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Possibilidades didáticas para o trabalho com a escrita

P ARTE II – F UNDAMENTAÇÃO T EÓRICA

CAPÍTULO 2 – C ONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

2.3 Concepção de escrita

2.3.1 Possibilidades didáticas para o trabalho com a escrita

O primeiro aspecto a ser considerado no ensino da composição escrita, segundo Pasquier e Dolz (1996), diz respeito à necessidade de se abordar a diversidade de textos, pois não se aprende a escrever “em geral”, mas em função de características linguísticas e discursivas muito precisas que correspondem a uma pluralidade de gêneros textuais. Tal fato é coerente com a concepção de língua como uma interação dialógica entre sujeitos sociais, que se adapta a diferentes situações de uso: segundo o objetivo que se pretende atingir, o destinatário, o lugar social onde circulará o texto etc. Em outras palavras, a produção de textos não pode ser concebida como um objeto de ensino único e indiferenciado, pois cada gênero textual e cada texto em particular exigem a adoção de estratégias de ensino diferenciadas e adaptadas a eles. Assim, quando se propõe uma atividade que demande dos alunos a produção de um texto, na escola, é preciso repertoriá-los com modelos do gênero textual em questão e trabalhar de modo particularizado os aspectos linguísticos próprios de cada modelo.

Em seguida, Pasquier e Dolz (1996) discutem a importância de os alunos vivenciarem e experimentarem os procedimentos que intervêm na atividade de escrever textos desde os primeiros anos de escolaridade. Trata-se de uma linha didática necessária por ser a produção de textos uma atividade complexa cuja aprendizagem é lenta e prolongada. Os autores não se referem, neste caso, ao ensino dos rudimentos da escrita, à discriminação e combinação gráfico-sonora das unidades linguísticas, que também precisam ser ensinadas, mas não como pré-requisito para a escrita de textos. Antes mesmo de saberem ler e escrever palavras e frases, os alunos podem se aventurar a produzir textos “escritos”, ditando-os ao professor que, atuando como escriba, os grafa. Para os autores,

Escrevendo esses textos, as crianças pequenas constroem progressivamente a capacidade de se adaptarem às situações de comunicação (para quem estão escrevendo e por quê) e a

6 DOLZ, J .; ROSAT, M.C. e SCHNEUWLY, B. Elaboration et evaluation de deux sequences didactiques relatives à trois types de textes. Le Français Aujourd´hui, 93: 1991, p. 37-47.

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DOLZ, J. L´aprentissage des capacités argumentatives: étude des effets d´un enseignement systématique et intensif du discours argumentatif chez des enfants de 11-12 ans. Bulletin Suisse de Linguistique Appliquée, 61: 1995, p. 137-169.

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consciência de que querem ser compreendidas: qual é o seu papel ao escrever, com que finalidade estão escrevendo e o que devem fazer para conseguir seus objetivos. Também buscam e refletem sobre os conteúdos temáticos para desenvolver seus textos. Enfim, descobrem algumas características da textualidade e discutem com seus colegas sobre o interesse de se adotar uma ou outra forma linguística, antes de ditá-la definitivamente ao adulto. (Pasquier e Dolz, 1996, p. 996)

Tal proposta de aprendizagem precoce da escrita considera que as atividades devem ser adaptadas às possibilidades dos alunos, em cada nível de ensino, tornando-se mais complexas a cada ano.

A terceira linha didática apresentada por Pasquier e Dolz em seu artigo propõe que se trabalhe a diversidade textual numa progressão em espiral, ao invés de se abordar a produção escrita como um progresso de texto em texto – progressão linear. Trata-se de uma orientação metodológica que prevê o ensino e aprendizagem, em todos os níveis de ensino, de uma diversidade de tipos textuais (narração, explicação, argumentação, descrição, diálogo), variando, de um nível escolar a outro, o gênero textual e a dimensão textual estudada. Assim, os alunos não estudariam, em um ano, apenas textos narrativos, para só no ano seguinte, por exemplo, trabalhar a descrição e a correspondência, finalizando a escolarização com o trabalho sobre dissertações, como se um fosse pré-requisito para a aprendizagem do outro. A diversidade textual estaria pressuposta em todos os níveis de ensino, de maneira que o retorno a assuntos já estudados previsse o tratamento de uma dimensão ou perspectiva distinta, sempre com vistas a retomar o aprendido e ampliá-lo ou aprofundá-lo.

Uma orientação didática criticada pelos autores consiste no princípio de aprendizagem aditiva, segundo o qual o ensino da escrita deveria começar pelas letras do alfabeto, passando pelas palavras soltas, depois frases e, finalmente, os textos. Tal princípio pressupõe que a escrita é produto da reunião sucessiva de peças simples e separadas para compor, no final, uma peça complexa. Segundo Pasquier e Dolz (1996), o ensino da produção escrita deve colocar os alunos, desde o primeiro momento, em face de uma tarefa complexa e global, de modo análogo ao que ocorre em situações autênticas de comunicação da vida social. Somente na sequência do trabalho seriam propostas atividades específicas em relação às diferentes dimensões do texto estudado – como organização do conteúdo temático, uso das unidades linguísticas, coesão, aspectos sintáticos, lexicais etc. – finalizando o trabalho com a mesma situação complexa da tarefa inicial. O movimento defendido pelos autores é, pois, ir “do complexo ao simples para voltar, no final, novamente ao complexo” (Pasquier e Dolz, 1996, p. 999). Tal movimento fundamenta-se na concepção de que produzir um texto consiste em

responder a uma situação de comunicação complexa, e não em juntar elementos simples conhecidos.

O quinto aspecto discutido pelos autores diz respeito à eficácia de um ensino intensivo, que subverta a organização segmentada do tempo na escola, a qual implica que uma mesma dificuldade de aprendizagem seja trabalhada por meses porque o tempo que se dedica a ela semanalmente é ínfimo. Os autores defendem, balizados em investigações, que melhores resultados são obtidos no campo da produção escrita quando o ensino é “concentrado” em um menor período de tempo.

A realização cotidiana de atividades orientadas para um mesmo objetivo favorece que haja menos perdas por esquecimento e contribui para a continuidade da aprendizagem. Ademais, como afirmam Pasquier e Dolz, o ensino intensivo ajuda o aprendiz a manter uma consciência clara do que faz, de por que o faz e de para onde se dirige, por um período que não ultrapasse uma, duas ou três semanas, conforme a idade. Se o período dedicado a uma determinada aprendizagem se estender indefinidamente, os alunos começam, inevitavelmente, a apresentar atitudes de cansaço, desatenção e desinteresse.

A sexta linha de ação didática referente ao trabalho de produção textual consiste na relevância de serem utilizados textos sociais que sirvam de referência para os alunos constituírem um repertório de textos autênticos produzidos em contextos sociais reais. Tais textos muitas vezes não são trabalhados porque são considerados complexos e pouco acessíveis, do que decorre a opção pelo trabalho praticamente exclusivo com textos didáticos ou escolares, simplificados e adaptados ao público escolar. Pasquier e Dolz (1996, p. 1001) afirmam que

É importante que o aluno não imite os textos escolares, mas que produza textos com referência a situações de comunicação bem definidas, precisas, reais (...) E, para podermos ajudá-lo, deveremos propor a leitura de textos produzidos em situações similares (...).

A revisão como atividade de aprendizagem possibilita trabalhar os problemas de escrita observados nas primeiras versões dos textos produzidos pelos alunos. Esta é a sétima linha de ação didática proposta por Pasquier e Dolz para o trabalho com a produção de textos. Geralmente, tanto os alunos quanto os professores se limitam a fazer uma correção superficial dos textos, que não ultrapassa o nível da ortografia e do estilo. Mas quem escreve de fato – e não quem apenas copia – sabe o quanto a releitura, a revisão e a reescrita fazem parte do processo de escrita. Trata-se de um procedimento que consiste em reler constantemente o que se escreve, para transformar reiteradas vezes o projeto inicial, tantas quantas forem

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necessárias conforme o contexto de produção: objetivo, interlocutor, local de circulação etc. Os autores lembram que

Entre o primeiro rascunho e a volta a esse texto para elaborar a versão definitiva, desenvolver- se-ão as atividades de ensino e aprendizagem sobre as diferentes dimensões textuais que se apresentaram difíceis na primeira versão (pontuação, tempos verbais, organização do conteúdo temático etc.). O aluno também aprende as técnicas da revisão (discussão das diferentes possibilidades em função de critérios de legitimidades e eficácia comunicativa: apagar- substituir-deslocar). (Pasquier e Dolz, 1996, p. 1002-3)

Certamente a eficácia dessa proposta depende de condições concretas de funcionamento da sala de aula e gestão do clima relacional, pois exige acompanhamento particularizado do professor que, muitas vezes, ao trabalhar com turmas numerosas, se vê diante de circunstâncias que o obrigam a adotar medidas não tão eficazes do ponto de vista didático, mas necessárias sob a ótica da organização do trabalho. Discutiremos tais condições mais detidamente ao analisar entrevistas concedidas por professores de diferentes disciplinas, no capítulo 6.

Pasquier e Dolz ressaltam que este trabalho complexo a ser desenvolvido pelos professores requer que estes se conscientizem de que não são os seus saberes que devem passar diretamente de suas mentes para as mentes dos alunos, como se os conhecimentos pudessem ser transmitidos por meio de cuidadosas explicações. O que os autores propõem é que se conduza e oriente os alunos no sentido de que eles próprios consigam descobrir os novos saberes e se apropriem das habilidades indispensáveis para a realização das tarefas. Trata-se, pois, do método indutivo, oposto aos métodos transmissores frontais. Nesse sentido, é a qualidade dos exercícios, sua ordem de realização e decomposição das dificuldades que permitem uma real construção por parte dos alunos, razão pela qual o papel do professor é tão determinante no processo. Os próprios autores admitem que “estamos ainda longe de conseguir esta qualidade” (1996, p. 1003), mas não podemos perder de vista as metas que pretendemos alcançar. Os materiais elaborados atualmente, segundo os autores, têm melhorado sensivelmente e se adaptado aos problemas típicos de alunos em fase de aprendizagem. No caso brasileiro, também notamos essa melhoria.

O nono aspecto discutido por Pasquier e Dolz diz respeito à necessidade de o aluno adotar um ponto de vista crítico sobre sua própria atividade de produzir um texto, com vistas a regular os problemas de escrita com os quais se depara. Adotar esse ponto de vista crítico também não é algo viável de ocorrer num curto período de tempo, pois requer a tomada de consciência, progressiva e gradual, dos problemas com os quais lidamos ao produzir um texto:

contextualizar o projeto em função da consigna da atividade, eleger um tipo de discurso em função dos textos sociais conhecidos, elaborar os conteúdos temáticos, planejar a organização, articular as diferentes partes do texto, conectar as palavras e as frases, assegurar a coesão e a coerência etc. Tudo isso é muito distante de um quadro no qual a única preocupação dos alunos é quantas linhas escrever e sobre qual assunto. Na verdade, consideramos que tais problemas não são desafios apenas para os alunos que estão aprendendo a escrever – entenda- se, a produzir textos – mas para qualquer pessoa que não cultive regularmente a prática de escrita – inclusive os professores.

Essa regulação que consiste em adotar um ponto de vista crítico sobre a própria atividade de escrever começa sendo externa e social. É o que Pasquier e Dolz chamam de regulação externa, quando o professor disponibiliza instrumentos didáticos, como listas de controle, para o aluno utilizar durante a realização de atividades de leitura e exercícios de análise e produção de textos. Segundo os autores, “graças à regulação externa da lista de controle [em forma de notas], os alunos centram sua atenção em alguns problemas de escrita que desconheciam antes do ensino” (1996, p. 1005, grifo dos autores). Com a adoção desse procedimento ao longo de um determinado tempo, este instrumento de regulação externa converte-se, progressivamente, em um instrumento de regulação interna, “quando o aluno se apropria das habilidades necessárias à produção de um gênero textual e já não necessita da ajuda exterior da lista de controle” (1996, p. 1005).

Finalizando a relação de dez linhas didáticas eleitas por Pasquier e Dolz para discutir e propor possibilidades mais eficazes de trabalho com a produção escrita, os autores ressaltam que todos os pontos discutidos concretizam-se, no trabalho em sala de aula, por meio da adoção de sequências didáticas, que consistem em um conjunto de oficinas destinadas à aprendizagem de um gênero textual e que respondem a uma série de critérios. O termo “sequência” implica que a série de atividades e exercícios deve seguir uma ordem gradual que ajude os alunos a resolverem progressivamente as dificuldades que surgem no decorrer da realização de uma tarefa complexa. Segundo os autores, isso ajuda os alunos a tomarem consciência das características linguísticas dos textos estudados. Por outro lado, “a qualificação ‘didática’ tem a virtude de evocar tanto o objetivo da sequência – aprender – quanto a ação que o torna possível – ensinar” (1996, p. 1005). Queremos ressaltar, entretanto, que concebemos o “ensino” como uma das ações que tornam possível o aprender, e não a única. Quando os autores afirmam que muitos professores se equivocam ao acreditarem que as capacidades implicadas na atividade complexa de produzir um texto são herdadas, eles querem destacar que é possível, sim, ensiná-las, de modo que os alunos as aprendam. Mas

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além do ensino, nossa hipótese é de que o engajamento dos alunos na realização das atividades propostas é igualmente determinante para o sucesso da aprendizagem.

Ao longo deste capítulo, apresentamos diferentes concepções de língua, leitura e escrita que comparecem nos discursos e práticas educacionais, definindo aquelas que assumimos como norteadoras de nossa reflexão acerca do que consideramos mais pertinente, de um ponto de vista teórico e metodológico, para um ensino de qualidade da língua materna, que propicie aos alunos melhores condições de se tornarem leitores e produtores de textos proficientes.

Importa que os professores tenham clareza conceitual acerca dos pressupostos que permeiam suas práticas, a fim de que possam, na medida de suas possibilidades, criar situações de ensino à luz desses pressupostos. No entanto, como veremos adiante, a despeito da inegável importância de uma formação teórica e metodológica consistente, nem sempre o contexto de atuação do professor favorece a tomada de decisões amparadas única ou prioritariamente em opções teóricas conscientes. O capítulo 3 propõe uma reflexão sobre determinantes históricos, sociais, culturais e afetivos que caracterizam o contexto de atuação docente na escola atual, influenciando a construção do fazer pedagógico na prática cotidiana.

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