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1989 147 3.3.4 Políticas de educação bilíngue e interculturalidade para todos na

1 A PESQUISA QUALITATIVA DE CUNHO ETNOGRÁFICO NO VIÉS DA LINGUÍSTICA APLICADA

2.2 LÍNGUA COMO PRÁTICA SOCIAL LOCAL

Considero neste estudo que o ensino de línguas no sistema educativo peruano é uma prática social e política. O professor, a partir de suas escolhas, orientações, usos, atitudes e ideologias com respeito à língua atua também circunscrito a políticas oficiais e convenções não declaradas do local da sala de aula. Em outras palavras, os docentes são, de fato, planejadores e executores de políticas linguísticas (McCARTY, 2011) e, por sua vez, a língua e as práticas de ensino de línguas nunca são neutras, elas estão sempre envoltas em políticas culturais (PENNYCOOK, 1994).

Portanto, ancoro-me em Pennycook (2010) e sua concepção de língua como prática social local. Nesse olhar, “as práticas prefiguram as atividades; não são reduzíveis a coisas que fazemos, no entanto são os princípios organizadores que subjazem a elas” (PENNYCOOK, 2010, p.29)54. Nesse sentido, professores e alunos em sala de aula se conectam reciprocamente através dos fazeres organizados na consecução dos propósitos educativos nos quais se engajam. Assim, professores e alunos têm conhecimentos de como dirigir seu comportamento em face do outro e como manipular os objetos: língua, cadernos, telefones, livros didáticos etc. em suas relações dentro da sala de aula.

Nesse cenário, as práticas constituem espaços “mesopolíticos” (PENNYCOOK, 2010, p.22) de ação. Isto porque através de nossos fazeres cotidianos organizados nos conectamos com as estruturas social, cultural e ideológica mais ampla; esses espaços fornecidos pelas práticas constituem uma possibilidade de ação e mudança através da agência e resistência dos atores envolvidos (PENNYCOOK, 2001).

A prática social de ensino e aprendizagem está acompanhada de usos específicos da língua. Neste viés, a linguagem também é uma prática social. Como Pennycook assinala:

54 Tradução minha. No original: “Practice prefigure activity: they are not reducible to things we do, but rather are the organizing principle behind them” (PENNYCOOK, 2010, p. 29)

A língua, a partir dessa perspectiva, torna-se uma prática social, assim como é o ensino de línguas, a tradução e as políticas linguísticas; tais práticas operam acima do nível da atividade e abaixo do nível da ordem social, como mediadores de como as coisas são feitas (PENNYCOOK, 2010, p.29)55. O ensino e aprendizagem de línguas, portanto, se constitui como atividades sociais repetitivas de uso da língua que conectam atores sociais -professores e alunos- com as políticas e planejamentos linguísticos, ideologias linguísticas dispostas pelo sistema educativo peruano.

O local, neste viés, é entendido em sua complexa manifestação como lugar -em termos de tempo e espaço- cuja interpretação envolve as atividades sociais e usos linguísticos. Isto, em contraposição ao lugar como contexto (entorno estático-morto) onde as ações e a língua acontecem como pré-estabelecidas ou em uso (PENNYCOOK, 2010). Colocar o foco no local como parte constituinte das práticas da língua é entender que:

A localidade da língua deve envolver também uma apreciação da perspectiva da localidade, das diferentes maneiras nas quais a língua, localidade e prática são concebidas em diferentes contextos. [...] para desenvolver uma perspectiva sobre a língua como prática local, portanto, precisamos apreciar que as línguas não podem ser tratadas separadas de seus falantes, histórias, culturas, lugares e ideologias (PENNYCOOK, 2010, p. 4- 6)56.

55 Tradução minha. No original: “Language, from this perspective, becomes a social practice, as are language teaching, translation, and language policy; such practices operates above the level of activity and below the social order, as mediators of how things are done” (PENNYCOOK, 2010, p.29).

56 Tradução minha. No original “The locality of language must also encompass an appreciation of the locality of perspective, of the different ways in which language, locality and practice are conceived in different contexts. […] to develop a perspective on language as a local practice, therefore, we need to appreciate that language cannot be dealt with separately from speakers, histories, cultures, places, ideologies” (PENNYCOOK, 2010, p. 4-6)

Ressalto, portanto, que a localização sugere formas particulares de olhares -conotações políticas e ideológicas- a partir das quais compreendemos a língua, as práticas, e o local. Por exemplo, a forma como os grupos hegemônicos ocidentais entenderam a língua através dos metadiscursos e utilizou-os como ficções convenientes para controlar seus falantes e as formas como eles olhavam o mundo (MAKONI, PENNYCOOK, 2005) é semelhante em intenção, embora diferente na forma, com o Império Incaico. O império incaico, não tendo a sua língua geral quéchua sujeita a nenhum regime metadiscursivo, mas cultivada e desenvolvida através da oralidade intrínseca a suas atividades sociais organizadas, exerceu controle através das práticas sociais imperiais. Para tal fim, grupos quéchua falantes foram deslocados para povos recém-conquistados com a finalidade de introduzir práticas incaicas de cultivo, irrigação, construção de terra e culto ao inca (GARCILASO DE LA VEGA, 1609/2005).

Desta forma, a heterogeneidade de olhares sobre a língua tem a ver com o modo como as línguas foram e estão “localizadas em certas histórias e articuladas a partir de certas perspectivas” (PENNYCOOK, 2010, p.5)57. Em consequência, é possível repensar a língua como construção social, politica e cultural com implicações imediatas sobre as pessoas, uma vez que “as definições [da língua] são sempre declarações implícitas a respeito dos seres humanos e do mundo” (MAKONI; PENNYCOOK, 2005, p.27)58.

Por fim, considero a prática de ensino e aprendizagem de línguas como ações mesopolíticas localizadas, entendendo o local como aquilo que é enraizado e particular, como o “lugar da resistência, da tradição, da autenticidade, e de tudo que há de ser preservado” (PENNYCOOK, 2010, p.4)59 e que tanto as práticas, a língua e a localidade se reconstituem reciprocamente. Em concordância com as ideias de Pennycook (2010), nesta pesquisa considero que a prática local de ensino-aprendizagem de inglês como língua estrangeira constitui sujeitos, significados, o local e até a própria língua.

57 Tradução minha. No original: “Language are located in certain histories and articulated from certain perspectives” (PENNYCOOK, 2010, p, 5).

58 Tradução minha. No original: “definition of language have material consequences on people and because such definitions are always implicitly or explicitly statements about human beings in the world” (MAKONI; PENNYCOOK, 2005, p.27).

59 Tradução minha. No original: “Local becomes the site of resistance, of tradition, of authenticity, of all that needs to be preserved” (PENNYCOOK, 2010, p.4).

A noção de localidade aqui considera o espaço e o movimento como uma nova forma de pensar ou relatar o lugar. Assim, uma vez que o fluxo do tempo se torna central, a repetição sempre envolve diferença, já que repetir a mesma coisa num movimento através do tempo, relocaliza a repetição como algo diferente. Desse modo, ao repetir uma ideia, uma palavra, uma frase ou um evento, este é algo sempre renovado (PENNYCOOK, 2010).

Nessas considerações, Pennycook (2010) coloca foco na noção de relocalização como a “possibilidade de mesmice e diferença simultânea” (p.35)60. O autor, com base em estudos de sociolinguistas, sustenta que os discursos são constantemente repetidos e que a repetição da língua é um recurso central da construção de significados. O jogo constante da língua repetida é importante por dois motivos; por um lado, para a construção do discurso compartilhado, e por outro, para a construção de usos criativos da língua.

Nessa última questão sobre os usos criativos, colocando atenção no discurso cotidiano, Pennycook (2010) pontua que a criatividade, seja planejada ou não, é um uso comum que nós fazemos da língua. Alguns exemplos destas ações criativas trazidas pelo autor são: poemas, prosa, interação formal ou informal, contação de piadas, jogo de palavras. Ao contrário, as práticas rotineiras ou “não criativas” da língua são a exceção; ou seja, é a mesmice nas estruturas linguísticas identitárias que precisa ser esclarecida. O autor sustenta duas asseverações em situação dialética a) a repetição é uma parte substancial do uso criativo da língua; e b) quebrar as normas da língua é a norma. Desta forma,

A gramática não é um conjunto de normas à qual nós aderimos ou quebramos, mas sim, a sedimentação da forma repetida como resultado do discurso atual. Nós produzimos a língua como resultado de nossas práticas locais. (PENNYCOOK, 2010, p.41)61.

60 Tradução minha. No original: “the possibility of simultaneous sameness and difference” (PENNYCOOK, 2010, p.35).

61 Tradução minha. No original: “grammar is not a set of norms that we adhere or to break, but rather, the repeated sedimentation of form as a result of ongoing discourse. We produce language as a result of our local practice” (PENNYCOOK, 2010, p.41).

Desta forma, a desconsideração do local nas atividades linguísticas no pensamento moderno tem feito com que identidade, língua e cultura tenham sido essencializadas. A cisão da diferença sutil nos atos repetitivos da língua em tempo e espaço faz com que a mesmice seja acentuada, criando-se uma ilusão de sistematicidade. A generalidade e universalidade como anseios modernos motivaram a naturalização do discurso no qual usamos a língua como um sistema preestabelecido em contexto.

Contrariamente ao discurso essencialista da língua no ideário moderno, a língua entendida como uma prática local – espaço e tempo- é uma forma de repetição que cria diferença. Uma vez que, todo ato de fala pertence a grupos e práticas, então esses atos são “sempre sociais, sempre históricos e sempre locais” (PENNYCOOK, 2010, p.46)62. Essa situação de alteridade na língua é representada por Pennycook (2010) como um estado “mimesis fértil” (p. 36)63 a qual denota uma repetição como forma de diferença. Esta forma de entender a língua assumida neste trabalho se apresenta como uma forma apropriada de entender como fazemos coisas como humanos e não como objetos repetidores de estruturas estabelecidas.

Segundo os argumentos trazidos acima, pensar a língua como uma prática local implica duas considerações importantes para este estudo sobre práticas de ensino-aprendizagem de inglês. Conforme assinala Pennycook, a concepção da língua como prática local,

[primeiro] afasta[se] de uma concepção da língua como estrutura pré-determinada e, ao invés disso, considera a língua como o produto da prática, da atividade social repetida; e, [segundo], desenvolve uma noção de localidade em vez de contexto, que em si está imbuído de um sentido de tempo e movimento. As práticas de língua não podem acontecer fora da localidade, mas também não são definidas por ela. (PENNYCOOK, 2010, p.48)64

62 Tradução minha. No original: “[they are] always social, always historical and always local” (PENNYCOOK, 2010, p.46)

63 Tradução minha. No original: “fertile mimesis” (PENNYCOOK, 2010, p. 42). 64 Tradução minha. No original: “It moves away from na account of language as pre-given structure and instead account for language as the product of practice, of repeated social activity; and at the same time, it develops a notion of locality rather than context, which itself is imbued with a sense of time and movement.

Se por um lado, as similaridades na experiência comunicativa (circunstância, tema, interlocutores) constituem em grande parte a natureza de nossos usos linguísticos, por outro, as diferenças, trazidas com a repetição desses enunciados em outro tempo e espaço particular renovam as regras e identidades tomadas como essenciais (PENNYCOOK, 2010). Assim, as pequenas mudanças linguísticas em nossos enunciados, originadas pela intencionalidade humana para transformar-se e transformar o mundo (FREIRE, 1970/2013), podem começar a ser repetidas e converter-se em estruturas sedimentadas no decorrer do tempo.

Por fim, olhar a língua como atividade social local repetitiva implica tomar a diferença e movimento como a norma. Aliás, implica compreender atos que parecem “os mesmos” como formas de agência. Assim, a ação de transformação humana do mundo pode ser entendida a partir dos pequenos usos repetitivos locais da linguagem cotidiana. O pensamento crítico aqui se torna fundamental para resistir localmente a ideários de dominação mobilizados através de discursos imperialistas.

Tendo abordado a compreensão da natureza dinâmica da língua a partir de nossos atos de fala locais, apresento, a seguir, como este entendimento sobre a língua se relaciona com a constituição identitária em sala de aula de inglês como espaço pós-colonial.

Language practices cannot happen out of locality, but neither are they defined by it.” (PENNYCOOK 2010, p.48)

2.3 A LINGUA COMO AÇÃO SOCIAL E CONSTITUIÇÃO