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III. ANÁLISE SEMÂNTICA

3.1 Um tempo, um espaço, um olhar, uma personagem (Jo 9,1)

antagonistas e sai do Templo. A cena sucede-se, portanto, fora do Templo nos seus arredores, algures em Jerusalém, o que poderá representar a carência de sentido

221 Cf. LEON, Domingo Munõz – El Don de Dios Amor: Cristo, luz del mundo y pan de vida, en San

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salvífico do cego222. Todavia, não se faz uma referência direta e precisa nem ao tempo

nem ao espaço. “Ao passar” (παράγων) faz supor unicamente que Jesus vai a andar, interessando apenas a temática, em conexão com as secções anteriores223. O uso do

particípio presente, bem como da conjunção “e” (καὶ) sugere-nos que existe uma certa continuidade com a cena precedente, pelo que o nosso marco temporal deverá ser no Outono, no último dia da festa das Tendas, ao qual se faz alusão em Jo 7,37. A próxima indicação precisa relativa ao tempo só nos é dada em Jo 10,22, que nos coloca na celebração da festa da Dedicação do Templo, que tem lugar três meses depois. Portanto, a única certeza que temos é que os acontecimentos do capítulo 9 e do início do capítulo 10 tiveram lugar entre estas duas festas, sendo provável que não tenham decorrido todos no mesmo dia, como já vimos anteriormente, nem no dia da festa da Dedicação224.

Acontece, porém, que as alusões simbólicas à água e à luz, feitas na nossa perícope de estudo (Jo 9,1-7), remetem os acontecimentos aí narrados para o último dia da festa das Tendas. Nesta festa, acendiam-se, no átrio das mulheres, grandes luzes, em gigantescos candelabros, e, durante os oito dias da festa, os sacerdotes iam até à piscina de Siloé, que ficava na parte baixa da velha Jerusalém, para aí encherem de água bacias de ouro. Depois empreendiam a subida até ao templo, situado na parte mais alta da colina oriental, e aí derramavam a água sobre o altar225. É nesta festa, marcada pela

simbologia da luz e da água, que Jesus se apresenta como a Luz do mundo (cf. Jo 8,12) e a Água viva (cf. Jo 7,37-39).

Todavia, se, por um lado, a expressão “ao passar” serve para o autor ligar literalmente a narração à passagem que a precede, por outro, indica teologicamente que Jesus está sempre a atuar na vida dos Homens, que Ele se encontra sempre a caminho porque se quer encontrar com eles226.

Não obstante esta interpretação, Wikenhauser apresenta uma outra perspetiva. Para este autor, a expressão com que se inicia o capítulo 9 (“ao passar”) não procura

222 A tradição judaica relegava os cegos e os coxos para a porta do Templo; estes não podiam entrar e para

justificar esta atitude utilizava-se a palavra irónica de David sobre os cegos e coxos: «David disse naquele dia: “Quem quiser atacar os jebuseus suba pelo canal e mate esses cegos e coxos, que David despreza. Daí, o ditado: ‘Nem cego nem coxo entrarão no templo’ ”» (2 Sm 5,8).

223 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan – El Evangelio de Juan: Analisis Lingúistico y Comentario

Exegetico, p. 433.

224 Cf. ROBERTSON, Archibald Thomas – Imágenes Verbales en el Nuevo Testamento: el evangelio

según San Juan; la epístola a los Hebreos. Barcelona: Editorial CLIE, 1990, vol.5, p. 185.

225 Cf. MARTÍN-MORENO, Juan Manuel – Personajes del cuarto evangelio. 2ªed. Madrid: Universidad

Pontificia Comillas, 2002, p. 145. Biblioteca de Teologia; 7.

Cf. BEUTLER, Johannes – Comentario al evangelio de Juan, p. 197.

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relacionar o episódio com a saída do templo (cf. Jo 8,59). Assim sendo, esta enunciação apenas significaria que, um dia, Jesus encontrou casualmente um mendigo, cego de nascença. Este encontro poderá ter ocorrido na esplanada do templo, possivelmente junto da porta Formosa, a entrada do átrio das mulheres (cf. Act 3,2), ou noutro lugar bastante frequentado227. Independentemente do lugar, tem-se a certeza que a cura do

cego ocorreu em dia de sábado (cf. Jo 9,14).

Tal facto leva alguns estudiosos a pensar que os acontecimentos de Jo 9,1-7 não teriam tido lugar no mesmo dia em que os judeus haviam tentado apedrejar Jesus, pois seria pouco provável que o fizessem num dia sagrado. Contudo, este não seria o primeiro crime que os judeus, cegos pela ira e pelo ciúme, se permitiriam a cometer no dia de repouso (cf. Mt 27,62-66). Mesmo que os acontecimentos narrados no capítulo 9 não tenham acontecido no mesmo dia em que tentaram apedrejar Jesus até à morte, a verdade é que a cura do cego de nascença não poderá ter sucedido muito tempo depois, sendo incorreto pensar que tenha ocorrido na festa da Dedicação228.

O homem junto ao templo a mendigar e a pedir esmola (cf. Jo 9,8) é a expressão viva do estado em que os dirigentes de Israel haviam deixado as suas gentes: tinham criado um povo inválido, que não podia mover-se nem orientar-se por si mesmo. São estes, os que vivem nas trevas e nas sombras da morte (cf. Lc 1,79) e que não são responsáveis pela sua situação, que são atraídos por Jesus229. O cego está parado,

esperando que alguém o ajude. É então que Jesus passa e é o primeiro a olhar para aquele homem desprezado, tomando a iniciativa como já havia feito com o paralítico de Betesdá230. A iniciativa é toda de Jesus: é Ele que, ao passar, “vê” o cego; “vê” aquele

que não vê. O seu olhar coloca em marcha toda a ação, enquanto o cego permanece totalmente passivo e indiferente. Ao fixar o seu olhar no cego, Jesus desperta a atenção dos seus discípulos, espicaça os seus pensamentos e os seus sentimentos, a fim de melhor os instruir e de os despertar mais profundamente para as suas instruções231.

O homem que Jesus vê é cego de nascença. Esta particularidade revela a atenção e a sensibilidade do narrador, que previamente tem conhecimento deste facto, ao qual não se havia ainda feito qualquer referência. Porque o narrador conhece tudo o que se refere ao início e ao fim do relato, também os leitores sabem tanto como ele. A tradição

227 Cf. WIKENHAUSER, Alfred – El evangelio según San Juan, p. 283. 228 Cf. HENDRIKSEN, William – Comentario al Nuevo Testamento, p. 338.

229 Cf. SÁNCHEZ, Secundino Castro – Evangelio de Juan: comprensión exegético-existencial. 3ª ed.

Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2001, p. 213. Biblioteca de Teologia; 2.

230 Cf. ZEVINI, Giorgi – Evangelio según San Juan, p. 236.

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evangélica não conhece outros casos de cura de doenças congénitas, contudo o relato joanino atribui a esta particularidade uma significativa importância, revelada no decorrer da narração232. Em comparação com outros relatos neotestamentários que

aludem a curas de cegos (cf. Mc 8,22-26; Mc 10,45,52), o cego de Jo 9 é-o desde o nascimento (ἐκ γενετῆς). Desta forma, o evangelista realça a difícil situação do enfermo: não se trata de uma cegueira acidental ou tardia, mas desde o seu nascimento. Este facto faz sobressair o significado do “sinal” e permite um aprofundamento teológico do mesmo: as pessoas que, por natureza, não possuem força visual, recebem- na ao encontrarem-se com Jesus233.

Em todo o NT, o termo γενετή só aparece nesta passagem, verificando-se antes uma preferência pelo uso da expressão “desde o ventre materno” (κολίας μητρός), como acontece com os enfermos de Act 3,2; 14,8 ou com os eunucos de Mt 19,12. Se esta cegueira de nascimento, por um lado, serve para sobressair o elemento divino, por outro, parece exprimir igualmente a ideia de que a humanidade, por natureza, não é recetiva à luz (cf. Jo 1,5.10-12), isto é, o Homem é espiritualmente cego desde o nascimento234. Assim sendo, o cego, que sempre havia vivido na obscuridade, torna-se

no símbolo da existência humana entregue às trevas.

Deste modo, podemos afirmar que a cura do cego de nascença, com todas as circunstâncias que a envolvem, mais do que se tratar apenas de um acontecimento sobrenatural, tem como finalidade a instrução espiritual de todo o crente. A cegueira daquele homem é imagem da nossa própria cegueira, já que, como ele, também nós descendemos de Adão, faltando-nos a Luz de Deus e a capacidade de esperar uma cura235.