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3.2 Por que proteger a participação política da mulher?

3.2.3 Filosóficos: “não há nada de novo debaixo do moderno sol”

3.2.3.2 Justiça, sexo e política: incluir, redistribuir e reconhecer

Considerando que a exclusão das mulheres do espaço público não faz mais parte do discurso legítimo, tendo ruído todos os pressupostos pretensamente naturais sobre os quais se assentava; considerando também que as instituições e práticas dominantes são estruturadas a partir do lugar de fala masculino, já que as mulheres são minorias na política, no mercado de trabalho e nos postos mais de alto de poder, sob o ponto de vista da teoria da justiça o correto/justo seria aguardar o curso da modernidade confiando que um dia esse espaço um possa vir a ser ocupado por todos e todas ou urge, para remediar as exclusões infundadas, que políticas de inclusão sejam formuladas nesse sentido?

Primeiramente, precisa-se ter conta o seguinte: tratando-se de cargos políticos, estes foram por muitos séculos acessíveis e distribuídos apenas por homens e para homens, o que explica a dificuldade de acesso das mulheres a esse bem na atualidade.

Abreu (2011) aponta que o número de cadeiras no parlamento é limitado e que, portanto, a luta pelo “poder formal” também será limitada, o que significa dizer que, se uma quantidade de mulheres passar a ocupar as cadeiras parlamentares, um número de homens terá de deixar de ocupar.

Ou seja, ao se adotar medidas jurídicas no sentido de se aumentar o acesso da mulher à participação na política formal, estar-se-á interferindo na ordem atual pela disputa por esse recurso/bem de caráter escasso (ABREU, 2011). Logo, a (re)distribuição desse bem – cargo político-eletivo parlamentar –, como qualquer outro bem disputado e monopolizado por certo grupos, será um dilema moral, ético e jurídico sempre polêmico.

Quando se pensa em justiça e em Direito, automaticamente se faz uma relação entre distribuição de bens. A própria concepção aristotélica de justiça como equidade de dar a cada um o que é seu, que é a base teórica-filosófico do conceito de justo, reforça que as

teorias da justiça tem grande preocupação da forma como distribuir os bens e recursos presentes na sociedade.

Ao analisar a redistribuição de bens numa sociedade, a filósofa Fraser (2010) desenvolve sua concepção integrada de justiça, a qual propõe uma integração entre as políticas de redistribuição, reconhecimento e participação95.

A autora destaca que a redistribuição e o reconhecimento são dimensões da justiça que podem perpassar por todos os movimentos sociais, superando a ideia de que a redistribuição estaria relacionada com as injustiças de classe (bens econômicos e sociais) enquanto o reconhecimento com as injustiças de gênero e raça (postulação por reconhecimentos de identidades como ser de igual valor e consideração aos demais) (FRASER, 2010, p. 169).

Daí por que sua proposta de uma concepção de justiça integrada, que é bidimensional, alberga demandas tanto de igualdade social como pelo reconhecimento da diferença. Sua proposta é “construir uma orientação político-programática que integre o melhor da política de redistribuição com o melhor da política do reconhecimento” (FRASER, 2010, p. 169).

Considera, conquanto, que a redistribuição e o reconhecimento são dimensões diferentes, mas integradas entre si pelo núcleo da “participação paritária”96.

Para que a participação paritária97 seja possível, a autora elenca que duas

condições devem ser satisfeitas. A primeira condição é objetiva e deve ser implementada a partir da distribuição de recursos materiais de tal maneira que permita a independência e voz dos participantes (FRASER, 2010, p. 181).

Já a segunda condição é de natureza intersubjetiva, que exige que os padrões institucionalizados de valor cultural possam expressar igual respeito a todos os participantes, assim como igual oportunidade para a conquista da estima social (FRASER, 2010, p. 181). Assim, igual respeito e oportunidade estão na base da teoria da justiça de Fraser.

95 Fraser (2010, p. 167) aponta que as “demandas por redistribuição igualitária forneceram o caso paradigmático

para a maior parte da teorização sobre justiça social nos últimos 150 anos”, mas que uma nova demanda, que é a por reconhecimento, está cada vez mais presente, de modo que muitos dos filósofos e filósofas estão desenvolvendo um novo paradigma de justiça no qual o reconhecimento enteja no centro. Para Fraser (2010, p. 168), essa polarização que existe tanto no campo prático como teórico é falsa e sua tese geral é a de que a justiça necessita tanto da redistribuição como do reconhecimento e a questão de como realizar essa combinação é o ponto crucial de sua produção teórica.

96 Para a filósofa, a justiça exige “arranjos sociais” que possam permitir a interação de todos os adultos de uma

sociedade como pares (FRASER, 2010, p. 181). Só que nem sempre foi assim, como a História revela, daí por que colocar em prática a proposta de justiça de Fraser a partir dos parâmetros que ela estabelece para uma sociedade ser considera justa sempre é uma tarefa das mais difíceis.

97 Para Fraser (2010, p. 181), “a participação paritária é uma norma universalista em dois sentidos. Primeiro

Por meio da sua proposta de “dualismo em perspectiva”, a autora defende que a partir do reconhecimento é possível avaliar os efeitos de uma má distribuição de recursos sobre determinados grupos; e a partir da perspectiva da distribuição é possível avaliar os efeitos econômicos das questões referentes ao reconhecimento. O exemplo que a autora dá é o custo de se “viver no armário” (FRASER, 2010, p. 186-187)98.

Como alerta a autora, o contrário também é verdadeiro, vez que políticas de reconhecimento podem afetar as de redistribuição (FRASER, 2010, p. 187). O caso prático é o reconhecimento jurídico de que a mulher, por ser biologicamente diferente do homem, podendo, por exemplo, engravidar, pode encontrar, como de fato encontra, dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Tal reconhecimento jurídico pode vir a afetar diretamente as condições econômicas da mulher, na medida em que deixam de ser contratadas pelo risco de vir a engravidarem e poderem gozar desse tratamento jurídico diferenciado.

Por conta dessas questões é que a autora defende que o mérito de qualquer demanda deve ser avaliado sob as duas perspectivas. Para Fraser (2010, p. 182), definir “quais pessoas precisam de quais tipos de reconhecimento e em quais contextos depende da natureza dos obstáculos que elas enfrentam em relação à participação paritária”. O gênero, coloca a autora, é uma questão aberta às duas dimensões, tratando-se de um grupo que sofre injustiças tanto por má distribuição de bens e recursos como pelo não-reconhecimento. Segundo Fraser (2010, p. 175), a injustiça de gênero só pode ser combatida por uma abordagem que abranja as duas dimensões apontadas (FRASER, 2010, p. 175).

Destaca a filósofa que o que mais caracteriza a injustiça de gênero é o “andropocentrismo”, o qual, segundo define, trata-se de “um padrão de valor cultural institucionalizado que privilegia traços associados à masculinidade, enquanto deprecia tudo o que codifica como ‘feminino’”. (FRASER, 2010, p. 174-175).

Reconhecer o outro como ser merecer de igual respeito e consideração é, pois, uma questão de justiça, não se podendo admitir que a determinados indivíduos ou grupos sejam negados “o status de parceiros plenos da vida social simplesmente como uma

98 A partir do critério de análise dual proposto por Fraser, é possível verificar a justiça de determinada prática

social tanto a partir dos efeitos no campo da distribuição de bens como do reconhecimento de identidades, considerando, principalmente, que há uma influência recíproca entre as políticas de redistribuição como de reconhecimento. O exemplo que a autora dá é o seguinte: a assistência social é uma política de redistribuição que busca beneficiar pessoas pobres, a qual tem o custo de gerar um estigma quanto ao grupo beneficiário, criando padrões culturais que possam associá-los a pessoas “desviantes” e “exploradoras”. No Brasil um exemplo atual é a política de redistribuição do programa do “Bolsa Família” a qual, como não foi acompanhada de uma política de reconhecimento, serviu para criar padrões culturais, principalmente relacionadas à mulher, de que estas são preguiçosas e que não adotam uma conduta de prevenção à natalidade, pois quanto mais filhos tiverem, mais dinheiro recebem. Ou seja, se criou ainda mais um estigma sobre a mulher pobre. É um exemplo que a distribuição afeta o reconhecimento.

consequência de padrões de valor cultural institucionalizados, em cuja construção eles não participaram em condições de igualdade e que desconsidera suas características distintivas”.

Dessa forma, uma sociedade idealmente justa, para Fraser, será aquela atingida quando todos e todas puderem participar igualmente da construção desses padrões, somente quando poderá se falar em reconhecimento recíproco.

A questão é importante, pois o não reconhecimento não se trata simplesmente de atitudes preconceituosas – construção de categorias de indivíduos inferiores e invisíveis –, mas da instituição de padrões que não contemplam a igual participação de todos na vida social (FRASER, 2010, p. 179).

A exclusão da mulher e de outros grupos sub-representados na política é um exemplo da falta não só de uma política de redistribuição dos cargos político-eletivos, como também de políticas de reconhecimento para que esses grupos possam, igualmente, participar politicamente das atividades governamentais do Estado.

Dominando os homens os espaços públicos e os lugares de fala, os padrões e instituições são construídos ao modo e à luz não do universal, mas do masculino.

Logo, reconhecer não trata simplesmente de uma autorrealização pessoal, mas de conceder a todos o igual direito de conquistar a estima social mediante igual oportunidade e sob condições imparciais (FRASER, 2010, p. 179).

Não é justo, portanto, que alguns grupos como de mulheres e raciais passem por obstáculos na busca por estima social quando alguns grupos não precisam enfrentar.

Assim, enquanto a dimensão da redistribuição tem foco nas injustiças sócio- econômicas que se presumem estar encrustadas na economia política, a dimensão do reconhecimento enfoca nas injustiças culturais e conjectura que essas injustiças estão enraizadas nos “padrões sociais de representação”.

Dessarte, à luz dos debates acima apresentados, os quais foram travados no âmbito da filosofia contemporânea, nota-se que a politização das questões jurídicas da mulher e a reinvindicação por direitos passa, primeiramente, por um processo de rompimento de alguns dos pressupostos da filosofia moderna, como a falsa impressão de que as mulheres fazem parte deste universal e, assim como homens, têm iguais chances e oportunidades de acesso a um espaço e a bens dos quais foram excluídas historicamente.

Em um segundo momento, passa por uma compreensão de que o Direito, enquanto instrumento regulador e distribuidor de bens cuja falsa neutralidade axiológica já

vem sendo denunciada99, deve agir na instituição de políticas de acesso a bens a partir de um

caráter bifronte que considere, a um só tempo, a redistribuição desses bens e o reconhecimento das identidades através de um processo de ampla participação e concessão de lugares de fala no espaço pública às mulheres, a fim de que seus argumentos e suas perspectivas possam, de igual maneira, serem levados em consideração na construção de novos padrões culturais, políticos, econômicos e sociais.

Para o pensamento liberal, se as mulheres desejam tanto serem incluídas e participarem da política, elas que ingressem nos partidos, participem das convenções partidárias, conquistem seu espaço, tudo em igualdade de condições com os homens (MIGUEL, 2014, p. 192).

Como restou demonstrado, esses argumentos não se sustentam, pois desconsideram uma série de fatores reais que minam essa igualdade entre homens e mulheres no início da disputa. Só há sentido de falar de participação entre iguais quando há igualdade de acesso, oportunidade e condições efetivas de participar e influenciar no processo político (AVELAR, 2004, p. 232).

99 Reclamando para si o status de neutro e universal, o direito visa esconder justamente seu particularismo e

sexismo e a perspectiva de gênero visa denunciar suscitando a consciência que as relações de poder foram estabelecidas social, histórica e politicamente entre os sexos. As leis foram feitas sem as mulheres ou, no máximo, como ocorre atualmente, com suma participação irrisória. São leis que não contam com “sus valores, sus perspectivas, sus reivindicaciones y sus diferentes formas de abordar lo político e, por qué no, lo cotidiano. O direito assume, nesse contexto, um importante papel de transformação social se for usado como instrumento de luta para evitar o predomínio de um sexo sobre o outro (FLORES, 2010, p. 124). “Cuando no se tiene en cuenta la exclusión y la dominación, lo jurídico actúa no ya como un freno, sino como un catalizador de la explotación y la subordinación, um instrumento que facilita la reproducción de dicha exclusión y dominación bajo la apariencia de nautralidad, universalismo y abstracción. Y contra esto no es suficiente la política de integración en un onden que se há construido de espaldas a, en este caso, las mujeres. Hay qye luchar por un cambio institucional, jurídico y cultural que incluya radicalmente por igual ambos os sexos en los círculos decisorios públicos e privados, obligando a compartir – se diga lo que se diga desde posiciones liberales de libre elección del modo de vida – asimismo, radicalmente por igual, las cargas e tareas que impone el ámbito de lo doméstico; es decir, construyendo un concepto de derecho y de política radicalmente antisexista que parta del siguiente lema: sexo no, género si” (FLORES, 2010, p. 125). Flores (2010, p. 129) critica, pois, a ideia de direito como um sistema fechado e completo em si mesmo e da ficção da Grundnorm. Essa acepção o direito, conduz aqueles que interpretam, aplicam e legislam ao entendimento de que o direito se sustenta em si mesmo, ou seja, é autossuficiente, não estando sujeito a uma análise prévia da realidade. Ele pondera que essa “utopia da validez formal do direito”, parte do pressuposto de que existe um legislador e um intérprete onisciente com capacidade de conhecer todos os fundamentos e limites do direito sem precisar recorrer a qualquer fator externo. Contudo, para o autor (FLORES, 2010, p. 130), essa onisciência é metafísica e serve para evitar o reconhecimento da presença das ideologias, das relações fáticas de poder na construção do direito e para fortificar a ideia de que as normas são enunciados neutros e universais. Ao tratar da igualdade, o autor (FLORES, 2010, p. 135) frisa que a discriminações podem advir justamente de marcos jurídicos-formais igualitários, diante da existência de uma realidade fática que as impedem de ter acesso a recursos, serviços e condições que as colocariam em uma posição de partida igualitária em relação aos outros. Daí por que, ao seu ver, é necessário: repensar o princípio jurídico da igualdade; estabelecer que tipo de discriminação é preciso evitar e estabelecer os procedimentos para evitá-las; e definir as ações anti-discriminatórias devem ser implementadas (FLORES, 2010, p. 135).

Enfrentados esses pressupostos, fica mais fácil compreender os argumentos morais e filosóficos para a proteção da participação política da mulher através de políticas que integrem a redistribuição de bens e o reconhecimento do sexo feminino.

4 O MODELO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO JURÍDICA À PARTICIPAÇÃO