• Nenhum resultado encontrado

Justificativa quanto à orientação metodológica adotada

CAPÍTULO 1 – M ETODOLOGIA DE PESQUISA

1.2 Justificativa quanto à orientação metodológica adotada

A etnografia educacional partilha muitos aspectos com a pesquisa qualitativa em geral. Em função disso, existem diversas maneiras de entender e de fazer etnografia, impondo-se a necessidade de esclarecer, de partida, a concepção adotada. Ao nos inspirarmos em princípios da Etnografia como orientação metodológica para conduzir uma etapa da investigação, estabelecemos vínculos com o trabalho de campo que realizamos valendo-nos do contato direto e relativamente prolongado que mantivemos com pessoas e situações do contexto escolar, de modo a apreender-lhes os significados. Valemo-nos, também, da observação participante como atividade que demanda do investigador inserir-se no universo das pessoas que pretende estudar, elaborando um registro escrito e sistemático a respeito do observado em um diário de campo, além de entrevistas intensivas, pouco estruturadas, mais semelhantes a conversas, por meio das quais se busca compreender os significados atribuídos pelos sujeitos aos eventos que fazem parte de sua vida cotidiana.

No projeto de doutorado, a adoção do termo “pesquisa etnográfica” foi amparada em Bogdan e Biklen (1994), que o utilizam num sentido mais genérico – próximo ao da investigação qualitativa – embora esclareçam que alguns autores a empregam num sentido mais formal, para se referirem a uma categoria particular de investigação qualitativa: aquela a que, segundo afirmam, a maioria dos antropólogos se dedica e que tem como objetivo a descrição da cultura.

Foi dentro dessa perspectiva mais abrangente que concebemos o estudo realizado no mestrado, chamando-o “não convencional” (Soares e Fazenda, 1992) e situando-o no paradigma da pesquisa qualitativa, embora não de natureza etnográfica. Suas características básicas, abstraindo as diferenças entre um certo número de denominações que refletem origens e ênfases diversas, são as seguintes, segundo Bogdan e Biklen (1994): realiza-se num

ambiente natural, em oposição a situações experimentais de laboratório; nega-se a ideia de neutralidade do pesquisador, considerado como instrumento principal da pesquisa; emprega- se primordialmente a descrição (embora alguns teóricos defendam a presença da explicação) como forma de produção de conhecimento; o seu processo de desenvolvimento sobrepõe-se em importância ao resultado final ou a um produto acabado, posto que pesquisador e participantes interagem constantemente; adota-se uma análise indutiva, construída ao longo do processo.

Fonseca (1998), antropóloga com larga experiência em pesquisa etnográfica, propõe- se a pensar o método etnográfico como instrumento que pode enriquecer a intervenção educativa – não somente e sequer necessariamente escolar. Para a autora, este método atua na área de comunicação entre o agente e seu interlocutor e é desse diálogo que depende o sucesso do contato educativo. Seguindo a linha de uma antropologia semiótica, a pesquisa de campo tem como objetivo possibilitar um entendimento sobre o que dizem os interlocutores, num sentido que transcende a comunicação viabilizada por falar a mesma língua. Desse modo, aspectos pontuais como uma diferença de faixa etária, classe ou grupo étnico, por exemplo, podem sobrepor interpretações balizadas em universos simbólicos diferentes e prejudicar o diálogo. Como lembra Fonseca (1998, p. 59), “a antropologia procura criar dúvidas”, desvelando as assimetrias existentes entre as diferentes maneiras de ver o mundo.

Ao optar por realizar um estudo, no doutorado, inspirado em princípios etnográficos, pensávamos nos procedimentos e instrumentos que utilizaríamos para coletar os dados: trabalho de campo, observação participante, diário de campo, entrevista intensiva. Buscávamos, assim, empreender uma maior interação com o contexto investigado.

As leituras teóricas contribuíram no sentido de desvelar outros fatores cuja relevância é maior na definição do método mais apropriado ao tipo de investigação que se pretende realizar. Erickson (1989) ressalta que o que faz um trabalho ser interpretativo – denominação que utiliza para se referir a todo o conjunto de métodos qualitativos – é o referente e a intenção, e não o procedimento de compilação de dados. Devido à falta de consenso entre os investigadores interpretativos (ainda maior nos enfoques mais habituais da investigação sobre o ensino), o autor destaca, como aspectos teóricos e metodológicos mais proeminentes em seu próprio trabalho, a combinação de análise minuciosa de detalhes sutis de conduta e significado na interação social cotidiana com análise do contexto social mais amplo, no qual tem lugar a interação face a face; o trabalho empírico (mas não positivista), o rigor e sistematicidade necessários para investigar escorregadios fenômenos da interação cotidiana e suas conexões com o mundo social mais amplo, usando como meio o significado subjetivo.

40

Ao tecer considerações sobre o tipo de indagação que suscita a necessidade de métodos interpretativos de investigação, Erickson (1989) explica que estes são mais apropriados a questões mais específicas. Tais perguntas necessitam de respostas porque a vida cotidiana torna-se invisível à medida que nos familiarizamos com suas contradições, de modo que não percebemos os modelos subjacentes às nossas ações enquanto as executamos. Assim, para o autor, o trabalho de campo educacional deve transformar o familiar em estranho, o comum em problemático, tornando visível e documentável o que está acontecendo.

A perspectiva que parte desse estranhamento, ao qual também se refere Fonseca (1998) como momento inicial do processo de constituição do objeto, veio ao encontro de nossas indagações sobre a natureza das dificuldades enfrentadas pelos professores ao buscarem promover a aprendizagem de seus alunos, cuja origem está intimamente ligada às nossas próprias dificuldades na docência. Em termos mais precisos, diríamos que esse estranhamento nasceu na constatação de que uma sólida formação inicial, segundo critérios de excelência acadêmica, não garantia ou sequer facilitava uma prática pedagógica eficaz de nossa parte. A esse respeito, vale lembrar as importantes considerações de Batista (2001, p.132-133) sobre um estudo que realizou acerca do que se ensina nas aulas de Português:

Aos professores, tudo se atribui, tanto a responsabilidade pela mudança e transformação educacional como pelo seu fracasso e pela persistência da tradição; muito tem-se insistido que o foco sobre o qual se exerceria essa suposta inércia e resistência do professor seria o de suas concepções teóricas – “ultrapassadas” – e seu apego a aspectos “práticos” ou metodológicos – “sem importância” para sua formação e seu trabalho. O caso estudado mostra que é possível tornar essa representação mais complexa; que o professor exerce sua prática sob um regime de constrições; que ele é também por ela formado; que, mais que exercer sua prática de acordo

com concepções teóricas conscientes, o professor a exerce de acordo com um senso prático, um senso de necessidade e urgência; que para os problemas práticos que enfrenta ele necessita,

efetivamente, de respostas práticas. (grifos meus)

O ingresso no doutorado respondia, em termos, ao anseio de encontrar e partilhar um pouco desse respaldo “prático” para os problemas que nos angustiavam no dia a dia da sala de aula. Após expandirmos nosso repertório de leituras e reflexões, demo-nos conta de que não se trata, no âmbito de uma pesquisa acadêmica, de buscar respostas práticas no sentido de um guia prescritivo que oriente como lidar com os problemas cotidianos, mas de buscar uma compreensão mais profunda da problemática que origina nossas indagações. Buscar o que Geertz (1987) denomina de “descrição densa”, aquela que ultrapassa o óbvio e o superficial na medida em que demanda uma especulação elaborada, um certo tipo de esforço intelectual. Este consiste em lidar com uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, engendrar-se nelas, para primeiro captá-las e depois explicá-las. Amparando-se num conceito

essencialmente semiótico de cultura, Geertz crê que o homem é um animal inserido em tramas de significação que ele mesmo tece; assim, a cultura é essa trama e sua análise há de ser uma ciência interpretativa em busca de significações.

Erickson (1989), ao discorrer sobre a perspectiva habitualmente aceita da investigação sobre o ensino, que pressupõe uma orientação positivista – aquela baseada na hipótese de que o que se manifesta de forma genérica em salas de aula diferentes aparece em diferentes estudos, e que as variações existentes são triviais e podem ser desconsideradas na análise, na medida em que podem ser atribuídas a uma margem de erro –, aponta a conveniência de utilizar a investigação interpretativa, já que esta assinala interessantes anomalias da perspectiva anteriormente mencionada, à qual designa como trabalho de tipo processo- produto. Uma delas refere-se ao seu próprio corpus, que não considera um número considerável de influências. Um professor ensina de maneira diferente a cada novo grupo de alunos, há tensões em sua vida fora da escola, ocorrem mudanças na própria escola. Os dados do processo-produto não indicam e não explicam por que a influência do professor parece variar de um ano para outro. Outra anomalia remete ao fato de que, apesar de a experiência mostrar que os professores podem ser instruídos a adotar certas condutas com maior frequência, as quais podem influir para que os alunos aprendam mais, eles nem sempre perseveram em manifestar as condutas recomendadas. Às vezes o fazem, outras vezes não, e suas opções podem ser motivadas por aspectos específicos do contexto no qual empreendem suas ações. Segundo Erickson (1989, p. 227-228):

Estos tipos de anomalias sugieren que, si bien el trabajo estándar há aportado algunas nociones válidas acerca de las características generales de la instrucción eficaz, es muy posible que ya hayamos aprendido casi todo lo que se puede aprender mediante la aplicación de esse marco teórico de referencia y de los métodos que de él derivan.

Além disso, o autor destaca que, não obstante possam ser logradas recomendações gerais pela investigação do processo-produto, estas não fornecem nenhuma informação sobre como fazer o que se recomenda, nem para o investigador, nem para o praticante. Assim, em decorrência da necessidade de buscar novos referenciais de análise e interpretação da realidade, optamos por adotar princípios e orientações inspirados na etnografia como forma de adentrar a natureza complexa dos problemas vivenciados na prática pedagógica cotidiana e encontrar-lhes significados.

42