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3. A lógica na Idade Média

3.2. A lógica nas universidades

A lógica medieval se desenvolve com o aparecimento das universidades europeias, a partir dos séculos XI e XII407. Diferentemente da divisão das universidades atuais, o ensino universitário medieval oferecia dois tipos de formação: artes liberais ou artes mecânicas. As artes liberais eram a formação dos membros do clero e dos homens de letras. Era nesse contexto que se tinham lugar a produção e transmissão da lógica medieval:

As artes liberais aprendiam-se em primeiro lugar nas escolas conventuais, monásticas e as que se organizavam em torno das catedrais (igrejas episcopais) e por seu turno dividiam-se em duas grandes partes. A primeira compunha-se de três disciplinas: lógica (ou dialética), retórica e gramática. Tudo, naturalmente, em torno do latim. A gramática era a regra do latim e as regras da língua eram regras de lógica do discurso. Estas três disciplinas compunham o trivium. Eram também chamadas, dentro das artes liberais, artes sermonicales, ou seja, as técnicas do discurso, ou da língua, ou do pensamento verbalizado e verbalizável. Ao lado delas, ainda como artes liberais, encontravam-se outras quatro disciplinas, que formavam por isso o quadrivium: aritmética, geometria, astrologia (astronomia) e harmonia (música) (grifos nossos)408.

O trivium tinha como núcleo essencial o latim, que os medievais acreditavam ser uma língua acabada e perfeita para a expressão da lógica409. Na realidade, a lógica era uma disciplina da linguagem. Segundo Moody, enquanto a gramática ensinava como falar corretamente e a retórica como falar elegantemente, a lógica ensinava como falar a verdade ou fazer inferências válidas410.

Nesse sentido, a contribuição da lógica medieval para a filosofia da lógica "consistiu em uma investigação exploratória da semântica e lógica da língua latina e em penetrante

407 "A universidade é uma invenção medieval: embora houvesse escolas na civilização greco-romana, só a

partir dos séculos XI e XII podemos reconhecer a universidade. Naturalmente, ela é muito distinta do que hoje chamamos universidade, a não ser pelo fato de dar início à autonomia da ciência ocidental." LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 104.

408 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012,

p. 105.

409 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 139-40.

410 "In mediaeval classifications of the arts and sciences, logic was normally described as one of the 'rational'

or 'linguistic' disciplines, the others being grammar and rhetoric. While grammar teaches how to speak correctly, and rhetoric how to speak elegantly, logic teaches how to speak truly (vere loqui) or to make valid inferences." MOODY, Ernest A. Truth and consequence in mediaeval logic. Amsterdam: North-Holland Publishing Company, 1953, p. 13.

filosofia a propósito de questões intuitivas que se põem como base de qualquer desenvolvimento formal da matéria"411.

O ensino nas universidades medievais baseava-se na autoridade dos pensadores tradicionais e no treinamento em debates acerca do tema a ser ensinado. Tais disputas, além de serem um método, revelaram-se como o verdadeiro estilo literário da Idade Média412. E é nesse contexto que a lógica medieval será forjada:

Nas obras dos escritores posteriores, que são considerados mais ortodoxos, e.g. São Tomás de Aquino, este método ainda persiste. Toda a filosofia e a teologia e mesmo a jurisprudência eram estudadas considerando as quaestiones. No princípio de cada quaestio expõem-se as opiniões das autoridades que se opõem ou parecem opor-se, e então o professor mostra o seu domínio do problema elaborando distinções de sentido que são suficientes para resolver o problema e responder a todas as dificuldades. Nas universidades, que foram organizadas pela primeira vez no século XII, pretendia-se que os estudantes adquirissem habilidades a discutir, porque os exames eram controvérsias nas quais os candidatos mostravam sua capacidade para continuar a obra dos seus mestres413.

Em outras palavras, a forma da lógica desse período – as quaestiones – era essencial para permitir o seu ensino na universidade e a sua compreensão entre os alunos. E não só auxiliavam o entendimento, mas também a sua prática era uma preparação para as

disputas intelectuais.

Se o objetivo era transmitir o conteúdo da lógica aristotélica, a forma que o aprendizado da silogística tomou era tão ou mais relevante que a própria matéria. Tanto que os medievais é que foram responsáveis por nomear as diversas espécies de silogismo414. Esquemas gráficos, classificações, nomenclaturas foram contribuições da lógica medieval para a formação do que se chama de lógica clássica415.

411 MATES, Benson. Lógica elementar. Tradução de Leônidas H. B. Hegenberg e Octanny Silveira da

Mota. São Paulo: Editora Nacional e Edusp, 1967, p. 272.

412 "As disputas intelectuais da Idade Média, particularmente nas universidades, deram um estilo literário

próprio, o estilo argumentativo dos juristas. As técnicas de discussão escolástica demonstram o próprio método e não são um simples apêndice ou acessório. A discussão (disputatio) torna-se logo o estilo dos medievais." LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 115.

413 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 207.

414 A figura foi retirada de: KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica.

Tradução de Manuel Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 57.

415 "O que durante muito tempo foi melhor conhecido, e mesmo quase a única coisa conhecida, da lógica

medieval, foi o que é apenas o seu exterior. Foi a esse revestimento escolástico que se quis reduzi-la, foi ele que se perpetuou na lógica dita 'clássica', onde acabou mesmo por ofuscar a lógica aristotélica que era suposto ele transmitir. Um dos traços que marcaram a lógica na Idade Média, é que ela está intimamente

Essa contribuição formal não pode ser diminuída. Ao contrário, "pode-se argumentar que os exercícios das universidades medievais abriram o caminho para a ciência moderna, afinando a inteligência dos homens e conduzindo-os a pensar acerca dos métodos do conhecimento"416.

Além do fascínio pelas disputas intelectuais, os paradoxos lógicos chamaram a atenção dos medievais. Com a tradução das Refutações Sofísticas de Aristóteles para o latim já na baixa Idade Média, a dedicação aos sofismas tornou-se uma espécie de obsessão417.

Dos paradoxos trazidos da Antiguidade, o mais famoso e estudado foi o do mentiroso, que recebeu diversas versões. Esses testes intelectuais receberam o nome de insolubilia418, por não comportarem uma resposta satisfatória.

Kneale e Kneale contam que havia mesmo coleções de aurea sophismata para fins didáticos e que, em razão do exagero, tal hábito foi motivo de desprezo na Modernidade419. Na realidade, "não havia acordo acerca de uma doutrina que explicasse a importância destes paradoxos sobre a teoria do sentido e da verdade"420.

Em suma, as universidades foram locais de incentivo do estudo da lógica de conteúdo tradicional e em forma de debates.

ligada ao ensino, donde muitas vezes certos aspectos escolares. A lógica faz doravante parte integrante do ciclo dos estudos, desde o nível elementar, o do trivium. Foi portanto necessário que os pedagogos encontrassem meio de torná-la mais facilmente acessível a espíritos mais jovens e menos seleccionados que aqueles a que Aristóteles se dirigia no seu ensino do Liceu." BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 150.

416 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 231.

417 "Mais tarde, quando o apetite foi estimulado pela leitura do De Sophisticis Elenchis de Aristóteles, o gosto

pelos sofismas tornou-se tão grande que eles eram introduzidos em todas as espécies de contextos." KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 232.

418 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 233.

419 "Mas os gostos picantes podem tornar-se insípidos e aquilo que começou por parecer fascinante acabou

por ser estúpido e enfadonho. Para os homens do Renascimento a parte mais desprezível da educação medieval era a disputa lógico-sofística." KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 232-3.

420 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel