecer” aquilo que foi revelado. Deste modo, fé e conhecimento aparecem várias vezes ligados entre si (cf. Jo 4,42; 6,69; 8,24). Contudo, estes dois termos, fé e conhecimento, não são a mesma coisa. Embora a relação entre quem aceita a revelação e aquele que Se revela possa ser expressa em função da fé ou do conhecimento (cf. Jo 7,17; 16,27), a verdade é que o autor do quarto evangelho nunca afirma que Jesus tem fé no Pai, mas antes que O conhece e que é conhecido por Ele. É a fé que conduz ao conhecimento, como também conduz à Vida. Deste modo, o conhecimento procede da fé e o crente apenas é introduzido no verdadeiro conhecimento de Deus na medida em que consegue alcançar e possuir esse mesmo conhecimento mediante a fé. Tal conceção opõe-se ao princípio fundamental do gnosticismo, segundo o qual existe um conhecimento superior capaz de conduzir à salvação e que não se encontra acessível ao simples crente. Recusando tal perspetiva, o autor do quarto evangelho defende que só por e através da fé é que o

396 Cf. GHIBERTI, G. – Juan. In PACOMIO, L. (dir.) [et al.] – DTI. Salamanca: Ediciones Sigueme,

1982, vol. 3, p. 189.

397 Cf. VAWTER, Bruce – Teologia de San Juan. In BROWN, Raymond E. (dir.) [et al.] – CBSJe, tomo

5, p. 849.

142

conhecimento poderá ter algum sentido e significado, só mediante a fé é que ele poderá contribuir alguma coisa para a salvação399.

Há ainda que realçar que, para João, o conhecimento implica um assentimento eminentemente ativo. O “conhecer joanino” não se trata apenas do reconhecimento de certos factos, como, por exemplo, que Jesus vem de Deus (cf. Jo 7,28) ou que o Filho de Deus se manifestou na carne (cf. 1 Jo 5,5-7), mas, antes de tudo, para João, o conhecimento trata-se de uma implicação ativa numa nova experiência, visto que o objeto de tal conhecimento não é uma coisa, mas sim uma pessoa. Portanto, conhecer a Deus é receber as palavras de Deus (cf. Jo 12,48; 17,8), é receber o próprio Verbo de Deus e comprometer-se com uma vida semelhante à de Deus (cf. 1 Jo 2,3-6), seguindo o exemplo do Verbo feito carne400.

No que diz respeito a esta relação entre a fé e o conhecimento, é necessário ainda não esquecer o especial ênfase que João dá à filiação divina do crente. O mundo semítico considerava que o conhecimento é mais uma postura vital do que um ato específico do entendimento401. Como tal, conhecer a Deus não era simplesmente aderir

a Deus com a inteligência, mas era chegar a ser alguma coisa com Ele. Apesar desta ideia se encontrar em Paulo e no NT em geral, a verdade é que só João é que foi capaz de afirmar que o crente «nasceu de Deus» (Jo 1,13; 3,4-8). Tal filiação não se trata de algo meramente formal, mas implica uma vida em que se evite o pecado e em que se faça um esforço para chegar à unidade com Deus402 (cf. Jo 8,42-47.54-56).

Também existe uma íntima relação entre o “crer” e o “seguir”, dado que a aceitação da fé tem como consequência a imitação, a união, o seguimento. Assim sendo, o discípulo encontrar-se-á onde está o Mestre (cf. Jo 12,26; 14,3) e permanecerá com Ele (cf. Jo 1,38). Esta é a condição fundamental para a salvação: “permanecer” em Jesus. Como consequência da fé e do seguimento é necessário tomar uma decisão e firmar um compromisso. Aquele que aceita Jesus tem também de aceitar a sua renovação. O critério orientador do crente é imitar Jesus, é seguir o Seu exemplo, é tomá-Lo como modelo, tornando-se, por isso, objeto de ódio para o mundo (cf. Jo

399 Cf. VAWTER, Bruce – Teologia de San Juan. In BROWN, Raymond E. (dir.) [et al.] – CBSJe, tomo

5, p. 850.

400 Cf. Ibidem.

401 Cf. PREUSS, Horst Dietrich – Teología del Antiguo Testamento: El camino de Israel com Yahvé.

Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 1999, vol. 2, p. 287.

Cf. RINGGREN –ןינּ – bīn [entender]. In BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer (dir.) – DTAT, vol. 1, col. 627-636.

143

15,18). Aquele que segue Jesus vive com o olhar voltado para a “vida eterna” que, embora transcenda as dimensões da experiência presente, não as anula. Esta “vida” realiza-se já no presente, pelo que não aceita aquilo que se opõe ao amor de Deus, aquilo que é da carne, do mundo, do diabo403.

Nunca perdendo de vista a figura central do nosso relato, podemos afirmar que, de acordo com a perspetiva joanina, o cego de nascença chegou ao conhecimento de Jesus mediante a fé: foi a fé que o levou a percorrer um caminho que o conduziu progressivamente a um maior conhecimento de Jesus; a fé levou-o a reconhecer n’Ele o Filho do Homem (cf. Jo 9,36-38); a fé tornou-o Filho de Deus, pois estimulou o seu seguimento de Jesus, fez dele Seu discípulo (cf. Jo 9,28). Tomando a opção de “permanecer” em Jesus, o que fora cego conquistou o ódio do mundo, sendo expulso da sinagoga (cf. Jo 9,34). Contudo, tal “permanência” também lhe assegurou a verdadeira vida, também rasgou o horizonte do seu olhar, acalentando nele a esperança de um dia ver a Luz “face a face”. Assim sendo, foi a fé que o levou a “seguir” e a “permanecer” em Jesus, proporcionando uma transição progressiva da morte para a vida, da cegueira para a visão.

Portanto, “crer” é também “ver”, já que a fé proporciona não só uma visão de Deus, mas uma visão de todas as coisas à luz de Deus, pelo que o crente deve renunciar aos critérios do mundo e deve olhar para o mesmo mundo com os olhos de Deus, isto é, de acordo com os critérios da revelação operada em Jesus Cristo404; é esta configuração

do olhar que nos permite “ver” a Jesus (cf. Jo 12,21-26).

No quarto evangelho, João emprega diversos verbos para expressar a ação de ver:

ὁράω, βλέπω, θεωρέω. O primeiro, ὁράω, assume algum relevo na medida em que é

utilizado para expressar o que o Filho preexistente viu no Pai (cf. Jo 3,11.32; 6,46; 8,38). O segundo verbo, βλέπω, quando usado como intransitivo, significa “ter a faculdade da visão”, sendo utilizado várias vezes ao longo do capítulo 9 para se referir à visão adquirida por aquele que fora cego (cf. Jo 9,7.15.19.21.25.39.41); como transitivo, significa “ver”, “olhar” (cf. Jo 1,29; 5,19; 11,9; 13,22; 20,1.5; 21,9.20). O terceiro verbo, θεωρέω, aparece 23 vezes no evangelho de João, sendo utilizado para exprimir a perceção de uma realidade cuja evidência ou a presença, física ou não, se impõe ao sujeito. Este verbo, não faz qualquer referência ao grau de penetração nessa realidade.

403 Cf. GHIBERTI, G. – Juan. In PACOMIO, L. (dir.) [et al.] – DTI, vol. 3, p.190-191.

404 Cf. VAWTER, Bruce – Teologia de San Juan. In BROWN, Raymond E. (dir.) [et al.] – CBSJe, tomo

144

De acordo com os contextos, pode-se traduzir por “perceber”, “presenciar”, “ser testemunha de”, “constatar”, “ver presente”, “ter diante”. Como tal, é este o verbo utilizado em Jo 9,8 para constatar a antiga condição de mendigo do cego405.

Segundo Bultmann, a conceção do “ver” no evangelho de João orienta-se em três direções distintas. Em primeiro lugar, os objetos do ver podem ser pessoas, coisas ou acontecimentos, geralmente percetíveis no mundo físico terreno (cf. Jo 1,38.47; 9,8). Depois, o “ver” também se pode referir a coisas, acontecimentos ou fenómenos sobrenaturais, que apenas podem ser percebidos, de modo excecional, por determinadas pessoas (cf. Jo 1,32-34; 20,12.14). Por fim, se estas duas formas de “ver” significam uma perceção sensível, ainda é possível que este “ver” manifeste uma perceção interna não sensível de certas coisas. Contudo, não se trata aqui de uma visão mística e muito menos da visão platónica das ideias; trata-se sim de uma visão espiritual, da “visão da fé”, da visão que reconhece no Encarnado, no ‘Enviado’, o filho de Deus. Paradoxalmente, esta perceção interna pode coincidir com a perceção sensível de Jesus (cf. Jo 1,14, 6,40; 12,45; 14,9), ainda quando parece encontrar-se desligada dela406.

No quarto evangelho, Jesus é aquele que tem sobre o Pai uma visão exclusiva e sem precedentes (cf. Jo 1,18), já que Ele tem experiência direta de Deus e da sua mensagem (cf. Jo 3,32; 8,38.55). O que Jesus comunica e aquilo de que dá testemunho procede dessa experiência que Ele tem do Pai (cf. Jo 3,2) e que Ele torna visível na sua pessoa e obra (cf. Jo 1,18; 14, 9-11). A Deus nunca ninguém o viu, mas na luz de Jesus podemos contempla-Lo, pois quem vê a Jesus também vê o Pai (cf. Jo 14,9). Contudo, a verdade é que muitos viram a Jesus sem o “ver” realmente, sem penetrar na sua verdadeira identidade. Daí que João afirme que «a Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam» (Jo 1,5). Segundo Barberá, esta frase pode-se revestir de um duplo significado. Por um lado, como esta luz brilhou no meio daqueles que andavam nas trevas, estes não se encontravam capacitados para a ver, pois quem tem atitudes duvidosas e obscuras, é natural que «prefira as trevas à luz, pois as suas obras são más» (Jo 3,19) e eles não querem que estas sejam vistas. Esta é uma Luz que desperta e que, por isso, tem de ser desejada, tem que se ir ao seu encontro. Por outro lado, como se

405 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 290. 406 Cf. BULTMANN, Rudolf – Teología del Nuevo Testamento, p. 490.

145

trata de uma Luz escondida, oculta, velada e pouco perceptível, só aqueles que estão preparados é que a podem distinguir407.

Os discípulos são aqueles que estão atentos e preparados para reconhecer e aceitar a Luz. Assim sendo, a experiência que eles fazem de Jesus situa-se também ela na ordem da visão (cf. Jo 1,39; cf. Jo 1,46; 9,37; 12,21), bem como a experiência que eles fazem do ressuscitado, a qual se expressa em termos de visão pessoal e imediata. Esta visão de Jesus morto e exaltado, que se perpetua no ressuscitado, não se trata de uma visão física, mas trata-se, na verdade, de uma visão ou contemplação da glória (cf. Jo 1,14; 17,24), que inclui a participação nessa mesma realidade que se contempla. Esta visão expressa a contínua comunicação do espírito de Jesus aos seus. Assim sendo, tal visão refere-se à comunicação, ao Homem, da vida que supera a morte e cumpre-se na cruz, onde a testemunha vê a efusão do sangue e da água do lado aberto de Jesus, símbolos da glória, do amor demonstrado e do amor comunicado408 (cf. Jo 19,34).

Como afirma Dodd:

«Se as ações de Cristo devem ser tomadas como equivalentes da irradiação na qual o poder e a presença de Deus são transportados para dentro da experiência humana, ou em outras palavras, na qual a luz eterna é percebida por si mesma, então a ação na qual ele mais plenamente se expressou a si mesmo, a saber, sua autoconsagração à morte por amor à humanidade, é a manifestação decisiva da glória divina»409.

A esta visão e contemplação da glória que comunica a vida opõe-se a não-visão daqueles que não aderem ao Filho410: «quem se nega a crer no Filho não verá a vida,

mas sobre ele pesa a ira de Deus» (Jo 3,36); «quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus» (Jo 3,3). Pelo contrário, o discípulo, aquele que segue Jesus e n’Ele crê, recebe a Vida, que elimina toda a experiência de morte411: «se alguém observar a minha

palavra, nunca morrerá» (Jo 8,51).

O “ver” trata-se, portanto, da perceção da fé que reconhece na pessoa histórica de Jesus a verdade e a vida, as quais só se podem receber por meio dessa mesma fé, pelo que não poderão ser percebidas imediatamente. Se a adesão a Jesus se baseia na perceção da glória manifestada, a verdade é que esta adesão primeira supõe a

407 Cf. BARBERÁ, Carlos F. – Mirar para ver a Dios. In GUARDINI, Romano (introd.) – Ver, oír, oler,

gustar e tocar a Dios, p. 22.

408 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 291-292. 409 DODD, Charles Harold – A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 277.

410 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 292. 411 Cf. Ibidem.

146

compreensão plena do amor de Deus e apenas se verá completada quando o discípulo tiver compreendido o alcance pleno dessa glória: a comunicação que Deus faz ao Homem, por meio de Jesus, da vida definitiva que supera a morte412. A manifestação da

glória, a experiência do amor de Jesus, experimentada durante a Sua vida, fundou a fé incipiente dos discípulos (cf. Jo 2,11; cf. Jo 16,31-33); a presença do Espírito na comunidade, fruto da morte e exaltação de Jesus, mostra que Ele venceu a morte. A experiência desse amor conduzirá à fé em Jesus vivo e ressuscitado. Portanto, segundo a conceção joanina, a aceitação e a prática do amor são anteriores à experiência de Jesus, pelo que é a vontade de realizar os desígnios de Deus que leva a reconhecer que os ensinamentos de Jesus procedem de Deus (cf. Jo 7,17); é a prática da mensagem de Jesus que conduz ao conhecimento da verdade (cf. Jo 8,31); é a concretização da palavra do Pai e a aceitação das suas exigências que permite reconhecer a origem divina de Jesus e crer nele como sendo o ‘Enviado’ de Deus (cf. Jo 17,6-8)413. Foi isto que se

sucedeu com o cego de nascença: concretizou as palavras de Jesus, acedeu ao seu pedido, foi lavar-se à piscina de Siloé, aderiu ao ‘Enviado’ e ao fazê-lo iniciou um processo de conhecimento da verdade e de reconhecimento da identidade divina de Jesus.

O que se havia anunciado no AT, e aí se manifestava por meio de sinais, torna-se agora uma realidade histórica no Verbo feito carne. A fé, que reconhece por meio da visão e da audição, responde à revelação de Deus em Jesus Cristo. É essa mesma fé que leva o Homem a reconhecer nos sinais de Jesus a glória do Pai. Foi para isso que «o Verbo se fez carne»: para nos dar a “ver” e a “conhecer” o Pai (cf. Jo 14,8-14) e para que nós pudéssemos “contemplar” a sua glória (cf. Jo 1,14). Este “contemplar” não se refere a um testemunho ocular de caráter histórico, pois nesse sentido, também os judeus incrédulos, que foram incapazes de receber a glória de Deus, seriam considerados testemunhas oculares. O sujeito deste “contemplar” são antes os crentes, não apenas os primeiros discípulos, mas os crentes de todos os tempos, pois Jesus não era o “Encarnado”, o ‘Enviado’ do Pai, apenas na altura, mas é-o para todo o sempre. A fé nunca se pode separar da pessoa de Jesus, pois não é possível “ver” diretamente a glória ou a verdade e a vida de Deus414.

412 Cf. BULTMANN, Rudolf – Teología del Nuevo Testamento, p. 490.

413 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – VTESJ. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 293-294. 414 Cf. BULTMANN, Rudolf – Teología del Nuevo Testamento, p. 490.

147

A fé trata-se, portanto, de um encontro pessoal com a pessoa de Jesus, a fim de O “ver”, “ouvir” e “conhecer”. Quando Jesus questiona o cego sobre a sua fé no Filho do Homem, fá-lo através de uma pergunta bastante enfática, onde parece utilizar deliberadamente o pronome pessoal “tu”: «Tu crês no Filho do Homem?» (Jo 9,35). O pronome “tu”, embora fosse dispensável, serve os intentos de Jesus de sublinhar que a fé implica a relação de um “tu” com um “eu”, isto é, envolve uma relação pessoal e íntima. A resposta do homem que fora cego não é precipitada nem imediata, mas antes reclama orientações: «E quem é, Senhor, para eu crer nele?» (Jo 9,36). O homem não coloca condições para crer e ainda antes de o verbalizar, já acredita nas palavras de Jesus: «Já o viste. É aquele que está a falar contigo» (Jo 9,37). Esta referência à visão adquire aqui um significado tanto físico como espiritual: porque fisicamente curado, o homem pode agora ver Jesus, mas, porque acreditou, agora também já o pode “ver” na sua condição de Filho de Deus, de Verbo Encarnado, de ‘Enviado’ do Pai. É de salientar ainda o realce que se dá à audição. Tal como no diálogo com a samaritana (cf. Jo 4,26), também aqui Jesus se define como “Aquele que fala contigo”. A utilização do tempo presente deixa patente a duração prolongada e duradoura da ação de falar: Jesus fala e continuará a falar. Deste modo, o Senhor reclama de nós uma fé alicerçada na sua Palavra o que nos conduz, necessariamente “Àquele que fala”415.

Assim sendo, o “ouvir” e o “ver” encontram-se intimamente relacionados com o crer, dado que o “ver” e o “ouvir” provocam a fé (cf. Jo 2,11; 20,8), conduzem ao conhecimento de Jesus (cf. Jo 14,9) e alimentam a perceção interior (cf. Jo 4,19). A fé reconhece o Messias que veio416. Neste sentido, o “ver” é o reconhecer próprio da fé. Só

na medida em que a fé é reconhecimento é que se trata de fé autêntica. Só se o crente permanecer fiel à palavra de Jesus é que receberá o conhecimento da verdade e se tornará verdadeiramente seu discípulo (cf. Jo 8,31-32). O mesmo é dizer que o verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que é capaz de “ver”, de “reconhecer” n’Ele o Messias e de desenvolver n’Ele uma fé profunda e verdadeira. Não se pode confundir esta fé verdadeira com a fé aparente, que se desenvolvia a partir dos “sinais” de Jesus e na qual Ele não acreditava (cf. Jo 2,23-25; 7,31; 10,42; 11,45; 12,11). Tal fé pode resultar como momentânea e superficial, sendo necessário ser revalidada como uma fé

415 Cf. SOUSA, Mário José Rodrigues de – Os encontros de Jesus no Evangelho de São João. Prior

Velho: Paulina Editoras, 2012, p. 76-77.

148

autêntica, a qual tem de passar por «guardar a palavra» de Jesus (cf. Jo 8,51; 14,23; 15,20; 17,6) e «permanecer» nela (cf. Jo 8,31)417.

O “ver” trata-se, portanto, de um encontro pessoal e existencial com Jesus. Contudo, a fé que se funda unicamente na visão humana não é a que tem a primazia, pois Jesus espera que se creia sem que se tenha visto (cf. Jo 20,29). A verdadeira visão, a visão da fé é, em certa medida, uma verdadeira visão de Deus e da Verdade, ainda que João não negue que a visão definitiva está reservada para quando a fé der lugar a algo mais excelente e nós virmos Deus tal como Ele é (cf. 1 Jo 3,2)418.